O Direito Penal e a cultura do ódio: em homenagem a Jacson Zílio
26 de janeiro de 2022, 6h41
Nos últimos anos, termos como garantismo e punitivismo transbordaram do ambiente acadêmico para outras áreas da esfera pública, na mesma proporção em que o aparato punitivo começou a ser mobilizado, como nunca visto por esta geração, como arma disponível no embate político.
Para quem milita na academia e no sistema de justiça, dá aflição ver como ditas expressões, que já são especialmente problemáticas (problematizáveis, pelo menos) no ambiente acadêmico, produzem tanta confusão quando são tratados pela mídia tradicional, alternativa e influenciadores de todo gênero.
Já disse em outro lugar [1] que a academia jurídica não escapa dessa urgência (da ciência, em geral) de se debruçar sobre a própria forma de se comunicar com a sociedade e de disputar o sentido das coisas com outros discursos com pretensão de verdade, que se multiplicaram com o advento das mídias digitais e sobretudo das redes sociais.
Por enquanto, o que me ocorre para colaborar nessa tarefa é, primeiro, tentar traduzir da forma mais clara possível essas expressões, para que possam ser bem entendidas por qualquer leitor com um mínimo de boa vontade, ainda que sem (de) formação jurídica. Além disso, pretendo tentar identificar suas possíveis raízes, introjetadas na cultura popular e que se relacionam com as questões do "se" e do "porque" um ser humano deve ser castigado.
O Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli [2], como se sabe, resulta de uma profunda revisão do direito penal construído no Iluminismo (e hoje positivado nas constituições ocidentais e documentos internacionais de Direitos Humanos). Todo o seu edifício teórico está claramente fundado na possibilidade de uma concepção racional de pena, que recusa a ideia de "fim em si mesmo", isto é, de mera retribuição do mal, própria de sistemas mágicos e religiosos de solução de conflitos. Ao contrário, a sua fundamentação radicaria em sua utilidade para a pacificação social: desestimular a violência, com a ameaça de pena e, ao mesmo tempo, desestimular a vingança privada e desproporcional da vítima e/ou sua família contra o agressor. Daí decorreria, ademais, a elaboração de um sistema de garantias jurídicas que teria a função precípua de conter a punição dentro do mínimo necessário para alcançar esses objetivos.
A construção teórica do professor Italiano, como se sabe, encontrou solo fértil no Brasil e foi capaz de dividir, de um lado, defensores quase religiosamente comprometidos e críticos não menos determinados, quase sempre animados por uma espécie de rejeição atávica e ignorante a qualquer perspectiva de redução da violência punitiva. Muito recentemente, entretanto, temos visto surgir outro tipo de reação, mais inteligente e sofisticada, vinda de autores que se deram ao trabalho de estudar a obra de Ferrajoli e reconhecem os seus méritos, mas reclamam contra o que chamam de sua utilização hiperbólica, defendendo, em contrapartida, um certo garantismo penal integral [3]. Em suma, o que se sustenta é que o garantismo, tal como recepcionado no Brasil, estaria dando excessiva ênfase à proteção de direitos fundamentais individuais em detrimento de interesses públicos e coletivos, produzindo uma elevada e indesejável impunidade.
Os adeptos dessa última vertente, de um modo geral, recusam veementemente o título de punitivistas [4], que avaliam como depreciativo, e reclamam ser os únicos que, desde preocupações diametralmente opostas às de Ferrajoli (contenção do poder punitivo x ampliação do poder punitivo) realmente entenderam sua obra, apesar de já terem sido publicamente desautorizados pelo próprio autor [5].
Há, contudo, um aspecto da sua engenhosa e ousada construção teórica que merece ser estudado: de forma colateral e contingente, ela põe em evidência a fragilidade hermenêutica das garantias e da própria ideia de direito penal "mínimo", ou, n'outras palavras, expõe a suscetibilidade do discurso garantista a mecanismo de neutralização, mediante processos de inversão ideológica [6]. Pense-se, por exemplo, nas dificuldades para a interpretação do axioma que contempla o princípio da lesividade, também conhecido como princípio da insignificância (nulla actio sine injuria), para afastar a punição de condutas formalmente previstas como crime, mas que não chegam a lesionar de maneira significativa o bem jurídico supostamente protegido pela norma penal: o relativo consenso em torno de sua racionalidade não impede que até hoje os tribunais mais elevados do país continuem a confirmar condenações contra gente miserável, por furto de quinquilharias em estabelecimentos comerciais [7]. De igual modo, pense-se no menoscabo ao princípio do estado de inocência, base fundante do processo penal moderno, quando se pretende sustentar a “prisão em segunda instância”, mesmo contra a letra expressa da Constituição Federal. Por fim, pense-se nas "conquistas" de um certo punitivismo da "esquerda social" [8], que tem se animado a mobilizar o poder punitivo contra pessoas acusadas de praticar racismo, homofobia, violência doméstica etc.
