Opinião

Impactos das alterações da LIA no Estatuto da Cidade

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6 de julho de 2022, 18h17

A improbidade administrativa é fenômeno relativamente novo no cenário jurídico brasileiro. A partir da promulgação da Constituição de 1988 o instituto passa a receber previsão, e posteriormente refinamento por meio de lei ordinária. As primeiras linhas sobre a responsabilização por ato de improbidade são traçadas no próprio artigo 37, §4º da Carta Magna, segundo o qual "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível". (BRASIL, 2022)

Quatro anos após a constituinte, surge a Lei nº 8.429/92, que institui o microssistema da improbidade administrativa, e que completará neste ano exatamente 30 anos de vigência. Sua criação e idealização foram o resultado de "uma crescente pressão popular e institucional no sentido de punição a agentes públicos e políticos envolvidos em casos de corrupção, lesão aos cofres públicos e outros atos ofensivos aos princípios da Administração Pública, especialmente à moralidade administrativa". (DIAS, MENEZES, 2022)

No entanto, segundo André Bonat Cordeiro, a legislação de improbidade até então vigente, não correspondia à dinâmica atual das relações passíveis de serem analisadas sob o prisma da improbidade. Atualmente o contexto é bastante diferente, novos diplomas normativos tangentes à legislação ordinária de improbidade surgiram (tais como a Lei Anticorrupção), sendo necessária a atualização normativa, que veio em boa hora.

Nesse cenário dinâmico, a Lei 8.429/92 sofreu alterações significativas produzidas pela Lei 14.230/21. Algumas discussões provenientes da doutrina especializada vêm debatendo se a novidade trata de simples alteração, (mera reforma legislativa) ou se realmente foram alteradas as bases fundantes da Lei 8.429/1992, inaugurando verdadeiro novo sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa [1].

Para o objeto do artigo em comento, tendo em vista que a LIA foi tecnicamente alterada com relação às condutas de tipo, existe uma outra discussão igualmente carecida de análise, que gira em torno de analisar os efeitos/impactos das mudanças ocasionadas em outras legislações que mencionam a improbidade. O recorte aqui intentado é especificamente o  artigo 52, inciso II do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/02), que prevê conduta omissiva de improbidade, consistente no ato de "deixar de proceder ao adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, conforme o disposto no §4º do artigo 8º desta Lei;

Ao dissecar referido dispositivo, percebe-se a menção ao artigo 8º, §4º, podendo-se perceber que este artigo integra o Capítulo II, Seção IV, da Lei, cujo título refere-se à desapropriação com pagamento em títulos.

A desapropriação com pagamento em títulos, ou desapropriação sancionatória é aquela prevista no artigo 182, III da Constituição Federal de 1988, de competência municipal, podendo ser manejada, quando o proprietário não roga à sua propriedade a função social que lhe é devida [2]. Importante observar que ela é medida ultima ratio, devendo ser promovida apenas quanto infrutífera a primeira e segunda hipótese: parcelamento ou edificação compulsórios e imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

O artigo 8º §4º da Lei 10.257/02 trata justamente da hipótese onde houve a desapropriação sancionatória em âmbito municipal, orientando o gestor público que proceda ao adequado aproveitamento do imóvel no prazo devido, prazo esse contado a partir da sua incorporação ao patrimônio público, sob pena de retrocessão.

Assim sendo, constatada a omissão do gestor público, na adequada destinação do bem público, esta teria o condão de violar os padrões de gestão sustentável do patrimônio público? Essa omissão poderia ser apurada mediante os tipos previstos pela Lei 8.429/91 com as devidas alterações?

A utilização do termo "adequado aproveitamento", a nosso entender, tem tudo a ver com a gestão sustentável da propriedade, e relaciona-se flagrantemente com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 11 da Organização das Nações Unidas (ONU), que prevê, até 2030 "Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis" (NAÇÕES UNIDAS, 2022).

No mesmo sentido, essa utilização adequada deve alinhar-se com a Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P), que consiste em um projeto estratégico de gestão pública que tem como finalidade principal promover a revisão dos padrões de produção e consumo, bem como a adoção de novos referenciais em busca da sustentabilidade no âmbito da Administração Pública. O Programa se destina às instituições públicas das três esferas (federal, estadual e municipal) e dos três poderes da República (executivo, legislativo e judiciário), destacando-se como um dos eixos temáticos o "uso racional dos recursos naturais e bens públicos".

