Opinião

Representação judicial de municípios e a Lei Federal nº 14.341/2022

Autor

  • Gustavo Machado Tavares

    é procurador do município do Recife presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) e conselheiro dos Institutos dos Advogados de Pernambuco (IAP).

7 de julho de 2022, 20h27

No dia 19 de maio deste ano, a advocacia pública municipal "amanheceu" atônita ao se deparar com a publicação da Lei Federal nº 14.341/2022, que alterou o artigo 75 do Código de Processo de Civil:

"Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:
(…)
III – o município, por seu prefeito, procurador ou Associação de Representação de Municípios, quando expressamente autorizada; (Redação dada pela Lei nº 14.341, de 2022)
(…)

§ 5º. A representação judicial do município pela Associação de Representação de Municípios somente poderá ocorrer em questões de interesse comum dos municípios associados e dependerá de autorização do respectivo chefe do Poder Executivo municipal, com indicação específica do direito ou da obrigação a ser objeto das medidas judiciais" (Incluído pela Lei nº 14.341, de 2022).

Mais. O artigo 12 da referida Lei Federal nº 14.341/2022 preconiza que os municípios, uma vez representados judicialmente por associação de municípios, não gozarão das prerrogativas da Fazenda Pública. Vejamos novamente:

"Art. 12. Quando constituídas como pessoa jurídica de direito privado, as Associações de Representação de Municípios não gozarão das prerrogativas de direito material e de direito processual asseguradas aos municípios."

Esses dois dispositivos por si só dão a exata dimensão do quadro de perplexidade causado aos mais de 20 mil procuradores e procuradoras municipais existentes no país, sejam das 26 capitais, das grandes e médias cidades, sejam daqueles municípios menores.

Trata-se de um verdadeiro e gravíssimo retrocesso republicano e institucional, com nítida ofensa ao desenho constitucional do Estado Federativo brasileiro pelo Constituinte de 1988.

Longe de querer estabelecer, de nossa parte, voz única, a pretensão aqui é contribuir com o debate e trazer reflexões iniciais nas linhas já manifestadas pela professora e procuradora municipal do Rio de Janeiro Vanice Valle [1] e professor e procurador do município de São Paulo José Eduardo Cardozo[2] — que também já exerceu os cargos de ministro do Estado de Justiça e advogado-geral da União.

E, nessa perspectiva, sintetizam-se alguns pontos cruciais, sem prejuízo de aprofundamentos futuros.

1. A alteração promovida no CPC viola a arquitetura constitucional de uma das atribuições — representação judicial — da advocacia pública municipal enquanto função essencial à Justiça que é.

A despeito da literalidade dos artigos 131 e 132 apenas fazer referência expressa às carreiras da advocacia pública federal e estadual, é evidente que a dimensão das atribuições constitucionais da advocacia pública como um todo alcança todas as esferas da Federação e o Supremo Tribunal Federal já anunciou que a advocacia pública municipal, por se tratar de carreira de Estado e de caráter permanente, integra as funções essenciais à Justiça: "Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito" (RE 663.696/MG — repercussão geral — Tese nº 510).

No referido RE 663.696/MG, o ministro Luiz Fux afirmou que "é imperativo que todas as disposições pertinentes à Advocacia Pública sejam aplicadas às Procuradorias Municipais, sob pena de se incorrer em grave violação à organicidade da Carta Maior".

Recentemente, na ocasião do julgamento do ARE 1.311.066/SP, o eminente ministro relator Gilmar Mendes, fez expressas menções ao entendimento do STF firmado naquele RE 663.696/MG indicando que "o eminente relator do processo, Min. Luiz Fux, consignou expressamente que as mesmas regras aplicadas aos procuradores estaduais e federais devem ser aplicadas aos procuradores municipais, em razão de serem todas carreiras de advocacia pública essenciais à justiça".

2. A alteração promovida no CPC também viola a norma republicana do concurso público disposta no artigo 37, inciso II, da CF.

O exercício de atribuições técnicas — dentre quais se incluem a representação judicial — no serviço público é reservado para servidores ocupantes de cargos efetivos, selecionados e cujas investiduras se dão por concurso público.

Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da autos do RE n° 1.041.210/SP em sede de repercussão geral, fixou a Tese de nº 1.010 segunda a qual servidores comissionados não podem exercer atribuições técnicas.

Ora, sendo a representação judicial uma atribuição técnica, de caráter permanente e não eventual, encontrando-se inserida no plexo das atribuições da advocacia pública municipal, como admitir que essa representação judicial possa ser delegada para uma pessoa jurídica de direito privado como a Associação de Representação de Município?

Em outros termos, se o concurso público é uma exigência constitucional para a investidura em cargo ou emprego público, o que dizer quando se está diante de atribuições do cargo de procurador municipal que integra as funções essenciais à Justiça?

A função de representação judicial está inserida na esfera institucional da advocacia pública a ser exercida, no plano dos entes municipais, pelos respectivos procuradores e procuradoras municipais, membros que compõem a estrutura administrativa e conformam corpo técnico regularmente integrado por servidores públicos efetivos, admitidos através de concurso público.

