Opinião

Nova regulação de seguros e previdência privada traz aprofundamento inédito

Autor

  • Luciane Moessa

    é Ph.D. pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro (USP) membro do International Center for Comparative Environmental Law e diretora executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

8 de julho de 2022, 9h06

No último dia 29 de junho, a Susep (Superintendência de Seguros Privados) publicou norma (Circular 666/2022) que encerrou o ciclo iniciado com a consulta pública divulgada em dezembro de 2021, quando a minuta de uma norma muito mais abrangente que a anterior sobre o tema foi submetida a comentários.

A norma anterior, de dezembro de 2019, se limitava a exigir que, sempre que possível, os investimentos realizados por seguradoras, resseguradoras, entidades de previdência privada e sociedades de capitalização (todas reguladas pela Susep), levassem em conta fatores ambientais, sociais e de governança (ASG) na política de investimentos. Não havia qualquer menção à integração desses fatores no desenho dos produtos financeiros comercializados por essas instituições, nem na sua estrutura de governança, muito menos uma definição mínima do que se entende por fatores ASG.

A nova norma, que é a primeira com essa abrangência oriunda de uma economia emergente, foi muito além. Vale registrar que, em nível global, o regulador financeiro da Indonésia já havia expedido uma norma bastante genérica na matéria em 2017, abrangendo seguradoras e entidades de previdência, e o regulador financeiro da Colômbia, em 2021, exigiu que tais entidades esclarecessem em suas políticas de investimentos se incorporavam fatores ASG (inclusive climáticos) e os motivos pelos quais não o fizessem (em caso negativo). Também exigiu que a estrutura de governança definisse papéis e responsabilidades na matéria.

Já em 2022, o regulador chinês expediu diretrizes que abrangem governança, gestão de riscos e relatórios de sustentabilidade. Nas economias desenvolvidas, Reino Unido teve a primeira "regulação" (na verdade, diretrizes ou expectativas do supervisor) financeira abordando o assunto, pois expediu uma declaração destinada a bancos e seguradores em 2019, sendo que reguladores da Áustria, Alemanha e Singapura expediram diretrizes semelhantes em 2020. Até onde tenho conhecimento (e pesquiso o tema desde 2015), são apenas oito os países em que reguladores de seguros já expediram normas sobre o assunto, um número muito menor do que o de países em que o tema foi tratado por reguladores bancários (pelo menos 26).

Por falar em regulação bancária, a norma da Susep se inspirou em grande medida na regulação do Banco Central de 2021, por exemplo: a) na definição do que são riscos ambientais, sociais e climáticos (artigo 2º.); b) na exigência desde logo de relatório de sustentabilidade e definição de seu conteúdo mínimo; c) na definição de conteúdo mínimo de políticas de sustentabilidade, inclusive abrangendo as oportunidades, relacionadas à geração de impactos ambientais, sociais ou climáticos positivos (artigo 8º.) ; d) registro de perdas relacionadas a riscos de sustentabilidade; e) na exigência de que sejam adotados critérios de sustentabilidade para seleção de fornecedores de bens ou serviços (essa última apenas para instituições de maior porte).

No que se refere à gestão de riscos de sustentabilidade (riscos ambientais, sociais e climáticos), a norma estipula que o sistema deve incluir a identificação, avaliação, classificação, mensuração, tratamento, monitoramento e relato desses riscos (artigo 4º.). Deixa claro que a gestão de riscos deve ser feita em nível de portfólio ao estabelecer que as instituições supervisionadas devem estabelecer limites para concentração de riscos e/ou restrições para realização de negócios considerando a exposição a determinados setores econômicos, regiões geográficas, produtos ou serviços. Também esclarece que os riscos de sustentabilidade não constituem categoria autônoma de risco e sim devem ser considerados nas modalidades de risco de subscrição, de crédito, de mercado, operacional e de liquidez. Merece destaque a previsão de "estudo de materialidade" (inovação em relação ao texto submetido a consulta pública), a ser renovado a cada três anos (artigo 3º.), que representa adoção do princípio da relevância, ou seja, se uma determinada entidade, por exemplo, só opera com seguro de vida, não faz muito sentido pensar em gestão de riscos de sustentabilidade na política de subscrição de riscos; se ela somente investe em títulos da dívida pública nacionais (portanto, a única opção são os títulos emitidos pelo governo federal), tampouco há possibilidade de integrar fatores ASG na política de investimentos — e assim por diante.

Merece destaque a definição de critérios mínimos para precificação e subscrição de riscos (regra aplicável a seguros — artigo 5º.): a) histórico e comprometimento do cliente na gestão de riscos de sustentabilidade; b) capacidade e disposição do cliente em mitigar riscos de sustentabilidade associados à transação; c) eventuais restrições ou limites definidos na política da seguradora (relativos a exposição a determinados setores, regiões, etc).

Já no que diz respeito à gestão de investimentos, a norma exige como mínimo que se considerem riscos advindos da exposição dos ativos ou de seus emissores a riscos de sustentabilidade ou à não adoção de boas práticas de governança corporativa, além dos limites relativos a exposição a determinados setores ou regiões. E essa consideração deve valer para riscos de mercado, de crédito e de liquidez, devendo constar expressamente da política de investimentos.