Para além dessas fragilidades hermenêuticas, a sustentação racional da pena engendrada por Ferrajoli, examinada de lupa, revela os seus próprios limites "racionais". Isso porque, embora rejeite a lógica da retribuição, denunciada como "mágica" ou "religiosa", acaba voltando a ela, para reconhecê-la, ainda que pretenda limitá-la. Os seus críticos abolicionistas e simpatizantes da justiça restaurativa, por exemplo, poderiam afirmar que não sobra espaço, no seu utilitarismo, para o "perdão" da vítima. Os seus críticos "de esquerda", poderiam argumentar com a necessidade “simbólica” de punição rigorosa dos criminosos do patriarcado e da branquitude, invocando uma epistemologia "antirracista" ou "feminista" e até mesmo denunciando o "eurocentrismo colonizante" de uma teoria produzida por um homem branco e italiano.
Descrito (da forma mais clara e sintética que consegui) o cenário das disputas mais ou menos "acadêmicas" em torno em torno das questões do "se" e do "porque" punir, animo-me agora a dar o passo mais ousado: tentar dialogar justamente com categorias que escapam à razão, exatamente no limite em que Ferrajoli (re) encontrou o conceito de "vingança" ou "retribuição", e onde alguns pretendem acrescentar o "perdão".
Isso porque ditos conceitos, com os quais trabalhamos diuturnamente na academia e no sistema de justiça, remetem, antes de tudo, à base da mitologia judaico-cristã que, como chave de compreensão da realidade, precede (historicamente) a racionalidade ocidental e opera em camadas mais profundas da psique humana, a ponto de ser muitas vezes ignorada por aquele que acha (como Ferrajoli) que argumenta dentro dos limites da razão.
Em um formidável discurso de apoio a uma chapa para a OAB/SP, o amigo e extraordinário jurista Pedro Serrano traçou brilhantemente a trajetória que, segundo ele, "começou com Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso. Todos somos filhos do mesmo pai. Essa ideia teológica trouxe, muitos séculos depois, na sua secularização, a ideia de que todos, por sermos iguais, por termos uma dignidade mínima, humana, advinda do fato de sermos filhos de Deus, teríamos direitos naturais" [9].
O processo de "secularização", portanto, traz consigo a pretensão de dar contornos racionais a uma mitologia que se constituiu bem antes dela em torno dos conceitos acima referidos (crime, castigo e perdão), todos radicados, em última análise, na dicotomia "ódio" (que é constitutivo da ideia de vingança) e "amor" (que parece também compreendido na ideia de "perdão"), e que constituem, no nível dos afetos [10], as bases últimas para que alguém decida o que fazer com aquele que agrediu um semelhante [11].
No fundo, são esses os sentimentos que mobilizam, no plano da razão, rigorosamente todos os discursos sobre a questão penal que estão disponíveis, tanto na academia quanto nos espaços "leigos" da esfera pública, e que explicam a recusa dos discursos punitivistas, mobilizados pelo ódio de uma vingança a qualquer custo, a aceitarem os argumentos mais elementares e evidentes, no plano da razão. Até a própria mensagem cristã, como estamos vendo diariamente, sofre com as mais absurdas deturpações para estar a serviço do ódio.
A minha passagem como visiting scholar pelo Seminário Teológico de Princeton, em Princeton-NJ, durante o ano de 2019, colocou-me em contato com uma linha de reflexão teológica que, em certo sentido, parece até mais atenta à tarefa decolonial do que muitos setores do pensamento social contemporâneo. Trata-se de uma teologia "antimissionária", preocupada em reparar os pecados colonizadores da cristandade ocidental nas américas e na África e abrir-se para um diálogo em pé de igualdade com outras tradições, outras mitologias e mesmo com a ciência [12].
Lá aprendi que é justo nessas zonas de fronteira [13] em que a matriz (eurocêntrica) colonial de poder [14] (que domina e controla tudo o que produz na academia e na esfera pública) é mais frágil e pode ser "quebrada". Em termos de poder político e poder punitivo, não será reforçando os discursos de ódio e de vingança (instrumentos prioritários do processo de colonização, não é?) que poderemos evoluir como comunidade humana. Ao contrário, é preciso uma atitude básica de esperança (ainda que utópica) em mecanismos não violentos de solução de conflitos.
