Opinião

Inconstitucionalidade do sigilo da agência reguladora em processo sancionatório

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

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7 de julho de 2022, 7h09

A lei que criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Lei nº 10.233/01, trouxe em seu artigo 78-B previsão de sigilo aos processos para apuração de infrações e aplicação de penalidades instaurados no bojo dessas Agências. Vejamos:

"Artigo 78-B. O processo administrativo para a apuração de infrações e aplicação de penalidades será circunstanciado e permanecerá em sigilo até decisão final".

Irresignada com a restrição imposta pela norma acima, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no o Supremo Tribunal Federal (STF), visando à declaração de inconstitucionalidade do artigo 78-B, da Lei nº 10.233/01, por supostamente violar os princípios da Publicidade e Acesso à Informação, insculpidos no artigo 37, caput e artigo 5º, XXXIII da Constituição, respectivamente.

A ADI foi distribuída ao eminente ministro Luís Roberto Barroso sob o nº 5.371, cujo julgamento foi no sentido da declaração de inconstitucionalidade do dispositivo supra, fixando-se a seguinte tese jurídica:

"Os processos administrativos sancionadores instaurados por agências reguladoras contra concessionárias de serviço público devem obedecer ao princípio da publicidade durante toda a sua tramitação, ressalvados eventuais atos que se enquadrem nas hipóteses de sigilo previstas na Constituição e na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011)."

Insta observar que o parquet não apresentou embargos de declaração objetivando o esclarecimento da expressão "concessionárias de serviço público", o que resultou na tese fixada em seus termos originais.

Feito esse breve prelúdio, deve-se ponderar se a tese jurídica fixada se restringe às concessionárias de serviço público, ou seja, àquelas que firmaram contrato de concessão com o Poder Concedente, regidas pela Lei nº 8.987/95, ou se a melhor interpretação seria a de que a tese jurídica se aplicaria, inclusive, às permissionárias e autorizatárias de serviço público.

Para tanto, há que se ultrapassar a mera literalidade da tese jurídica fixada, mergulhando-se na ratio decidendi do voto do eminente Relator.

Neste sentido, observa-se que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 78-B da Lei nº 10.233/01 se fulcrou em quatro premissas fundantes:

1) a regra no regime democrático instaurado pela Constituição de 1988 é a publicidade dos atos estatais, sendo o sigilo absolutamente excepcional;
2) a Constituição afasta a publicidade em apenas duas hipóteses: informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança do Estado e da sociedade (artigo 5º, XXXIII, parte final); e proteção à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (artigos 5º, X e 37, §3, II, CF/1988);
3) essas exceções constitucionais, regulamentadas pelo legislador especialmente na Lei de Acesso à Informação, devem ser interpretadas restritivamente, sob forte escrutínio do princípio da proporcionalidade;
4) esta Corte deve se manter vigilante na defesa da publicidade estatal, pois retrocessos à transparência pública têm sido recorrentes. Com fundamento nessas premissas, passo a analisar o pedido formulado nesta ação direta de inconstitucionalidade.

Ao se cotejar a primeira premissa fundante do voto vencedor, não se encontra qualquer fundamento para se diferenciar os processos sancionadores tendo-se como fato distintivo a natureza jurídica do ato de outorga, ou seja, o fato de a outorga se dar por Concessão, Permissão ou Autorização não apresenta qualquer relevância, visto que todos esses instrumentos devem se dobrar à publicidade dos atos estatais, corolário do regime democrático concebido pela Constituição da República.

No tocante à segunda premissa, arrazoa o eminente Relator que a Carta Cidadã excepciona a publicidade de atos estatais em apenas duas hipóteses, quando o sigilo for imprescindível: 1) à segurança do Estado e da sociedade e 2) à proteção à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.

Ora, não se vislumbra qualquer característica que diferencie Concessionárias, Permissionárias e Autorizatárias quanto à não subsunção de seus processos sancionadores às excepcionais hipóteses de sigilo constitucional. Não é a natureza jurídica do contrato de concessão que autoriza o sigilo, mas sim os efeitos que tal publicização pode gerar, como danos à Segurança do Estado e da Sociedade, bem como danos à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.