O que era facultativo passa a ser obrigatório, com exceção apenas de entidades de pequeno porte (o segmento S4, referido no artigo 6º.). Entretanto, é perfeitamente possível que esses critérios se apliquem apenas a determinadas classes de ativos (investimentos imobiliários, investimentos em empresas — seja renda fixa, ações ou quotas sociais), e não a outros (como títulos da dívida pública), sendo que, para tanto, deve ser considerada a disponibilidade de informações sobre riscos de sustentabilidade e de governança (para esses últimos, por exemplo, não há disponibilidade no caso de pequenas e médias empresas), bem como a oferta de ativos que atendam a critérios de sustentabilidade (o que implica em que, num mercado em que o desempenho médio de sustentabilidade deixe a desejar, não será possível que seguradoras e entidades de previdência estabeleçam critérios demasiado restritivos, sob pena de não haver opções para investir), além das metas de risco-retorno estabelecidas em sua política.

É claro que, no mercado brasileiro, caracterizado por juros altos pagos pelos títulos da dívida pública de um lado, e pequena diversidade de opções de grandes empresas para investir, de outro, atuar nesse contexto é um desafio e pode de fato ocorrer que poucas empresas estejam à altura de padrões adequados de sustentabilidade definidos numa política de investimentos.

Como mínimo, porém, e já partindo para a interpretação da norma, cabe referir que não se pode deixar de exigir que essas empresas cumpram a regulação ambiental, social, climática e de governança que lhes seja aplicável, exigindo todas as licenças e autorizações cabíveis e que o número de processos/investigações de possíveis ilícitos na matéria (seja na esfera cível, administrativa ou criminal) não seja incompatível com o porte da empresa e a média do setor.  

Quanto à política de sustentabilidade, a norma adota implicitamente o princípio da proporcionalidade e exige que ela esteja alinhada à estratégia de negócios da instituição financeira, que seja divulgada ao público em geral e reavaliada a cada três anos (artigo 9º), podendo ser adotada uma única política para todo o grupo ou conglomerado, quando existir um desses (artigo 10). A implementação de uma política de sustentabilidade deve incluir pelo menos dois aspectos: a) a oferta de produtos ou serviços que considerem esses fatores; b) as operações diretas das entidades, ou seja, o seu próprio desempenho ambiental, social e climático — aspecto importante para dar o exemplo e promover a cultura de sustentabilidade internamente (artigo 11), sendo obrigatório o monitoramento e avaliação constante dessas ações (artigo 12). Um aspecto crítico da norma é que ela não exige e sim considera facultativa a participação de partes interessadas na elaboração e revisão da política.

Ainda, no que concerne à governança, a norma exige que a política de sustentabilidade seja integrada com as demais políticas de cada instituição, bem como que a política remuneratória e de avaliação de desempenho não incentivem condutas incompatíveis com ela (artigo 13). Nesse último tema, a norma representa um avanço até mesmo em relação à regulação bancária brasileira, que não trata do assunto — e ele é mesmo muito relevante, notadamente em relação a investimentos, em que predomina o foco no resultado do trimestre, ao passo que sustentabilidade implica visão de longo prazo. Entretanto, o ideal seria que a norma previsse mesmo que a política remuneratória deveria incentivar a implementação da política de sustentabilidade (indo além da vedação de contrariá-la).

Essa foi mais uma sugestão que cheguei a fazer na consulta pública, mas que não foi acolhida dessa vez — temos espaço para aprimorar. Além disso, a norma deixa claro que a implementação da política é de responsabilidade da diretoria (artigo 14).

Por fim, o último capítulo da norma trata do conteúdo do relatório anual de sustentabilidade, a ser publicado até o fim de abril de cada ano (artigo 15): a) a oferta de produtos ou serviços que considerem esses fatores; b) as operações diretas das entidades, ou seja, o seu próprio desempenho ambiental, social e climático; c) aspectos mais relevantes na gestão de riscos de sustentabilidade, abrangendo os principais riscos identificados e seus possíveis impactos a curto, médio e longo prazos sobre os negócios da instituição, a estrutura de governança da gestão de riscos e os processos utilizados para esse gerenciamento de riscos, o monitoramento de seus resultados e, ainda, a forma como os riscos de sustentabilidade são integrados à estrutura geral de gestão de riscos e à gestão de riscos de subscrição, de crédito, de mercado, operacional e de liquidez. O relatório deverá explicitar ainda as metodologias utilizadas para obtenção das informações e deverá ficar disponível ao público, bem como ser encaminhado aos órgãos de controle e de gestão superior. A Circular prevê ainda que a Susep divulgará tabelas relativas à forma de divulgação das informações do relatório de sustentabilidade (artigo 16).

Embora alguns aspectos adicionais pudessem ter sido abordados, para fornecer ainda mais clareza para o mercado regulado, é fundamental reconhecer que a norma em questão é ambiciosa e inovadora, considerando o estágio de amadurecimento não só do mercado brasileiro, mas também do mercado global nessa matéria.

A equipe da Susep que coordenou a elaboração normativa merece todo o reconhecimento pelo trabalho de excelência e agora os desafios que se colocam dizem respeito à implementação da norma: primeiro para as instituições supervisionadas, e em seguida para os órgãos de fiscalização da própria Susep encarregados de assegurar o seu cumprimento.

O alinhamento do setor financeiro ao desenvolvimento sustentável é uma necessidade do nosso momento histórico e um passo como esse num país com a importância ambiental do Brasil merece ser celebrado.

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