Além disso, talvez seja necessário olhar com mais cuidado para a mitologia cristã, que nos constitui inevitavelmente, e para as suas áreas de contato com outras mitologias, bem como com a ciência, pois é também nessas zonas de "fronteira" que será possível encontrar elementos para seguir tentando construir formas de convivência social baseadas no amor ou, se preferirem, num sentimento de empatia, de abertura para o outro e para o reconhecimento da sua dignidade, na mesma proporção em que desejamos que nos seja reconhecida [15].
O perdão, por exemplo (que não é exclusividade da mitologia cristã), é a irrupção de um "terceiro" que se coloca como alternativa entre a lógica crime-pena, que constitui o cerne de uma racionalidade penal moderna (inclusive a que orienta o discurso racional e legitimador de Ferrajoli), tão disfuncional, em seus desastrosos resultados práticos [16] e tão destrutivamente disponível como arma de disputa política como qualquer outra racionalidade de tipo técnico-instrumental que a modernidade desenvolveu e que, levada às últimas consequências, ameaça seriamente a vida em todo o planeta, para o próprio homem e também para uma parte considerável dos seres vivos com os quais o dividimos a Terra.
[1] https://www.conjur.com.br/2021-set-29/elmir-duclerc-assim-ficar-silencio2#:~:text=No%20caso%20do%20direito%20ao,decis%C3%B5es%2C%20para%20o%20grande%20p%C3%BAblico
[2] FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Madrid: Trotta. 2008.
[3] FISCHER, Douglas: O que é garantismo (penal) integral? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PALELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 30-77.
[4] Ninguém jamais disse, contudo, que tenha algo de necessariamente pejorativo, bastando, por exemplo, que o termo possar designar todos aqueles que, por qualquer razão, sentem-se mais incomodados com os efeitos da falta de punição do que com o seu excesso, e lutam por mais punição como uma bandeira, como algo desejável. Mas é curioso que quem cabe nesse perfil é quem normalmente se sente ofendido.
[5] https://www.conjur.com.br/2021-abr-24/entrevista-luigi-ferrajoli-professor-teorico-garantismo-penal
[6] Sobre o tema, ver BIZZOTO, Alexandre Bizzoto. A inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normas constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[8] Aproveito aqui o conceito cunhado por Carlos Veiner, citado por Maria Lúcia Karam (Karam, maria Lúcia. A "esquerda punitiva" vinte e cinco anos depois.São Paulo: Tirant lo Blanc, 2021, p. 16
[10] E aqui surge um oceano de possibilidades de encontro com a psicanálise, não é?
[11] Sobre a relação entre a ideia de punição e a mitologia judaico cristã: Girad, René. A violência e o sagrado; tradução Martha Conceição Gambini; revisão técnica Edgard de Assis carvalho. São Paulo: UNESP, 2008
[12] Não poderia deixar passar a oportunidade de expressar, publicamente, a gratidão ao meu supervisor no programa, um dos mais notáveis intelectuais com quem já tive a oportunidade de dialogar, Raimundo Cesar Barreto Junior, professor associado do Seminário Teológico de Princeton, responsável pela disciplina World Christianity, bem como aos colegas Frederico Piper e Elisa Santos (ambos professores do Depto. de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora) e sua adorável Helena. Foi realmente um enorme prazer conviver e aprender com vocês.
[13] Uso o conceito de fronteira nos termos propostos por Glória Anzaldúa (ANZALDUA, Glória. Borderlandas – the new mestiza – La frontera. San Francisco: Aunt Lute, 1987).
[14] No sentido cunhado por Quijano (QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificacion social. Journal of world-systems research, v. 11, n. 2, p. 342-386) e Mignolo (Mignolo D. Walter et al. On decoloniality : concepts, analytics, práxis. Durham : Duke University Press, 2018).
[15] O "negacionismo" punitivista, inclusive, normalmente permite que os seus acometidos não tenham qualquer pudor em negar expressamente aos outros algo que reclamam insistentemente para si, quando lhes convém, como bem pontuado por Lenio Streck: https://www.conjur.com.br/2019-dez-09/lenio-streck-dallagnol-prescricao-januario-delacao
[16] A falência do modelo repressivo pode ser medida pela famosa decisão do SFT que declarou o "estado de coisas inconstitucional", pelo surgimento de poderosas organizações criminosas no próprio ambiente do cárcere, bem como pelos altos índices de reincidência.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!