A A3P coloca como central a questão da otimização da utilização dos recursos públicos, a qual relaciona-se com "o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público", devendo portanto ser observada pelo gestor municipal.

O termo sustentabilidade remonta ao Relatório Brundtland, fruto do trabalho da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), criada em 1983 pela ONU. O documento balizou o termo "desenvolvimento sustentável"  definindo-o como o processo que "satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades''. (CMMAD, 1988) É a partir daí que o conceito de desenvolvimento sustentável passa a ficar conhecido.

Com o desenvolvimento da teoria de Elkington (1998) a sustentabilidade passa a abranger três dimensões que se relacionam: a econômica, a ambiental e a social, conhecidas como tripple bottom line. As contribuições desta teoria podem ser deslocadas para a esfera pública, que ao incorporar um imóvel oriundo de desapropriação deve fazê-lo de um modo sustentável e racional.

E isso porque o grande desafio da administração pública está em desenvolver modelos de gestão, que alinhem suas missões e objetivos às responsabilidades de implementação de um sistema de gestão ambiental eco-eficiência de forma a produzir sempre bens e serviços mais úteis. (BARATA, KLIGERMAN E GOMEZ, 2007, APUD VENTURINI, LOPES,  20165, p. 6)

No que toca o sistema de responsabilização proveniente das alterações na LIA, as modalidades de improbidade administrativas previstas na Lei 8.429/1992, continuam a prosperar, a saber: "atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (artigo 9º), atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (artigo 10) e atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (artigo 11)" (CINTRA, SPAZIANTE).

O elemento subjetivo que deflagra o elo de encadeamento lógico entre vontade, conduta, e resultado, com a consequente demonstração do grau de culpabilidade do agente, pode aparecer como dolo ou culpa. (GARCIA; ALVES, 2017, APUD CINTRA, SPAZIANTE, 2022).

Pela redação antiga, todas as modalidades contemplavam o dolo na conduta do agente, sendo o artigo 10 também caracterizado pelo elemento culpa. A Lei 14.230/21 extingue a modalidade culposa de improbidade administrativa, com a retirada da expressão "culposa" do artigo 10 da LIA, e passa a exigir, pela atual redação dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA a conduta dolosa do autor do ato de improbidade (NEVES; OLIVEIRA, 2022 APUD CINTRA, SPAZIANTE, 2022). Somente as ações com dolo é que estão sujeitas ao regime da improbidade, portanto. É o chamado dolo específico.

Entende-se que a expressão "deixar de proceder" prevista no artigo 52, II da Lei 10.257/2022 remonta a uma conduta omissiva, sendo a omissão também relevante para a configuração do ato ilícito. A omissão, segundo a doutrina de José de Aguiar Dias, é sinônimo de negligência:

"[…] Omissão é a negligência, o esquecimento das regras de proceder, no desenvolvimento da atividade. Negligência é a omissão daquilo que razoavelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos. É a inobservância das normas que nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento. A negligência ocorre na omissão das precauções exigidas pela salvaguarda do dever a que o agente é obrigado. Configura-se, principalmente, […] na ignorância e no erro evitáveis, quando impedem o agente de conhecer o dever; isto é deixar de ouvir o que é audível, deixar de ver o que é visível" (DIAS, 1997, APUD GOMIDE, 2018, p. 361.

Seja a omissão considerada como aspecto da negligência (a doutrina de DIAS) e portanto uma modalidade de culpa, seja a omissão caracterizada apenas quando há o dever de agir (Gomide), fato é que a omissão por culpa não é punível nos atuais moldes da Lei 8.429/91, e para a conduta de ação ou omissão, exige-se agora o dolo específico, que consiste, segundo o artigo 1º, §2º na "vontade consciente e livre de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos  9º, 10 e 11 desta lei, não bastando a voluntariedade do agente".

