Defesa da Concorrência

Reparação de danos concorrenciais e o tesouro perdido

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31 de janeiro de 2022, 8h00

O direito dos prejudicados de ingressarem em juízo para obter indenização por perdas e danos encontra-se previsto na Lei de Defesa da Concorrência (LDC). Em que pese, entretanto, a longa vigência dessa autorização legislativa, a comparação entre a significativa atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) na repressão de ilícitos concorrenciais e as ações de reparação de danos concorrenciais (ARDCs) revela um descompasso intrigante entre public e private enforcement e um grau de incipiência desse último [1]. Por quê?

Spacca
Embora juristas da área estudem o tema já há algum tempo, empresas (afetadas ou investigadas por cartéis) a todo o tempo ainda se questionam sobre as probabilidades de acionarem ou serem acionadas no Judiciário em ações de reparação de danos concorrenciais, e a resposta é normalmente cercada de incertezas. Teoriza-se acerca dos possíveis obstáculos ao ajuizamento desse tipo de ação no Brasil [2], e de que maneira eles deveriam ser enfrentados pela legislação vigente ou pelas propostas de alteração da LDC em tramitação no Congresso. De um lado, há barreiras legais e procedimentais que inibem de forma significativa um desejo latente de muitos agentes em efetivamente perquirirem reparações por danos derivados de condutas anticompetitivas. De outro, há preocupações delicadas com a proporcionalidade das sanções cumuladas, e com o impacto desse eventual fomento sobre os programas de leniência e de colaboração do Cade, ferramentas fundamentais para a detecção e persecução de cartéis.

Nos últimos anos, o tema também tem ganhado mais atenção em razão da tramitação do Projeto de Lei nº 11.275/2018, que prevê diversas alterações na LDC para fomentar essas ações, dentre elas a previsão de reparação de danos concorrenciais em dobro.

Dentre os principais obstáculos jurídicos estão: a indefinição acerca do início da contagem do prazo prescricional da pretensão indenizatória; a dificuldade de acesso a provas em poder do cartelista e/ou do Cade; e a possibilidade ou não de uso de passing on defense (alegação de que alguns agentes que clamam ter sofrido danos de cartel na verdade repassaram eventuais sobrepreços ao longo da cadeia produtiva, não tendo eles próprios absorvido qualquer dano). Dentre os obstáculos fáticos, é possível indicar a falta de familiaridade do Judiciário brasileiro com o tema; o tempo de duração do processo, sua previsibilidade e custos relacionados); e a ausência de incentivos que estimulem o ajuizamento de ARDCs.

Obstáculos
Com relação à prescrição, os precedentes judiciais estão caminhando para estabelecer a decisão do Cade como o termo inicial da contagem do prazo [3] (termo que também poderá restar definido em lei caso aprovado o PL 11.275/2018), além da possibilidade de uma eventual investigação criminal anterior à decisão do Cade servir de causa que impede o início da fluência do prazo [4]. Tais precedentes, caso perenizados, diminuiriam o grau de incerteza acerca da viabilidade do ajuizamento de ARDCs e podem servir como medida de seu incentivo. Contudo, fato é que ainda se encontra decisões judiciais divergentes [5] a esse respeito (por exemplo, estabelecendo termos iniciais de contagem do prazo a partir do conhecimento do fato), o que mantém um nível razoável de incerteza a esse respeito.

O acesso à prova teve um marco relevante desde que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o sigilo dos documentos e informações de acordos de colaboração firmados com o Cade não pode ser absoluto, devendo ser levantado após o julgamento da investigação administrativa [6]. Os tribunais também têm sido sensíveis a pedidos de exibição de documentos em poder do infrator [7], e diante dessa evolução jurisprudencial a utilização do expediente de produção antecipada de prova para levantamento de acervo probatório antes do ajuizamento da ARDC tem sido cada vez mais frequente [8]. Não obstante, esses movimentos judiciais provocaram a edição de resolução [9] pelo próprio Cade pretendendo regular o procedimento para acesso a provas. A autoridade antitruste buscou um equilíbrio sensível entre, de um lado, dar vazão aos movimentos crescentes de busca por reparação de danos (de certa forma encorajados pela autoridade), mas ao mesmo tempo proteger as garantias de sigilo da prova trazida por beneficiários de acordos de leniência e colaboração com o Cade, um elemento essencial para a manutenção dos incentivos a esses instrumentos. Novamente, ainda há um razoável grau de incerteza sobre o ponto ótimo das buscas por acesso a provas, que terá grande influência de futuras decisões judiciais e do próprio Cade.