Em continuidade, articula o voto vencedor que as excepcionalidades à publicidade de atos estatais devem ser lidas restritivamente, ou seja, qualquer interpretação que venha a recrudescer as hipóteses de sigilo deve ser prontamente afastada; contrário sensu, a interpretação favorável à publicidade deve ser alargada, ou seja, deve-se conceder interpretação extensiva aos termos e excertos que favorecem a publicização de atos estatais.

Desta feita, ao se analisar a terceira premissa do julgado em questão, a leitura restritiva do termo "concessionárias" vai de encontro à própria ratio decidendi da declaração de inconstitucionalidade.

Se se busca efetivar o princípio do acesso à informação no âmbito da Administração Pública, limitar tal acesso apenas aos processos sancionadores em face das concessionárias de serviços público, passando-se ao largo das permissionárias e autorizatárias, significa utilizar restrição semântica para subverter a própria essência do julgado.

Ao se analisar a quarta e última premissa do julgado, o voto vencedor deixa claro que o Tribunal Excelso visa a agir em prol da mantença do acesso à informação como forma eficaz de controle social dos atos públicos, motivo pelo qual não há que se traçar quaisquer distinções quanto à necessidade de publicização de processos de infração e aplicação de penalidades, seja em face de concessionárias, seja em face de permissionárias e autorizatárias.

O caso em questão atrai a necessidade de se ponderar sobre qual método de interpretação constitucional será aplicado pela Administração Pública quanto ao cumprimento da tese jurídica firmada.

De um lado, tem-se o método de interpretação gramatical, fundado na Jurisprudência dos Conceitos, enquanto, do outro, tem-se o método hermenêutico-concretizador, idealizado por Konrad Hesse, método farol para a sã aplicação da norma constitucional (focaremos neste último, cotejando suas premissas à tese jurídica firmada).

"Interpretação constitucional é concretização" [1]. É com essa célebre frase cunhada por Konrad Hesse que exponho a essência e fundamentos do método hermenêutico-concretizador, indispensável à melhor elucidação de como se deve interpretar a tese jurídica firmada no julgamento da ADI nº 5.371.

Encontramos premissas na ideia do círculo hermenêutico que fundamentam o método hermenêutico-concretizador, para que se retrate, na atividade hermenêutica, a inescapável interação entre o intérprete e o objeto a ser interpretado, com mútua influência entre ambos, resultando na produção de um sentido. Nas palavras de Hesse:

"O intérprete (…) entende o conteúdo da norma de uma pré-compreensão, que primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece da confirmação, correção e revisão até que, como resultado de aproximação permanente dos projetos revisados, cada vez, ao 'objeto', determine-se univocamente a unidade de sentido" [2].

O método em análise assegura que o intérprete é parte indispensável na resultante interpretativa, inclusive devendo considerar suas pré-compreensões e cosmovisão, elidindo a utopia do intérprete completamente neutro.

Hesse propõe a utilização de princípios de interpretação constitucional como meios de aplicabilidade do método hermenêutico-concretizador, nomeadamente a 1) unidade da Constituição[3], 2) concordância prática[4], 3) exatidão funcional[5], 4) efeito integrador[6] e 5) força normativa da Constituição [7].

Sem a intenção de pormenorizar cada um desses princípios, passo a discorrer sucintamente sobre eles, de modo a visualizarmos a ratio fundante da exposição de Hesse, que busca validar o método hermenêutico-concretizador, o que nos possibilitará concluir sobre a melhor interpretação à tese jurídica em análise.

Com relação à unidade da Constituição, o autor assevera que a conexão e interdependência dos elementos individuais da Constituição fundamentam a necessidade de nunca olhar a norma de forma individual, mas sim de acordo com a conexão total na qual ela está inserida [8]. Desta forma, todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal modo a elidir eventuais contradições com outras normas também de envergadura constitucional.

