Opinião

Novos limites à liberdade do credor na recuperação judicial

Autores

  • Arthur Mendes Lobo

    é doutor em Direito pela PUC-SP professor de Direito Empresarial advogado e sócio do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço e Lobo Advogados

    View all posts
  • Eduardo Lysias Maia Abraão

    é advogado especialista em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e professor convidado da FIA.

    View all posts

8 de julho de 2022, 19h31

Quando uma empresa está em crise e pede recuperação judicial, a Assembleia Geral de Credores é soberana, pelo menos no que diz respeito à viabilidade econômica, para decidir sobre a aprovação do plano de reestruturação. Durante o conclave, os credores discutem o plano de soerguimento da atividade, as formas de pagamento, os prazos, descontos, venda de ativos, enfim, todas as condições da recuperação.

Os credores têm direito de voz e de voto, segundo o seu livre convencimento. Cada qual tem seu interesse individual. O objetivo das discussões assembleares será analisar os possíveis cenários de recebimento do crédito e, se a maioria entender viável, atendido quórum legal, darão uma nova chance à atividade da empresa insolvente. Via de regra, o credor é livre para votar como quiser.

Porém, recentemente, a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça anulou o voto de um credor por considerá-lo abusivo. A Turma, por maioria, entendeu que havia excessivo egoísmo na rejeição do plano do devedor. A justificativa para a referida anulação, em linhas bastante gerais, foi conceder uma nova chance à empresa insolvente, para, assim, prestigiar a função social da empresa.

Ocorre, no entanto, que essa decisão abre um precedente perigoso para a segurança jurídica das relações empresariais. De fato, a decisão prioriza a nova chance ao devedor, porém, destoa das regras instituídas pela lei, abrindo margem para interpretações que podem flexibilizar demasiadamente os critérios de votação, violando a autonomia da vontade dos credores. Sim, isso pode impactar sensivelmente o mercado em diversos setores, já que a vontade do credor terá a sua autonomia tolhida pelo Judiciário sem que exista um critério objetivo e previsível. Explica-se:

Ficou para trás a antiga rigidez do famigerado regime das concordatas. Evoluímos virtuosamente para a esfera elástica da busca do entendimento entre o devedor e seus credores. Até o advento da atual lei de falências (Lei nº 11.101/05), o juiz simplesmente impunha aos credores a observância do favor legal concedido ao devedor, obrigando-os independentemente da sua vontade. Aplicava-se um modelo engessado, prescrito em lei. Ao contrário do que sugere o seu nome, a concordata de então não representava acordo entre os envolvidos, nem tampouco continha a livre manifestação da vontade deles.

É inegável o avanço institucional alcançado, sobretudo diante da autonomia concedida às partes. Por outro lado, é preciso reconhecer que houve mudança, discernir a nova realidade negocial vis-à-vis o caráter impositivo que deixamos atrás, para então bem aplicar-se a lei, consoante aos seus novos paradigmas, sem sobressaltos ou desvios que nos remetam ao passado.

No caso em análise, o plano de recuperação reduzia em 60% o valor da dívida, alcançando apenas 40% do montante originalmente contratado. Além disso, previa o reescalonamento em oito anos sem juros, com limitação da correção monetária.

O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que seria válido o voto do Banco do Brasil, maior credor, que rejeitou o plano. Porém, a decisão do Tribunal paulista foi reformada em Brasília.

Como dito linhas acima, a decisão recente da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria apertada, concluiu ser abusivo o voto vencedor do Banco do Brasil, por  entender que o mesmo seria injustificável e destoante do princípio da preservação da empresa.

É compreensível que, em ambiente de negociação, uma das partes peça além do necessário, almejando com isso resultado final mais favorável que aquele que poderia obter se não lançasse mão desse artifício. Não se questiona a liberdade do devedor em apresentar o plano de recuperação que lhe seja conveniente, nem a forma de o fazer, conforme lhe pareça mais adequada e proveitosa. Mas as regras da boa convivência, quando visam à construção de soluções viáveis e mutuamente proveitosas, recomendam moderação, justeza e equidade. Veja-se, por outro lado, que os credores (ou qualquer deles) têm o direito de discordar. Direito este garantido por lei.

