Garantias do Consumo

Um novo olhar para o problema do superendividamento

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

26 de janeiro de 2022, 8h00

Após mais de nove anos de trâmite no Congresso Nacional, finalmente foi aprovada a Lei 14.181/2021 (de 1º de julho de 2021) que altera o CDC e o Estatuto do Idoso para tratar de um dos temas mais sensíveis da sociedade nas últimas décadas — o superendividamento.

A Lei 14181/2021 (Lei do Superendividamento) teve basicamente dois objetivos: como objetivo central, prevenir o superendividamento para que consigamos conter este problema social gravíssimo e, para aqueles que já se encontram superendividados, oportunizar um tratamento de modo a que este consumidor possa voltar a ter crédito novamente, resgatando sua dignidade e voltando a ser reinserido na sociedade novamente.

O consumidor superendividado, na sociedade atual que vivemos – sociedade de consumo, está excluído/marginalizado da sociedade. Encontra-se à margem, não participando ativamente da sociedade, seja consumindo, seja arcando com os compromissos assumidos, ficando estigmatizado por todos como mal pagador.

Consumidores inadimplentes são incluídos em bancos de dados negativos, possuem dificuldade de serem incluídos no mercado de trabalho (porque alguns empregadores consideram o fato da negativação como fator para a não contratação), agravando ainda mais a situação financeira do devedor e de sua família. Este contexto força o consumidor ao corte das despesas com necessidades básicas para uma existência digna, como plano de saúde, alimentação, vestuário, transporte e lazer, impedindo-o de empreender ou manter um projeto pessoal de vida.

Todo este panorama gera tensões familiares, podendo acarretar situações de divórcio, problemas de saúde (depressão, sentimento de culpa, vícios em drogas e álcool, entre outros), negligência na educação dos filhos, baixa autoestima, baixa produtividade no trabalho, formando-se um verdadeiro ciclo vicioso de exclusão social.

Assim, reconhecer a prevenção do consumidor superendividado como forma de evitar a exclusão social do consumidor e caso esteja excluído, o direito ao adequado tratamento, de forma a incluí-lo novamente no círculo social é corolário do princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Afinal de contas, se se reconhece que o superendividado está excluído socialmente, pelo princípio da dignidade da pessoa humana é preciso reinseri-lo, dando condições para que ele consiga, através de um plano de pagamento e sob certas condições, voltar a ter dignidade, fato que irá impactar toda sua família.

Nas belíssimas palavras da professora Cláudia Lima Marques, trata-se de "princípio do combate à exclusão social", uma vez que consumo é inclusão; inclusão ao acesso de produtos e serviços sem discriminação, sem contratos de escravidão, sendo o consumo a realização dos direitos fundamentais, trazendo pertencimento à sociedade globalizada e de consumo que vivemos [1].

No tocante à prevenção, embora a lei trouxe algumas balizas e regras para se evitar o superendividamento, não se pode ficar preso a elas. O que se deve ter em mente sempre é a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, evitando-se a exclusão social. Assim, toda e qualquer forma e ação para se evitar o superendividamento, seja impondo mais restrições à publicidade ao crédito, seja impondo mais obrigações por parte da concedente do crédito, através de uma informação qualificada ao consumidor por exemplo, deve ser verificada.

O artigo 54-A do CDC delimita, já no seu caput, os objetivos a serem alcançados com os dispositivos contidos no Capítulo VI-A: prevenção do superendividamento, crédito responsável e educação financeira do consumidor.

O fim maior (e um dos pilares/objetivos da legislação do superendividamento) é a prevenção. Diante do considerável aumento de pessoas que estão ficando superendividadas com o passar dos anos, causando um grave problema social, foi necessário a existência de dispositivos que regulamentem a concessão do crédito (na busca pelo crédito responsável) e incentivem e promovam a educação financeira dos consumidores.

Somente assim (crédito responsável atrelado a educação financeira) é que conseguiremos, de maneira mais eficaz, frear os casos de superendividamento que tem acometido nosso país. A ideia central é prevenir em vez de remediar.

Um dos principais meios capazes de alcançar a efetiva prevenção ao superendividamento é a melhora da conscientização e conhecimentos sobre como manejar de maneira responsável o dinheiro ganho e/ou ofertado, ensinando sobre os perigos do crédito "fácil". Um dos principais problemas, principalmente nos países em desenvolvimento, é justamente a falta de educação para lidar com as finanças, o que acarreta um nível de endividamento que acarreta graves problemas sociais.

