Opinião

Estelionato contratual: conduta criminosa ou mero descumprimento de dever civil?

Autor

  • Alneir Fernando S. Maia

    é advogado sócio do Escritório Andrada Sociedade de Advogados mestre em Direito pela UFMG professor da Universidade Fumec professor de Direito Penal da ESA-OAB/MG e membro efetivo da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/MG.

29 de janeiro de 2022, 6h03

O presente ensaio tem por objetivo uma breve discussão acerca da figura do estelionato contratual como conduta criminosa e o fato de uma lesão patrimonial sofrida pela vítima decorrente de uma relação contratual ser uma mera infração civil, afastando a reprimenda penal.

Nestes tempos de pandemia há um enorme risco de pessoas deixarem de cumprir os seus contratos ardilosamente e usar o escudo do vírus e seus reflexos para se safar de suas responsabilidades, tanto civis quanto penais. Há também o risco de determinados agentes firmarem contratos, a pretexto da situação emergencial, já visando ao seu descumprimento, com consequente prejuízo para o outro signatário.

Diante de circunstâncias como essas, a que somente no futuro teremos resposta, há a possibilidade de aplicação da lei penal (estelionato contratual) ou a questão se resolverá apenas na seara cível?

É sabido que a punição penal é a ultima ratio, ou seja, devemos submeter as condutas para a sanção na esfera criminal somente quando realmente necessária e adequada para a devida reprovação.

Assim, certas ações que se afeiçoam a questões penais acabam sendo deslocadas para o juízo cível visando ao deslinde da pendenga, sob o argumento acima, muito embora essas ações possam ser claramente punidas no âmbito penal.

O STJ possui precedentes no sentido de reconhecer que o contrato pode ser usado para a prática de estelionato, o que pode dar azo à persecução penal de certas condutas que inicialmente se afeiçoam a ilícitos civis.

Portanto, em momentos históricos como o presente, no qual as relações estão abaladas em decorrência da pandemia, pessoas mal-intencionadas podem tentar se valer de um descumprimento contratual, agindo ardilosamente para obter vantagem indevida.

Não se pode fechar os olhos para as dificuldades que muitos estão tendo e terão para honrar os seus compromissos, mas nestes tempos de pandemia, de desarranjo econômico e social, o terreno pode ser fértil para agentes obterem vantagem indevida através de ardil contratual.

Sobre a questão pontifica Luiz Régis Prado [1]:

"Ainda nesse contexto, impõe-se mencionar algo sobre a problemática distinção entre fraude penal e fraude civil. Nas relações econômicas diárias, é comum e até tolerável a malícia entre as partes, cada qual valorizando o seu produto, para melhor vendê-lo, ou depreciando o objeto alheio, para melhor comprá-lo. No entanto, o emprego de meio fraudulento, levando outrem a incorrer em erro, com a consequente obtenção de vantagem ilícita por parte do iludente e acarretando prejuízo patrimonial ao enganado, insere-se no âmbito da fraude, que pode acarretar meras consequências civis, como a anulação do contrato, cumulada com perdas e danos (artigo 171, II e 443, CC), ou, dependendo do grau da fraude, amoldar-se no tipo legal descrito no artigo 171 do Código Penal. Na realidade, a fraude é única, e a propalada diferença é apenas de grau de quantidade.
Assevera-se, ao analisar todas as teorias que versam sobre o tema, que “o critério menos precário é o que pode ser assim fixado: há quase sempre fraude penal quando, relativamente idôneo o meio iludente, se descobre, na investigação retrospectiva do fato, a ideia preconcebida, o propósito ab initio da frustração do equivalente econômico. Com exceção da hipótese do ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude.
No mesmo sentido, afirma-se que entre fraude civil e fraude penal  como em geral entre ilícito civil e ilícito penal  não há nenhuma diferença qualitativa; mas tão somente uma diferença quantitativa, no sentido de que a lei penal só intervém para reprimir a fraude quando esta se apresenta com aquela intensidade especial que se traduz no emprego de artifícios e mentiras idôneas. Quando existe tal elemento, estabelecido pela lei positiva para incriminar a fraude, o delito se converte em estelionato. Mas, com essa transferência  que faz com que o fato seja passível de sanção penal, além de civil , a fraude não muda de natureza".

Data venia, ouso discordar parcialmente do mestre acima citado quando ele diz que no âmbito civil a malícia entre as partes é admissível, uma vez que em respeito aos deveres anexos aos contratos, como a boa-fé objetiva adiante debatida, exige-se lisura dos agentes nas relações negociais privadas.

Assim, o ardil, a malícia, a fraude devem ser repelidas, tanto na esfera cível quanto na seara penal.

Já a doutrina de Guilherme de Souza Nucci expõe [2]:

"Esperteza nas atividades comerciais: não configura o delito de estelionato, resolvendo-se, se for o caso, na esfera civil. É natural, no âmbito do comércio, o enaltecimento dos produtos colocados à venda, mesmo que sejam de qualidade duvidosa. Cabe ao consumidor ater-se às marcas de confiança, à tradição da empresa e à informação captada. Por outro lado, pode dar margem ao estelionato quando a propaganda chega a extrapolar os limites do razoável, afirmando situações inexistentes, negando garantia outrora prometida, tudo a demonstrar o ânimo de fraude por parte do vendedor ou fornecedor do produto ou serviço".