Recente análise [10] sobre passing-on defense revelou que atualmente prevalece na jurisprudência brasileira o entendimento de presunção do repasse de sobrepreço decorrente de cartel, sendo imputado aos autores das ARDCs o ônus da prova acerca da não realização do repasse. Embora o entendimento jurisprudencial em si possa não ser um estímulo ao ajuizamento das ações, a análise quantitativa da pesquisa indica que 44% da ARDCs analisadas para o trabalho foram ajuizadas nos últimos cinco anos, demonstrando uma tendência de aumento do debate de mérito acerca do tema no judiciário.

Com relação aos obstáculos fáticos, são notórios o tempo de duração do processo judicial e os custos incorridos no patrocínio das causas, sem falar no sopesamento de eventuais embates com parceiros comerciais (dado que em regra o cartelista é fornecedor da empresa prejudicada) e as incertezas sobre o desfecho do processo [11]. Dito isso, os debates sobre criação de varas especializadas [12], além da promoção de curso específicos para magistrados [13] são exemplos de iniciativas para aumentar a familiaridade do Judiciário com o tema das ARDCs. Além disso, a perspectiva de reparação de danos concorrenciais em dobro trazida pelo PL 11.275/2018 também pode servir de estímulo. Um eventual cenário de maior previsibilidade acerca da solução a ser encontrada no Judiciário igualmente seria um fator de encorajamento [14]. É sempre relevante considerar, também, o dever fiduciário da empresa prejudicada para com seus acionistas. A despeito de tudo isso, porém, fato é que as incertezas, como visto, ainda são relevantes, e que um obstáculo como o tempo de duração do processo (que acaba normalmente por se somar ao tempo de duração do processo administrativo no Cade) é um fator significativo, cuja solução não está no horizonte.

Dito isso, a mencionada (e parcial) evolução em relação a alguns dos obstáculos jurídicos e fáticos às ARDCs indicam para uma possível mudança de comportamento dos prejudicados e dos próprios operadores do direito. O crescimento do número de ações e, sobretudo, precedentes jurisprudenciais acerca do tema valida essa percepção. Em 2017, o comitê de Contencioso e Arbitragem do Ibrac publicou estudo com levantamento de precedentes envolvendo diversos temas de direito da concorrência, dentre eles ações de reparação de dano [15]. A atualização desse estudo, recentemente, complementou o levantamento com julgados prolatados até julho de 2020, e foi constatado um aumento de 24% do número de precedentes acerca de ARDCs. Em 2020, por exemplo, foram ajuizadas relevantes ações relacionadas aos supostos carteis do câmbio [16] e cimento [17] que debatem de forma muito sofisticada os temas jurídicos e econômicos relacionados às ações.

Conclusão
Em suma, em tempos recentes foram significativos o incremento e a evolução de julgados que, em um grau importante, trazem maior clareza e, portanto, maior confiança sobre os caminhos possíveis para o ajuizamento de ARDCs. Por este e outros motivos, também parece notório um aquecimento de iniciativas em busca de reparações, embora de forma ainda tímida. Os obstáculos jurídicos, portanto, estão decrescendo, apesar de ainda haver incertezas relevantes.

Algumas alterações legislativas em debate podem contribuir para a diminuição dessas incertezas, e também gerar maiores incentivos para o ajuizamento de ARDCs. Neste caso, o risco de alterações legais que não sejam muito bem ponderadas é ir com muita sede ao pote, e a fonte secar. Primeiro, gerar incertezas e desincentivos ao programa de leniência e de acordos do Cade, que é talvez a principal ferramenta antitruste para detecção de cartéis. Segundo, criar uma sobreposição cumulada de sanções e custos que seja pouco sustentável. É bastante incerto se o resultado legislativo alcançará esse difícil equilíbrio.

Restam, ainda, os obstáculos fáticos. O maior nível de informação a juízes e outros agentes relevantes cresce junto com a evolução dos julgados. Permanece, notadamente, a morosidade dos processos judiciais. Trata-se de uma barreira significativa, mas que ao mesmo tempo não impediu o crescimento de ações de reparação cíveis em outras esferas.

Para o futuro, é razoável esperar que a sedimentação de precedentes em instâncias superiores possa diluir incertas, e gerar ações em um número mais relevante que os atuais. Empresas em ambos os polos — ativo e passivo — devem estar atentas a esse movimento. O avanço das iniciativas legislativas também tende a ser um game changer. É importante que a autoridade antitruste e legisladores zelem para que sejam mudanças para melhor. E segue a caça ao tesouro.


[1] MARTINEZ, Ana Paula; ARAUJO, Mariana Tavares. Private damages in Brazil: early beginnings, big stumbling blocks. Disponível em: http://www.competitionpolicyinternational.com/private-damages-in-brazil-early-beginnings-big-stumbling-block/. Acesso em: 24/1/2022

[2] MARTINS, Frederico Bastos Pinheiro. Obstáculos às ações privadas de reparação de danos decorrentes de cartéis. Dissertação (Mestrado profissional em Direito dos Negócios) – Faculdade de Direito, Fundação Getúlio Vargas (FGV), São Paulo, 2017. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18247. Acesso em: 24/1/2022.