O dolo específico, especialmente para os fins de caracterização de ato de improbidade, é o ato eivado de má fé. O erro grosseiro, a falta de zelo com a coisa pública, a negligência, podem até ser punidos em outra esfera, de modo que não ficarão necessariamente impunes, mas não mais caracterizarão atos de improbidade (GAJARDONI; CRUZ; FAVRETO, 2022 APUD CINTRA, SPAZIANTE, 2022).

Portanto, em tom conclusivo, somente as ações com dolo, ou seja, a fórmula pautada por consciência + vontade + finalidade de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade, enfim, o ato comissivo, é que estão sujeitas ao regime atual da improbidade.

E nesse sentido, a improbidade administrativa na modalidade omissão prevista no artigo 52, II da Lei 10.257/2002 resta comprometida, pois aproxima-se muito mais de uma modalidade culposa, (omissão por negligência) (e portanto, inexistente no sistema de responsabilização atual) bem como por uma imensa dificuldade de comprovação do dolo específico na omissão.

Referências
ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2017.
ALMEIDA, F. O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
BARATA, M. M. L.; KLIGERMAN, D. C.; GOMEZ, C. M. A gestão ambiental no setor público: uma questão de relevância social e econômica. Ciência & Saúde coletiva, v. 12, nº 1, Jan./Mar. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232007000100019. Acesso em: 29 jun 2022.
BORIN DE OLIVEIRA CLARO, Priscila, PIMENTEL CLARO, Danny, AMÂNCIO, Robson Entendendo o conceito de sustentabilidade nas organizações. Revista de Administração
 RAUSP [on-line]. 2008, Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=223417504001. Acesso em 05 abr 22
BRASIL. Nações Unidas: Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/11 Acesso em 29 jun 22.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 29 jun 22.
CORDEIRO, André Bonat. As inovações da Lei de Improbidade Administrativa. 2022. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-19/cordeiro-inovacoes-lei-improbidade-administrativa Acesso em 29 jun 22.
DIAS, Joelson. MENEZES, Ubiratan. Possíveis consequências jurídicas das novas disposições da Lei de Improbidade. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-06/direito-eleitoral-possiveis-consequencias-juridicas-novas-disposicoes-lei-improbidade-administrativa-inseridas-lei-1423021 Acesso em 29 jun 22.
ELKINGTON, J. Cannibals with forks: the triple bottom line of 21st century business.Oxford: Capstone, 1997. APUD VENTURINI, Lauren dal Bem; LOPES, Luis Felipe Dias. O MODELO TRIPLE BOTTOM LINE E A SUSTENTABILIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: pequenas práticas que fazem a diferença. 2015. 15 f. Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Gestão Pública EAD, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/11691. Acesso em: 29 jun. 2022.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo, GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021 APUD SPAZIANTE, Ana Clara; CINTRA, Rodrigo Suzuki. O dolo específico na nova lei de Improbidade Administrativa. 2022. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360052/o-dolo-especifico-na-nova-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 29 jun. 2022.
GOMIDE, Alexandre Junqueira. DEVER DE AGIR E OMISSÃO: aspectos relevantes para o estudo da responsabilidade civil. Revista Jurídica Luso-Brasileira (Rjlb), Lisboa, Portugal, v. 5, nº 4, p. 359-381, jul. 2018. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/5/2018_05_0359_0381.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.
LEFF, Enrique. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo dos saberes. Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2012. Disponível aqui. Acesso em 29 jun 2022.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Comentários à Reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
SPAZIANTE, Ana Clara; CINTRA, Rodrigo Suzuki. O dolo específico na nova lei de Improbidade Administrativa. 2022. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360052/o-dolo-especifico-na-nova-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 29 jun. 2022.
VENTURINI, Lauren dal Bem; LOPES, Luis Felipe Dias. O MODELO TRIPLE BOTTOM LINE E A SUSTENTABILIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: pequenas práticas que fazem a diferença. 2015. 15 f. Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Gestão Pública EAD, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/11691. Acesso em: 29 jun. 2022.

 


[1] Nesse sentido, conferir a perspectiva do Prof. José Miguel Garcia Medina, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente Acesso em 29 jun 22.

[2] Vide artigo 5º incisos XXII  é garantido o direito de propriedade e XXIII — a propriedade atenderá a sua função social;

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