Vê-se tal premissa ser atendida à medida que o voto vencedor busca analisar sigilo e publicidade de forma ponderada, sem elidir, por completo, o sigilo previsto no texto constitucional, mas, ao contrário, reconhecendo sua existência, porém com menor irradiação dado o caráter restritivo imposto pela própria Constituição da República.

Com relação à concordância prática, valemo-nos das precisas palavras de Hesse:

"Bens jurídicos protegidos jurídico-constitucionalmente devem, na resolução do problema, ser coordenados um ao outro de tal modo que cada um deles ganhe realidade. Onde nascem colisões não deve, em 'ponderação de bens' precipitada ou até 'ponderação de valor' abstrata, um ser realizado à custa do outro. Antes, o princípio da unidade da Constituição põe a tarefa de uma otimização: a ambos os bens devem ser traçados limites, para que ambos possam chegar à eficácia ótima" [9].

Pode-se observar a aplicabilidade do princípio da concordância prática nas situações em que estão envolvidos os direitos fundamentais de informação e, de outro lado, de sigilo. Com relação a esse conflito, tem o Supremo Tribunal Federal decidido que ao direito à informação deve ser assegurado um peso de maior relevância ante ao sigilo de informações, visto o caráter republicado norteador da Constituição da República. Ainda assim, mesmo nesses casos, subsiste o direito ao sigilo em certa medida, impedindo que situações ameaçadoras à segurança do Estado ou da Sociedade e que possam ferir a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas sejam publicizadas.

É preciso que, diante de cada caso concreto, se acomodem as normas protetivas de direitos fundamentais em colisão, sem que uma suprima a outra, mas garantindo que a abrangência de uma seja conciliada com a de outra, com vistas à obtenção do melhor arranjo para as particularidades do caso concreto.

A concordância prática é aferida a partir da análise do problema, ou seja, do caso concreto a ser deslindado pelo aplicador/intérprete.

No tocante à exatidão funcional, defende Hesse que o intérprete deve observar a distribuição de funções preconizada na norma constitucional, mormente aquelas envoltas à função do Tribunal Constitucional e do Legislador, não podendo aquele, no uso de sua função controladora, invadir a esfera legiferante deste, limitando impropriamente sua atividade produtora de normas [10].

Vê-se aqui que o STF agiu no pleno exercício de sua função jurisdicional, conferindo maior peso normativo ao texto constitucional, devendo-se suplantar dispositivo infraconstitucional que lhe contrarie a essência, sem que isso signifique invasão à esfera legislativa.

Quanto ao princípio do efeito integrador, aponta Hesse que, se para a Constituição é importante que se mantenha a unidade política, então, na solução de problemas jurídico-constitucionais, deve ela dar preferência àqueles pontos de vista que promovem este efeito criador e conservador da unidade política [11].

Percebe-se aqui, ainda, que o julgado visa à estabilização dos anseios da Sociedade, o que se efetiva com a publicização de processos administrativos para apuração de infrações e aplicação de penalidades, independentemente se se está diante de concessionárias, permissionárias ou autorizatárias de serviço público.

Com relação à força normativa da Constituição, defende Hesse que, na solução de problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar preferência aos pontos que visam a conceder às normas constitucionais força de efeito ótima [12], como se vê no caso em análise.

Desta feita, a aplicação do método de interpretação hermenêutico-concretizador desagua na conclusão de que a tese jurídica deve ser lida de forma a conferir máxima aplicabilidade ao princípio do acesso à informação, devendo o termo "concessionárias" ser lido sob a ótima de agentes destinatários de outorga, o que alcança as permissionárias e autorizatárias de serviços públicos.


[1] HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p. 61.

[2] Ibid., p. 61-62.

[3] Ibid., p. 65.

[4] Ibid., p. 66.

[5] Ibid., p. 67.

[6] Ibid., p. 68.

[7] Ibid., p. 68.

[8] Ibid., p. 65.

[9] Ibid., p. 66.

[10] Ibid., p. 67.

[11] Ibid., p. 68.

[12] Ibid., p. 68.

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