O festejado autor até reconhece a possibilidade de "esperteza" nas atividades comerciais de consumo. Também, com o devido acatamento, não podemos concordar com a colocação, pois sendo o consumidor a parte hipossuficiente da relação de consumo, o fornecedor deve obedecer aos ditamos do CDC, em especial o respeito ao consumidor e aos seus direitos englobando como um todo o objeto da relação de consumo.

A par do comentário acima, na doutrina do professor Nucci também se admite o estelionato quando na relação contratual o agente extrapola os limites do razoável para negociar seus produtos ou serviços.

Também na linha de admitir o contrato como instrumento para a prática de estelionato, a decisão do STJ no RHC 79449/SP, cuja parte essencial da ementa será adiante transcrita:

"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE.  AUSÊNCIA  DE JUSTA CAUSA. NÃO OCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO  DE MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL E DE AUSÊNCIA DE DOLO DE LUDIBRIAR. NECESSIDADE  DE REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. MATÉRIAS INCABÍVEIS NA VIA ESTREITA  DO  WRIT. A  EXISTÊNCIA DE CONTRATO INADIMPLIDO  NA  ESFERA CÍVEL NÃO OBSTA A CONFIGURAÇÃO DE ILÍCITO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO.
(…)
O  fato  de  existir  um  contrato de empréstimo inadimplido não implica,  por  si  só, inexistência de crime de estelionato com mera configuração  de ilícito civil. Isto porque as cláusulas contratuais descumpridas podem  constituir,  justamente,  o meio utilizado para induzir a vítima em erro e se obter a vantagem indevida. Precedente".

Frente ao que foi exposto, há plenas condições de enquadramento da conduta contratual de determinados agentes como estelionato.

Deve ser salientado que, para a devida adequação típica da conduta de estelionato contratual, é necessário o dolo antecedente do envolvido, ou seja, a intenção de induzir o outro contratante ao erro através de ardil.

O mero inadimplemento posterior de um contrato, sem a presença de dolo antecedente, não configura a conduta do artigo 171 do CP. Muitas situações de descumprimento contratual atualmente, decorrentes da pandemia, serão fortuitas e, portanto, não terão a potencialidade de gerar a imputação penal.

Pondera-se que, de qualquer forma, sempre que um dos agentes atua com ardil para levar vantagem indevida em um contrato, cometendo estelionato, fere o dever anexo de todo negócio, que é a boa-fé objetiva.

No momento em que vivemos, atuar com boa-fé é fundamental para bom andamento das relações contratuais.

Sob o ponto de vista penal, o estelionato é caracterizado pela fraude. Onde, a partir dela, o sujeito passivo da relação jurídica é induzido ou mantido em erro para a obtenção da vantagem ilícita, em prejuízo alheio. Ou seja, consegue-se um benefício ou lucro ilícito em razão do engano provocado na vítima e essa colabora com o agente sem perceber que está se despojando de seus bens.

Por intermédio de um contrato e no momento de pandemia pelo qual passamos, há a possibilidade de alguém agir de acordo com a maneira acima descrita, incorrendo em risco de ter a sua conduta enquadrada como crime.

Assim, o elemento subjetivo é que vai esclarecer se a atitude do agente é cível ou penal e vai definir em qual esfera será a persecução. O dolo antecedente de obter vantagem é que apontará se o descumprimento contratual foi mero efeito da pandemia ou se o agente atuou com ardil para se locupletar indevidamente e criminalmente.

Portanto, se na origem e na sua execução do contrato o agente obedece ao dever anexo da boa-fé, o inadimplemento contratual não tem o condão de gerar a imputação penal ao contratante. Se o inadimplemento for fortuito, em decorrência do momento histórico que vivemos, não haverá, em tese, o elemento subjetivo do dolo antecedente.

A boa-fé objetiva é norma de conduta proba. Impõe aos sujeitos de direito uma determinada condução do contrato, seja omissiva ou comissiva, quando de suas relações obrigacionais.

A boa-fé subjetiva é atinente ao fato de se desconhecer algum vício do negócio jurídico. Já a boa-fé objetiva é um padrão comportamental a ser seguido baseado na lealdade e na probidade, proibindo o comportamento contraditório, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente.

Deve ser salientado que a boa-fé se presume e a má-fé tem de ser provada.

Assim, apenas o contexto fático (que no momento é extremamente conturbado por conta da pandemia) é que vai definir se a obtenção de vantagem em decorrência de um contrato será ou não enquadrada como crime.

Frente ao que foi exposto, com a devida temperança, é possível a aproximação entre o Direito Contratual e o Direito Penal para o enquadramento de certas condutas como estelionato contratual, especialmente para apurar certas ações de agentes que, se valendo do manto da situação caótica decorrente da pandemia, obtêm vantagem indevida, induzindo o outro contratante a erro.

 

Referências bibliográficas
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado  19 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019.

PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal: parte especial  artigos 121 a 249 do CP, volume 2  3. Ed, Rio de Janeiro, Forense, 2019.

ROSA, Alexandre Morais da; TOVO, Alexandre. A lógica do estelionato contratual pode ser usada nas colaborações premiadas? Disponível em www.conjur.com.br.

 


[1] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal: parte especial  artigos 121 a 249 do CP, volume 2  3. Ed, Rio de Janeiro, Forense, 2019.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado  19 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Autores

  • é advogado sócio do Escritório Andrada Sociedade de Advogados, mestre em Direito pela UFMG, professor da Universidade Fumec, professor de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia da OAB-MG e membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB-MG.

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