[3] TJ-SP, 32ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000, AI nº 2094420-36.2018.8.26.0000, AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000, rel. des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. 11/10/2018; TJ-SP, 33ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2103903-90.2018.8.26.0000, AI nº 2101940-47.2018.8.26.0000, AI nº 2094234-13.2018.8.26.0000, rel. des. Luiz Eurico, j. 18/2/2019; TJ-SP, 5ª Câmara de Direito Privado, AC nº 1076734-73.2017.8.26.0100, rel. des. Moreira Viegas, j. 25/9/2019.

[4] STJ, 2ª Turma, AgInt no REsp 1.749.206/MG, rel. min. Herman Benjamin, j. 21/5/2019, DJe 19/6/2019; STJ, REsp 1.887.913/SP, rel. min. Marco Aurélio Belizze, DJe 14-12-2021; TJ-SP, 27ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2196694-20.2014.8.26.0000, AI nº 2075742-75.2015.8.26.0000, rel. des. Sergio Alfieri, j. 25/8/2015.

[5] TJ-MG, 11ª Câmara Cível, AC n. 1.0024.06.984815-8/0033, rel. des. Mariza Porto, j. 29-06-2016; TJ-SP, 14ª Câmara de Direito Privado, AC nº 1013093-40.2015.8.26.0114, rel. des. Thiago de Siqueira, j. 31/8/2018

[6] STJ, 3ª Turma, REsp 1.554.986/SP, rel. min. Marco Aurélio Belizze, j. 8/3/2016, DJe 5/4/2016.

[7] TJ-MG, 14ª Câmara Cível, AI nº 1.0145.10.060085-0/001, rel. des. Estevão Lucchesi, j. 13/8/2015.

[8] Processo nº 1009349-97.2018.4.01.3400, 4ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, autora: Associação de Comércio Exterior do Brasil, rés: Cade e outros;

[9] Resolução nº 21/2018.

[10] FERNANDES, Luana Graziela Alves. Passing on defense: jurisprudência brasileira atual em ações de reparação de danos por cartel. Revista do IBRAC. nº 1, p. 19-38, 2021. Disponível em: https://ibrac.org.br/UPLOADS/PDF/RevistadoIBRAC/Revista_do_IBRAC_n_1_2021.pdf. Acesso em: 27/1/2022

[11] O prejudicado pela prática de um cartel deve estar disposto a (1) aguardar por diversos anos até a resolução do seu litígio pelo judiciário, (2) incorrer em elevados custos para patrocínio da causa e comprovação de seu direito, e (3) suportar eventuais represálias comerciais do cartelista que, a rigor, pode continuar a ser seu fornecedor ou parceiro comercial. (LOEVINGER, Lee. Private Action – The strongest pillar of Antitrust. The Antitrust Bulletin, v. 3. P. 170, 1958.

[12] Em maio de 2017, o Colegiado do Conselho da Justiça Federal (CNF) aprovou resolução que dispõe sobre proposta de especialização de varas federais em Direito da Concorrência e Comércio Internacional e desde então foi criada uma vara especializada na Segunda Região e criado um grupo de trabalho para estudo de viabilidade de implantação de uma na 3ª Região.

[13] Seminário "O Judiciário na Defesa da Concorrência", promovidos pela Associação de Juízes Federais (Ajufe) e Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac) em 21/5/2016; 1º Seminário Internacional "A Livre Concorrência e os Tribunais Brasileiros", promovido pela Ajufesp, em parceria com a Ajufe, a Emag, o Ibrac, e o Cedes (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social) em 4/10/2019.

[14] LANDES, William M.; POSNER, Richard A. Should Indirect Purchasers Have Standing to Sue Under the Antitrust Laws? An Economic Analysis of the Rule of Illinois Brick. The University of Chicago Law Review, v. 46. nø 3, p. 614, 1979.

[15] DRAGO, Bruno de Luca. A livre concorrência e os tribunais brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. Bruno de Luca Drago, Bruno Lanna Peixoto (coord.). São Paulo: Singula, 2018.

[16] Processo nº 1042501-11.2021.8.26.0100, 6ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo-SP, autora: Petróleo Brasileiro S.A, rés: Banco Santander (Brasil) S.A e outros; Processo nº 1044341-56.2021.8.26.0100, 1ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo-SP, autora: Associação de Comércio Exterior do Brasil, rés: Banco Morgan Stanley S.A e outros

[17] Processo nº 5030542-89.2021.4.03.6100, 10ª Vara Cível Federal de São Paulo-SP, autor: Ministério Público Federal — PR/SP, rés: Votorantim Cimentos S.A e outros

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