Direito Eleitoral

Possíveis consequências jurídicas das novas disposições da Lei de Improbidade

Autores

  • Joelson Dias

    é advogado sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados (Brasília-DF) ex-ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mestre em Direito pela Universidade Harvard secretário do Conselho de Colégios e Ordem dos Advogados do Mercosul (Coadem) ex-procurador da Fazenda Nacional e membro da Comissão Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB e da Abradep.

  • Ubiratan Menezes

    é advogado consultor do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados sócio do escritório Menezes Advogados pós-graduado em Advocacia Pública pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e ex-membro da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional Distrito Federal.

6 de junho de 2022, 10h42

A Lei nº 8.429/92, que institui o microssistema da improbidade administrativa, completará neste ano exatamente 30 anos de vigência. Sua criação e idealização foram o resultado de uma crescente pressão popular e institucional no sentido de punição a agentes públicos e políticos envolvidos em casos de corrupção, lesão aos cofres públicos e outros atos ofensivos aos princípios da Administração Pública, especialmente à moralidade administrativa.

Foram várias as consequências da edição e aplicação do referido diploma legal no cenário político brasileiro. Foi sob a égide da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) que vários e proeminentes parlamentares, chefes de governo e outros agentes públicos foram julgados e condenados a penas que englobam a perda da função pública, o ressarcimento de valores, o pagamento de multa civil e a suspensão de direitos políticos.

Em muitos casos tais condenações afetaram profundamente o desfecho de processos eleitorais em âmbito municipal, estadual e federal. ale lembrar que a condenação por ato de improbidade pode gerar a inelegibilidade do candidato, nos termos do artigo 1º, alínea "I", da Lei Complementar nº 64/1990 [1].

É justamente nesse contexto que, em 25 de outubro de 2021, foi editada a Lei nº 14.230/21, promovendo profundas mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, ainda não sendo possível prever o alcance jurídico dessa alteração legislativa

A justificativa do projeto de Lei nº 10.887/2018  que deu origem à referida reforma da Lei de Improbidade Administrativa  afirma que a Lei nº º 8.429/92 "carecia de revisão para sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade e também para adaptar-se às construções hermenêuticas da própria jurisprudência, consolidadas em decisões dos Tribunais".

Vários atores políticos lançaram duras críticas às condenações exaradas pelo Judiciário e à atuação do Ministério Público durante esses anos: desde o "desvirtuamento" do instituto da improbidade, que teria passado a ser utilizado pelo fiscal da lei como forma de pressionar e controlar a adoção de políticas públicas, até a utilização do instituto da improbidade com fins políticos e eleitorais

Na prática, o que se vê é que as alterações instituídas pela nova Lei são quase que totalmente destinadas a impor critérios mais rigorosos para o ajuizamento das ações de improbidade administrativa.

Dentre esses novos critérios, talvez os mais importantes sejam relativos à tipificação do ato ímprobo. Não só a nova redação legal afasta completamente a possibilidade de condenação a título culposo, como também estabelece em seu artigo 1º, §3º, que "considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente".

A nova redação legal visa claramente afastar a construção jurisprudencial denominada "dolo genérico", amplamente utilizada para balizar condenações. Segundo tal construção, a mera voluntariedade do agente público de praticar um determinado ato já bastaria para a caracterização do dolo, não sendo necessária a comprovação de um fim ilícito específico.

O novo texto legal também afasta a possibilidade de condenação por ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da Lei, baseada em jurisprudência (artigo 1º, §8º), extingue conceituações de atos ímprobos e altera profundamente algumas das tipificações mais importantes, como a de frustrar a licitude de procedimento licitatório (artigo 10, VIII), que passa a exigir a comprovação de perda patrimonial efetiva para a condenação, também aqui contrariando construção jurisprudencial dos Tribunais Superiores de que em tais casos o dano ao erário poderia ser meramente presumido.

Verifica-se também a vedação da utilização da ação de ato de improbidade para controle de legalidade de políticas públicas e para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (artigo 17-D [2]), o que procura claramente afastar a possibilidade de imposição aos agentes públicos das pesadas sanções descritas na LIA em casos nos quais o pano de fundo da discussão seja a eficácia ou a pertinência de determinadas políticas públicas e decisões de agentes políticos.

