Opinião

Os baldes de água furtados, a mídia Barrichello e um Habeas do STF

Autor

28 de janeiro de 2022, 10h31

1. A mídia Barrichello
Em novembro de 2021, a ConJur noticiou Habeas Corpus deferido pelo ministro Alexandre de Moraes, liberando uma mulher do estado de Minas presa há 4 meses por ter furtado água.

Spacca
Assim: (i) Um juiz mineiro decretou a preventiva, (ii) o Tribunal de Minas considerou a prisão regular, (iii) o Superior Tribunal de Justiça negou o HC por ela ser, além de tudo, perigosa e, finalmente, (iv) o STF teve que entrar em campo para dizer o óbvio: prender alguém por esse tipo de crime deixaria Sir Coke de cabelos em pé (falo em Coke porque é citado no belo voto do ministro Alexandre de Moraes).

Passados dois meses, manchetes nacionais — grande mídia — dão conta de que o STF mandou soltar mulher que furtou baldes de água.

Por que só agora? Porque a mídia segue uma a outra e, por acaso, alguém descobriu a notícia da revista Consultor Jurídico.

Como Barrichello, chegaram atrasados. Claro: e com estardalhaço — repetindo os tempos em que dava mais noticia quando o homem mordia o cachorro.

2. Não fosse o bizarro, a grande mídia não daria pelota para a notícia
A ConJur é um site jurídico. Em tempos de fragmentação, o leitor das redes sociais se interessa por qualquer coisa que tenha até cinco linhas. Tipo twitter. A notícia da ConJur tinha mais de 20 linhas. Logo, passou despercebida.

Algum repórter da grande mídia deve ter encontrado a notícia. Só que ninguém citou a fonte. A ConJur, atenta, garimpa a notícia. E a grande mídia vai lá e chupa a matéria. E não dá o crédito. Parece a doutrina jurídica ou aquilo que ocorre com as notícias "do Direito". Esses dias vi um artigo aqui na ConJur (e não só um) em que o articulista descobriu a pólvora sobre um tema da teoria do Direito. Dezenas escreveram antes dele. Mas o artigo dele foi o "primeiro", o que "abre estradas". Grau zero de sentido. No princípio… era o artigo dele. E correu para o abraço. Isso ocorre seguidamente.

3. A enxurrada de repetições e a falta de uma reflexão mais profunda
Interessante é que ninguém da grande mídia foi atrás do conteúdo do habeas corpus. Provavelmente chuparam a matéria da ConJur. Só que ali tem o anexo (HC 208.999) — a diligência da ConJur mostra o profissionalismo do site.

Porém, o que me interessa dizer — e só o faço por causa da repercussão artificial da grande mídia — é que coisas desse tipo ocorrem todos os dias. A mídia mostra como se fosse exceção. E aí está o problema.

O que a mídia deveria fazer é uma reportagem acerca das razões pelas quais magistrados, agentes políticos do Estado, deixam que uma mulher fique 4 meses presa por ter furtado água (na verdade, não foram três baldes; provavelmente foi bem mais água, não importa — a maioria dos jornais sequer deu detalhes).

O que faltou: (i) É possível que alguém fique preso por furtar água potável? (ii) Por que o STF tem de resolver isso? Esses são os pontos fulcrais.

Aqui vai sugestão de pauta: Se alguém sonega tributos em milhões, pode pagar antes do recebimento da denúncia e até mesmo depois. E estará livre, não só de qualquer prisão, mas também do próprio crime. E por vezes tem parcelamento por Refis. Dezenas de anos…

Já em 1990, como membro do Ministério Público, sustentei a extensão das benesses dos sonegadores de impostos em favor dos furtos desse tipo e em cleptagens que não deixaram prejuízo (aqui). Escrevi dezenas de artigos sore isso. Aliás, fui o primeiro a escrever sobre isso e sustentar em um processo — tese aliás aceita por anos em tribunais. O primeiro artigo foi em 1990.

Na década de 90 (aqui) eu falava da tese "do Refis para a patuleia". Afinal, se o andar de cima tem esse benefício para escapar do crime de sonegação (que, cá para nós, é mais grave que furtar água — desculpem minha platitude), por que não as estender aos pobres como a senhora que ficou 4 meses presa?

Era isso que eu esperava da mídia Barrichello. E cumprimentos à ConJur sempre atenta e que não chega atrasada.

Só isso. Passei das 10 linhas. Corro o risco de só me lerem daqui a 3 meses.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!