Questão de Gênero

Crime de descumprimento de medidas protetivas quando autor é intimado por edital

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28 de janeiro de 2022, 8h00

A Lei Maria da Penha instituiu no Brasil um sistema de enfrentamento da violência contra as mulheres. Um de seus mecanismos mais conhecidos são as medidas protetivas de urgência, que visam a impedir que a pessoa agressora continue cometendo violências contra a mulher vitimada. Com o tempo, percebeu-se a necessidade de dotar as medidas protetivas de maior coercibilidade, criando-se o crime do artigo 24-A da Lei nº 13.340/2006. Confira-se o dispositivo:

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"Artigo 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: [Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018]

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos [Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018]"

Como já tivemos oportunidade de mencionar, este é o único crime previsto na Lei Maria da Penha e, por se tratar de descumprimento de ordem judicial, é essencial que a pessoa a quem a determinação se dirige seja intimada da concessão das medidas protetivas. Em outras palavras: para que a decisão judicial que deferiu as medidas protetivas tenha validade e efetivamente cumpra com sua finalidade, é necessário que a pessoa agressora dela tome conhecimento formal, vez que é ela o principal destinatário das ordens e proibições ali contidas.

Assim, após o deferimento das medidas protetivas de urgência, o juiz determinará que o oficial de justiça intime pessoalmente o agressor da decisão, devendo ele exarar seu ciente. Ocorre que, na prática, duas situações impedem que este cenário se forme adequadamente: a mulher vitimada nem sequer sabe indicar onde a pessoa agressora pode ser localizada, ou o noticiado não é encontrado pelo oficial de justiça para ser notificado, o que pode decorrer de tentativa de ocultação.

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Os atos processuais de comunicação podem ser reais ou fictos. Será real a intimação ou citação quando o oficial efetivamente encontrar a pessoa e ela apuser a sua assinatura no mandado. Mas em não se encontrando a pessoa, a legislação processual cria formas de atuação que farão presumir a comunicação. São a citação ou intimação por hora certa e a citação ou intimação por edital. Ambas as hipóteses são ditas intimação ou citação ficta.

Na hipótese em que o oficial de justiça suspeita que a pessoa a ser intimada do deferimento da medida protetiva está se ocultando, deverá certificar o fato e fazer a intimação por hora certa. Já se o autor não foi localizado no endereço fornecido, apesar de comparecimento do oficial em datas e horários diversos, poderá ser feita a intimação por edital.

O enunciado 42 do Fonavid prevê que é cabível a intimação com hora certa de medidas protetivas de urgência, em analogia à citação com hora certa (artigo 362 do CPP e artigo 227 do CPC). Já o enunciado 43 nos traz que "esgotadas todas as possibilidades de intimação pessoal, será cabível a intimação por edital das decisões de medidas protetivas de urgência".

Conclui-se, assim, ser válida a intimação ficta das medidas protetivas, especialmente quando se tem indicativos de que ele está tentando evitar sua intimação pessoal. Mas, como explicitado acima, esse ato de comunicação é um mecanismo criado pela lei para fazer presumir que o ato se realizou, dando-lhe todas as consequências que a intimação pessoal teria.

A dúvida que permeia este artigo relaciona-se à possibilidade de configuração do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência nas hipóteses de intimação ficta. E mais: poderá haver prisão em flagrante por esse crime? Se o agressor não foi pessoalmente intimado da decisão, como poderá cumpri-la? Como poderá ser penalizado por não a ter cumprido?

A fim de traçar um paralelo, vamos trazer a baila outro tema já abordado por nós, qual seja, eventual descumprimento de medidas protetivas pelo autor quando, por iniciativa da vítima eles reatam o relacionamento. Entendemos nessa situação que o agressor que reata o relacionamento com a vítima, com o consentimento desta, não tem conhecimento da ilicitude de sua conduta.

Ainda que vija entre nós a presunção de que todos conhecem a lei (artigo 3º da Lindb), fere a razoabilidade exigir que o suposto agressor, leigo, restrinja sua aproximação da vítima de violência doméstica quando ela mesma consinta no restabelecimento da relação. Concluímos, quando da elaboração do artigo publicado em https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/opiniao-medidas-protetivas-consentimento-vitima, que ainda que a conduta do agressor fosse considerada típica, ele teria agido acobertado pelo erro de proibição, podendo ser isento de pena.

Ora, se no caso mencionado, o autor foi intimado pessoalmente das medidas protetivas e pode ser isento de pena, com mais razão, ainda, aquele que foi fictamente intimado. Não se pode entender razoável que de uma pessoa que não teve real conhecimento de uma decisão seja exigido seu cumprimento.

A fim de ilustrar exemplificativamente, podemos mencionar o caso daquele agressor que, intimado por edital (intimação ficta) que volta a procurar a vítima com a intenção de reatar o relacionamento, sem contudo, praticar qualquer fato típico. A vítima, ciente da decisão judicial, chama a polícia militar que comparece ao local e conduz o autor à presença da autoridade policial (Delegado de Polícia). A autoridade policial deve autuar esse agressor em flagrante pelo crime previsto no artigo 24-A da Lei nº 11.340/06? Lembrando que além do suposto descumprimento da decisão judicial, o autor não praticou qualquer outro fato típico.

Seria razoável que ele respondesse pelo crime do artigo 24-A? Seria razoável que ele fosse autuado em flagrante delito?

A menos que as circunstâncias do caso indiquem que tenha conhecimento da medida, cremos que a resposta só pode ser negativa, não se configurando o crime. Não haveria dolo de descumprimento da medida protetiva e, sem dolo, não há que se falar em crime. Isso porque, o elemento subjetivo do crime previsto no artigo 24-A é o dolo. Não há previsão da modalidade culposa. Não se pode presumir que o agente atua com dolo quando não tem conhecimento da decisão.

O procedimento que entendemos ser o correto a ser adotado seria o autor, neste ato ser intimado pela autoridade policial a respeito das medidas protetivas e informado que seu descumprimento pode gerar a incidência do artigo 24-A da Lei Maria da Penha, podendo acarretar sua prisão.

Solução diversa seria dada caso, além do descumprimento da decisão judicial, o autor tivesse praticado outro fato típico. Nessa hipótese, o conduzido poderia ser autuado pelo crime efetivamente praticado, ao mesmo tempo em que seria intimado da decisão judicial, sendo, de igual forma advertido quanto a eventual descumprimento.

Assim, a fim de evitar a vedada responsabilidade penal objetiva, o correto é que o noticiado seja intimado da decisão judicial e cientificado das consequências de seu eventual descumprimento.

Ademais, convém lembrar que, em razão da situação da pandemia do Covid-19, tem-se admitido até mesmo a intimação e citação feitas por telefone e por aplicativos de mensagens, tornando a intimação via edital ainda mais distante.

Ressalvou-se, acima, as situações em que, mesmo em se tratando de intimação ficta, se pode aferir, pelas circunstâncias, que o destinatário da medida protetiva de urgência tinha ciência de sua vigência. É o caso de a mulher vitimada mencionar que já o tinha advertido das medidas protetivas, de a pessoa agressora ter sido comunicada por parentes, ou mesmo quanto houver intimação por hora certa.

Neste último caso, o agressor tentou se furtar de ser intimado e posteriormente foi intimado por hora certa. Agiu de forma dissimulada evitando a correta aplicação da justiça.

Nesse caos, entendemos que ele pode, sim ser responsabilizado pelo crime previsto no artigo 24-A da Lei nº 11.340/06, ainda que não tenha sido intimado pessoalmente.

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