Somente a partir de tais exemplos vê-se claramente que as novas disposições legais não só limitarão a propositura de ações de improbidade, como também poderão levar à imediata extinção de ações ora em curso cuja tipificação legal imputada aos réus esteja em descompasso com as novas determinações legais.

Para além disso, a nova Lei passou a determinar também seu artigo 1º, §4º, que "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador". Tal dispositivo abre também a discussão para a retroatividade das novas disposições a processos ainda em curso e a condenações, transitadas em julgado ou não. Afinal de contas, ao direito administrativo sancionador são aplicadas garantias como a irretroatividade da Lei Penal, salvo em benefício do réu (artigo 5º, XL, Constituição da República Federativa do Brasil  CRFB).

Partindo desse princípio, várias das inovações instituídas pela Lei nº 14.230  como é o caso do instituto da prescrição intercorrente, com prazo fixado em Lei de apenas quatro anos, bem como a extinção e a alterações de tipificações legais  têm o potencial de não só acarretar a imediata extinção de várias ações em curso, mas também alcançar condenações já proferidas pela Justiça, algumas até mesmo já transitadas em julgado.

Já se verifica um movimento normativo e político destinado a ganhar terreno nos entendimentos dos Tribunais e na comunidade jurídica a respeito da aplicação de tais dispositivos. Em 12 de novembro de 2021 a Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal aprovou a Orientação 12/2021, destinada a orientar membros do MPF sobre a aplicação da nova Lei.

O texto da referida Orientação, ao tratar sobre a retroatividade da nova Lei, advoga que "O artigo 37  §4º da CF, ao tutelar a probidade administrativa, impede a retroatividade automática de novas normas mais benéficas como vedação ao retrocesso no enfrentamento de condutas ímprobas ou práticas corruptivas", ao passo que defende um correto juízo de modo a preservar o princípio constitucional da moralidade administrativa.

A respeito do Inquérito Civil Público, a orientação vai mais longe e já assinala até mesmo a futura propositura de ações diretas de inconstitucionalidade contra a nova Lei, pois defende que "A instituição de prazo máximo de conclusão de inquérito civil público para apuração de atos de improbidade administrativa (artigo 23  §2º da LIA) afronta a autonomia institucional do Ministério Público (artigo 127 – §1° da CF)".

Em outra esteira, Fábio Medina Osório, em recente artigo publicado em 5 de novembro de 2021, defende que "Tratando-se a prescrição da pretensão sancionatória matéria de direito material e de ordem pública, como, aliás, a própria norma prevê ao dizer em seu §8º do artigo 23 que deve ser conhecida e decretada até mesmo de ofício, impõe-se reconhecer tratar-se de norma posterior mais benigna, que deve retroagir[3].

Por sua vez, o STF já reconheceu a repercussão geral da matéria, especificamente para  definir a "eventual (IR) RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo  dolo  para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente". O leading case a ser ainda julgado em seu mérito é o Agravo em Recurso Especial nº 843989/PR.

Como se vê, os interesses envolvidos são muitos e os embates são inevitáveis. Já se assinalam discussões judiciais futuras sobre a constitucionalidade da nova Lei e um grande debate jurisprudencial sobre o alcance de seus novos dispositivos, com atenção especial para os institutos do chamado "dolo genérico", da retroatividade das novas disposições legais e da prescrição, tudo isso às vésperas do período eleitoral em âmbitos federal e estadual.

Nesse cenário, não é demais se esperar por reviravoltas no cenário das eleições de 2022 que se aproximam, advindas não só de condenações de agentes políticos, mas também da eventual revisão de decisões condenatórias.


[1] l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; (acrescida pelo artigo 2º da LC nº 135/2010).

[2] A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

[3] Disponível aqui.

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  • Brave

    é advogado, sócio do escritório Barbosa & Dias Advogados Associados, em Brasília, mestre em Direito pela Universidade de Harvard e ex-ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

  • Brave

    é advogado, consultor do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, sócio do escritório Menezes Advogados, pós-graduado em Advocacia Pública pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e ex-membro da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional Distrito Federal.

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