Além de outras técnicas de prevenção (como restrições e proibições de práticas abusivas na oferta do crédito, garantias ao consumidor com relação à contratação do crédito como a garantia do direito de arrependimento, entre outras) a educação financeira é, talvez, a forma mais eficaz de prevenção. Isso porque ele promove a conscientização do cidadão/consumidor sobre a responsabilidade de usar o dinheiro ganho com equilíbrio e de utilizar do crédito ofertado no mercado com responsabilidade e quando realmente necessário. Além disso, a educação e conscientização financeira promove um consumidor mais atento às pegadinhas e artimanhas relacionadas ao assédio ao crédito.

Muitas vezes o consumidor nem mesmo sabe que contratou um crédito [2]. Sem dúvida isso se deve, em boa medida, a falta de educação financeira dos consumidores. Assim, o poder público deve promover campanhas e cursos sobre educação financeira, principalmente em escolas infantis, sobre conceitos de finanças e de uso responsável do crédito.

Ademais, o consumidor que requer o crédito apresenta uma vulnerabilidade acentuada em razão da necessidade do crédito. Esta vulnerabilidade se constata não somente pela necessidade, mas também pela falta de conhecimentos de educação financeira que a maioria dos consumidores apresentam. Quando o consumidor procura o fornecedor ou este o convence a adquirir o crédito, há ou surge uma necessidade para a aquisição do mesmo, ficando o consumidor à mercê do fornecedor em relação às imposições e condições para a liberação da quantia pretendida.

Imagine a situação do consumidor que vá até uma agência bancária para verificar a possibilidade de conseguir a liberação de crédito imobiliário para a compra da tão sonhada casa própria. Como necessita do crédito, fica ainda mais vulnerável para discutir as condições contratuais e imposições, muitas vezes abusivas, para a liberação do crédito.

Assim, é preciso, na análise dos artigos que tratam da prevenção e do tratamento ao superendividamento, considerar esta importante constatação: o consumidor (que já é o vulnerável na relação), apresenta, em se tratando de crédito, uma vulnerabilidade acentuada em razão da necessidade do crédito, ficando ainda mais sujeito as pressões e imposições dos fornecedores.

Neste sentido, é necessário superar uma visão individual dos problemas causados pelo acesso ao crédito deliberado que acaba, por fim, ocasionando o superendividamento, para um olhar contextual, considerando a sociedade atual que vivemos (de consumo), o marketing existente atualmente nas diversas plataformas que facilitam o assédio de consumo, e o consumidor inserido neste meio, com a sua vulnerabilidade agravada, para, aí sim, termos melhores condições de conseguirmos prevenir e tratar efetivamente este problema social.


[1] MARQUES, Cláudia Lima Marques. Comentários à Lei 14.181/2021: A atualização do CDC em matéria de superendividamento. RT, 2021, pg. 190.

[2] São vários os casos de reclamações de consumidores que são cobrados por empréstimos que eles alegam que não contrataram. A falta de informação e transparência por parte das instituições financeiras e operadoras de crédito aliada à falta de conhecimento do consumidor sobre finanças acarreta este grave problema. Como exemplo, temos os casos de cartão de crédito consignado. "APELAÇÃO CÍVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO. Intenção do consumidor de contratar empréstimo consignado. Contrato de cartão de crédito consignado para obtenção de mútuo através de saque no referido cartão. Metodologia que não foi informada de maneira clara e adequada ao consumidor. Ausência de prova da efetiva explanação acerca dos termos pactuados. Vício de vontade. Incompatibilidade dos termos contratados com aqueles pretendidos pela consumidora. Violação dos deveres de informação e transparência. Devolução em dobro das quantias pagas a maior. Responsabilidade objetiva. Ausência de excludentes que rompam o nexo de causalidade. Dano moral não configurado. Recurso provido em parte." (TJ-RJ – APL: 00308196120188190008, relator: des(a). Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos, data de Julgamento: 5/5/2021, 18ª Câmara Cível, data de publicação: 6/5/2021)

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do Condecon-ES, professor de Direito do Consumidor e autor de vários livros jurídicos, entre eles o "Código de Defesa do Consumidor Comentado" (ed. Juspodivm).

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