Não por outra razão, a Comissão Nacional de Advocacia Pública do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, nessa diretriz, editou a Súmula de nº 01: "O exercício das funções da Advocacia Pública, na União, nos Estados, nos Municípios e no Distrito Federal, constitui atividade exclusiva dos advogados públicos efetivos a teor dos artigos 131 e 132 da Constituição Federal de 1988".

3. A alteração promovida no CPC viola normas constitucionais de licitação, na medida em que, uma vez autorizada a representação judicial do município para tal ou qual associação de município, a escolha posterior do advogado ou do escritório de advocacia ficará à revelia dos órgãos de controle e da legislação aplicável à espécie.

Aliás, se a associação de município é uma pessoa jurídica de direito privado qual a legislação que se aplica para a escolha/seleção do advogado ou do escritório de advocacia? Lei de Licitações e Contratos Administrativos? Mas há contrato administrativo (público) firmado entre o município e associação de representação de município para fins de se permitir a representação judicial? Pelo texto da já mencionada Lei Federal nº 14.341/2022 consta apenas que a representação judicial "dependerá de autorização do respectivo chefe do Poder Executivo municipal". Sequer exige-se controle prévio dessa delegação da representação judicial através de autorização legislativa da Câmara Municipal. Quem arcará com os custos e despesas do processo judicial: município ou associação de município? Quem arcará com os custos do advogado ou do escritório de advocacia: município ou associação de município? Qual o respectivo valor? São tantas indagações e problemáticas decorrentes dessa delegação de representação judicial que, por certo, estabelecer-se-á uma enorme e gravíssima insegurança jurídica.

Some-se a isso a possibilidade de existência de mais de uma Associação de Representação de Municípios. A bem da verdade, inúmeras, posto que, segundo a própria Lei Federal nº 14.341/2022 em seu artigo 7º, §3º: "Os Municípios poderão filiar-se a mais de uma associação".

Agora, acrescente-se que no Brasil existem 5.568 municípios.

É dizer, o caos jurídico será patente e se avizinha.

4. A alteração promovida no CPC, a teor do ponto acima, viola os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade dispostos no artigo 37, caput, da CF.

5. Por derradeiro e empós tudo quando aduzido, a alteração promovida no CPC viola os artigos 1º e 18 da CF ao instituir uma "quarta e anômala" esfera da Federação ao prever uma delegação de representação judicial, que é uma das atribuições inseridas como função essencial à Justiça, de um ente federativo — município — para uma pessoa jurídica de direito privado (associação de município).

O direito e o interesse público materializados e discutidos no processo judicial não serão exercidos pelo município através de procurador e procuradora municipal, ou ainda, excepcionalmente por advogados contratados através da Lei Licitações e Contratos Administrativos. Mas, sim, uma pessoa jurídica de direito privado com a autorização da representação judicial da municipalidade.

Veja-se, para corroborar esse raciocínio, a Lei Federal nº 14.341/2022, em seu artigo 12, prevê que os municípios, uma vez representados judicialmente por associação de municípios, não gozaram das prerrogativas de direito processual e de direito material da Fazenda Pública.

Assim, com base nessa previsão, não incidirão as prerrogativas de intimação pessoal, de prazo em dobro, de prescrição em favor da Fazenda Pública, da remessa necessária, dispensa de adiantamento de despesas processuais, preparo, dentre tantos outros.

Imaginemos — apenas a título de exemplo — a situação da associação de município sucumbir no processo judicial, como fica o regramento do citado artigo 12? como serão processados os honorários advocatícios ou a condenação pecuniária e/ou obrigação de fazer ou não fazer? esse cumprimento de sentença será processado pelas normas da execução contra a Fazenda Pública? Haverá a incidência da imposição constitucional do precatório e da requisição de pequeno valor previstos no artigo 100 da Constituição?

São indagações, algumas um tanto quanto absurdas — mas absurda se cuida essa espécie de representação judicial de um ente federativo por uma pessoa jurídica de direito privado —, que bem demonstram quão temerária e, sobretudo e por tudo, inconstitucional é a alteração promovida pela Lei Federal nº 14.341/2022 no Código de Processo Civil

A tamanha gravidade, por certo, será objeto de estudos mais verticais e de críticas pela doutrina, de modo a merecer a devida pecha de inconstitucional.

A guisa de conclusão e a partir dessas primeiras reflexões, resta empreender esforços para que o espírito republicano da engenharia constitucional do Estado Federativo brasileiro pela Constituição de 1988 seja mantido e preservado, cabendo a nós que integramos a advocacia pública municipal a resistência, tal qual a letra da composição de Capiba: "Nós somos madeira de lei que cupim não rói".

 


[2] CARDOZO, José Eduardo. Associação de Representação de Municípios e a Lei Federal nº 14.341, de 18 de maio de 2022. Artigo publicado no Informativo Fórum Nacional

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