Ressalvada a particularidade da garantia, cuja renúncia desde logo salientamos deveria sempre carecer da manifestação expressa do credor titular, no campo da assembleia geral, a discordância de um credor minoritário cujo voto tenha sido vencido pouco ou nada representará para esse credor do ponto de vista prático. Afinal, em sua condição de vencido, ele tenderá a ser arrastado pela decisão concursal vencedora, obrigando-se a cumpri-la, ainda contra a sua vontade. Mas, se o credor dissidente for majoritário, como foi o caso do Banco do Brasil no caso em destaque, sua decisão ganha enorme relevância, a ponto de implicar a desaprovação do plano todo, com reflexo para todos os envolvidos.

A norma jurídica aponta para a necessidade de entendimento e convergência de propósitos entre as partes, sob pena de decretação da quebra do devedor. Só em certos casos, excepcionais, observados expressamente os requisitos legais, a solução poderia ser modificada judicialmente, desde que atendidos os critérios objetivos para o chamado cram down.

Cram down ocorre quando o juiz da recuperação judicial impõe aos credores discordantes a aprovação do plano reprovado nos moldes apresentados pela recuperanda embora já aceito pela maioria nominal dos demais credores, desde que o plano rejeitado tenha obtido, de forma cumulativa: 1) O voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia; 2) A aprovação de três das classes de credores; 3) Na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de um terço dos credores.

Como se trata de medida facultada ao magistrado em caráter excepcional, não basta que os requisitos legais tenham sido observados estritamente. Significa dizer que a aprovação judicial do plano de recuperação pela via e no contexto do Cram Down só deveria ocorrer excepcionalmente, apesar de observadas estritamente as formalidades expressamente previstas na norma. Afinal, o regime legal em vigor está centrado na livre manifestação de vontade das partes, devendo em regra afastarem-se desta a imposição e o arbítrio de outrora.

Sabemos que quando a intenção de uma das partes for puramente prejudicar a outra sem almejar benefício para si haverá ato ilícito que vicia a manifestação de vontade e eivando-a de abuso. Neste caso, o remédio não é o Cram Down, mas a declaração de voto abusivo, gratuitamente lesivo ao interesse do devedor. Contudo, essa hipótese de declaração de voto abusivo, quando for o caso, deve estar calcada em prova de que houve abusividade com vantagem ilícita para o credor votante ou para outrem. Isso não foi analisado no caso ora comentado, já que, por força da Súmula 7, o Superior Tribunal de Justiça não examina fatos e provas. Além disso, não houve instrução processual que discutisse esse fato [vantagem ilícita para o credor votante ou para outrem] em primeira instância. Senão veja-se o que estabelece o artigo 39, §6º, da Lei 11.101/05:

"§6º O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem".

A análise econômica do direito precisa ser invocada mais esta vez, porque é necessário considerar a dinâmica das relações econômicas na aplicação do direito. A economia tende sempre a alcançar soluções de equilíbrio, com maior ou menor sacrifício dos agentes, a depender das escolhas feitas em cada situação.

Não parece razoável, no atual regime consensual, obrigar o credor bancário a reconhecer prejuízo de tal monta (60% de deságio + prazo de pagamento de oito anos sem juros) simplesmente porque se assim não for se estaria desatendendo ao princípio da preservação da empresa. Ora, se a empresa devedora efetivamente carece de tamanho abatimento, parece improvável que ela possa mesmo recuperar-se, como infelizmente sói ocorrer. A função social da empresa só é plenamente exercida quando a empresa é lucrativa e viável. No plano econômico e das relações sociais, pior que uma empresa falida é uma empresa inviável. Ela gera expectativas em suas novas contratações, as quais tendem, lamentavelmente, à frustração e prejuízos, diante da situação financeira agonizante tendente à quebra.

Autores

  • é doutor em Direito pela PUC-SP. Professor adjunto de Direito Comercial e Tributário na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Sócio do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.

  • é advogado, especialista em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e professor convidado da FIA.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!