Opinião

Análise da repercussão geral como forma inibidora de recursos

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  • Leonardo Estephan

    é formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) advogado e criador do perfil @stfemfoco em todas as redes sociais.

31 de janeiro de 2022, 18h06

Criada pela Emenda Constitucional nº 45/04 e inicialmente disciplinada pela Lei nº 11.418/06, a repercussão geral só foi efetivamente implementada com uma emenda ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, em 2007.

Em abril deste ano fará, então, 15 anos a sua implementação e estamos longe de atingir a meta de realizar um filtro constitucional, a fim de que chegassem à nossa Corte Suprema somente as causas mais importantes.

"Nenhuma suprema corte no mundo julga mais que o STF", disse o ministro Dias Toffoli para a TV ConJur em 2020 [1].

Segundo o portal de transparência do Supremo Tribunal Federal, só em 2021 foram julgados 4.738 recursos extraordinários e 21,4% deles foram providos, ao passo que foram julgados 25.553 agravos em recurso extraordinário (ARE) e apenas 3,2% deles foram providos.

Por outro lado, em 2021 foram distribuídos 58.586 AREs e REs no STF.

A enorme quantidade de recursos que exigem a existência de repercussão geral nos induz a concluir, primeiramente, que talvez os tribunais de segunda instância exerçam uma jurisprudência defensiva ao que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

A jurisprudência defensiva do órgão hierarquicamente inferior é o que primeiro vem à mente para justificar o elevado número de recursos no Supremo.

Não se ignore o tamanho do Judiciário brasileiro e, consequentemente, a demanda descomunal que chega ao seu órgão de cúpula, que tem um oceano de processos a serem divididos entre apenas 11 ilhas.

Também não se esqueça do inconformismo incomum do brasileiro quanto às decisões judiciais.

Mas não são só essas as causas do grande número de processos no STF  e quiçá as principais. Em verdade, a jurisprudência defensiva também acontece no próprio Supremo.

Na maioria dos casos, os ministros, sem analisar a repercussão geral, monocraticamente costumam negar seguimento aos recursos extraordinários com base na afirmação de que veiculariam matérias: 1) infraconstitucionais; 2) de fato que não podem ser analisadas em instância extraordinária; e/ou 3) com ausência de prequestionamento.

Tal é conhecido, seja pelos advogados militantes no STF, quer pelos seus próprios ministros, como jurisprudência defensiva dos gabinetes. Essa maneira de lidar com a elevada quantidade de recursos julgados pelo Supremo, de acordo com os números, não tem obtido a eficiência necessária.

A conduta supostamente inibidora dos recursos feita por decisões monocráticas de não seguimento ao RE, antes de se analisar a repercussão geral do recurso, não só não diminui os recursos, como talvez contribua mais ainda para o elevado número de recursos no STF.

Se a repercussão geral fosse analisada em primeiro plano, antes de outros requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário, muito provavelmente traria um efeito inibidor do ajuizamento de novos recursos.

Assim seria que, caso o relator não entendesse pela existência da repercussão geral, submeteria o processo ao Plenário, o qual, se recusasse a repercussão geral por dois terços dos ministros, inadmitiria o RE, sem a possibilidade de ARE, o que já diminuiria muito a distribuição de recursos no STF.

No entanto, os ministros insistem nas três formas padronizadas como cláusula de barreira, o que possivelmente estimula ainda mais a interposição de novos recursos.

Isso porque há uma inevitável subjetividade na eleição do que irá ser considerado como tema constitucional, ou como matéria fática (ou que viola a Constituição apenas indiretamente), ou se houve prequestionamento.

E o fazem porque é humanamente impossível analisar caso a caso o número de recursos que chegam a cada gabinete. O mesmo acontece com a análise da repercussão geral.

Seja para afetar o Plenário quanto à análise da repercussão geral, quer para aplicar a jurisprudência defensiva da corte monocraticamente, certo é que há uma escolha dos casos que devem ser julgados.

Essa não é escolha dos ministros, mas do constituinte brasileiro, que, como vimos, estabeleceu um mandado constitucional de se filtrar o que é julgado pelo órgão de cúpula do Judiciário. O problema é que monocraticamente o crivo da repercussão geral não é prioridade entre os ministros.

Essa escolha também ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos. A Supreme Court of United States (Scotus) tem reconhecida discricionariedade para escolher os temas que julgará. Entre 2007 e 2020, a Scotus escolheu atuar somente em 1.062 casos [2]. No período de outubro de 2020 a junho de 2021, optou por julgar 69 processos [3].

Não há como o STF chegar a esses números, em razão da complexidade e peculiaridade do sistema Judiciário brasileiro, mas talvez possa melhorar os seus números, que trouxemos acima.

Como vimos, existe uma determinação constitucional de que ao STF cabe julgar somente as questões mais relevantes para os interesses do país, mas ainda se insiste em utilizar métodos monocráticos de jurisprudência defensiva.

Qual seria a diferença entre não conhecer recursos com base nos três fundamentos vistos acima (infraconstitucionalidade, matéria de fato e/ou prequestionamento) e inadmiti-los por ausência de repercussão geral? A diferença é que a recusa da repercussão geral deve ser reconhecida por ao menos oito ministros, enquanto a negativa de seguimento pela jurisprudência defensiva acaba sendo conferida por um ministro.

A análise com prioridade de análise da repercussão geral em relação aos outros requisitos do RE, além de ser determinação do constituinte, pode conferir um efeito dissuasivo de recursos maior para o futuro.

Ora, a escolha monocrática de qual RE irá se julgar, que vem sendo adotada pelos ministros, antes de  ou sem   analisar a repercussão geral, faz com que advogados ajuízem mais recursos (principalmente o ARE), com o sentimento de "quem sabe é conhecido meu recurso, como foi o do outro". E quanto mais se recorre, mais os ministros precisam utilizar a jurisprudência defensiva. Eis o ciclo vicioso recursal.

Como dito, a posição de oito ministros em Plenário (quórum exigido para recusar a repercussão geral) já elimina, por exemplo, a possibilidade de ajuizamento de ARE, o que, por si só, já justifica o que se pretende demostrar aqui.

Embora em ambas as formas de escolha de recursos a serem julgados haja uma certa subjetividade por parte dos ministros, certamente o interessado na modificação da decisão observará mais a jurisprudência do STF quando o Plenário recusar a repercussão geral do que quando um só ministro o fizer com base quase sempre nos mesmos três fundamentos.

No último caso, a sensação do advogado é a da necessidade de interposição de um recurso para romper a jurisprudência defensiva monocrática do STF. Já se houvesse a praxe de analisar a repercussão geral antes, a necessidade primordial do advogado passaria a ser de ter de demonstrar a repercussão geral, o que é mais difícil, haja vista ter de convencer dois terços dos ministros.

Assim, seria interessante ver o resultado da prática de analisar a admissibilidade do recurso extraordinário com prioridade em relação à existência, ou não, de repercussão geral em detrimento dos outros requisitos.

Certo é que a maneira de escolher os recursos ainda utilizada pelos ministros, de acordo com os números do portal do STF, não vem surtindo efeitos dissuasivos nos recorrentes.

A prioridade da análise da repercussão geral na admissibilidade do RE talvez fosse uma das alternativas para cumprir o crivo constitucional implementado no país há 15 anos.

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