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Ausência de lei deixa presos em 'limbo processual' nos Estados Unidos

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24 de janeiro de 2022, 10h47

Apenas quatro dos 50 estados dos Estados Unidos têm leis que, tecnicamente, garantem ao cidadão uma audiência preliminar dentro de 24 horas após a prisão. Em outros 12 estados, as leis requerem que tal audiência perante um juiz seja realizada dentro de dois a sete dias. Nos demais, as leis são vagas: determinam que a audiência inicial deve ser realizada "sem atraso desnecessário" ou "tão logo quando possível", ou ainda "dentro de um prazo razoável".

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Pessoas ficam presas até meses sem audiência inicial nos Estados Unidos

O resultado dessa "miscelânea deplorável" de leis é que a maioria das pessoas presas passa dias, semanas e até meses em um "limbo processual terrível", diz o estudo "Fim da injustiça: resolvendo a crise das audiências iniciais" ("Ending Injustice: Solving the Initial Appearance Crisis"), elaborado por pesquisadores da Faculdade de Direito Dedman da Universidade Metodista do Sul.

A prática viola garantias constitucionais do cidadão preso pela polícia, como a de um julgamento rápido e justo e a de que ninguém pode ser preso sem acesso a um juiz ou a um advogado. A Suprema Corte dos EUA nunca respondeu à pergunta: quanto tempo uma pessoa pode ficar presa até ter uma audiência com um juiz ou falar com um advogado?

Além disso, a demora nega às pessoas presas, por longo tempo, a oportunidade de contestar as acusações contra ela e, talvez, de conquistar o direito de responder ao processo em liberdade.

Audiência de custódia?
Nos EUA, existem três tipos de procedimentos, todos com a mesma finalidade de garantir ao cidadão preso uma audiência preliminar: initial appearance (o termo usado no estudo), preliminary hearing e arraignment.

Todos trazem a tradução de "audiência preliminar", acompanhada por uma explicação que mostra a diferença entre os termos no "Dicionário de Direito" de Marcílio Moreira de Castro, editado em 1981 — antes, portando, de ser introduzido no Brasil o conceito de audiência de custódia. As definições americanas e as traduções são as seguintes:

Initial appearance — A primeira aparição do réu perante um juiz. O juiz informa o réu sobre as acusações contra ele, penas previstas, seus direitos e fixa uma fiança. Nos casos de crime, uma data é marcada para a audiência preliminar. Nos casos de contravenção penal, a audiência inicial também é a de arraignment (ver abaixo) e, frequentemente, o réu pode se declarar culpado ou não culpado. Dicionário do Marcílio: audiência preliminar (que equivale ao interrogatório judicial do réu no processo penal brasileiro).

Preliminary hearing — Uma audiência para determinar se há causa provável para acreditar que um crime foi cometido e se o réu o cometeu. Se causa provável for estabelecida, o caso terá prosseguimento. Se não, será trancado. Esse tipo de audiência é realizado apenas para crime (felony — crime punível por prisão em presídio estadual por mais de um ano). Dicionário do Marcílio: audiência na qual o juiz decide se há provas suficientes para manter ação penal contra o réu; audiência preliminar.

Arraignment — Uma audiência na qual o réu é formalmente acusado e pode se declarar culpado, não culpado ou fazer uma confissão judicial sem efeitos civis (no-contest plea). Dicionário do Marcílio: a primeira audiência do réu perante o juiz no processo criminal. O juiz lê as acusações contra o réu e o réu tem a opção de confessar (to plead guilty) ou negar as acusações (to plead not guilty). Audiência preliminar; primeira audiência.

O estudo observa que a demora da audiência preliminar causa diversos danos ao réu, além da perda indevida da liberdade em alguns casos, como a perda do trabalho e da renda, dificuldades para a família, trauma decorrente do encarceramento, sujeição a violência na cadeia, confissões coercivas e acordos de admissão de crime feitos sem a assistência de um advogado.

A entidade faz algumas recomendações, entre as quais a de que o réu deve ter uma audiência preliminar o mais rápido possível, no máximo em 24 horas após a prisão; deve receber assistência jurídica de um advogado antes e durante a audiência preliminar; e os responsáveis para administrar o processo devem responder por qualquer atraso.

Além disso, a longa espera pelo julgamento pode resultar em dificuldades para testemunhas se lembrarem dos fatos e provas podem desaparecer, segundo o estudo.

O encargo da "crise da audiência inicial" crônica pesa desproporcionalmente para pessoas negras, que são mais detidas do que pessoas brancas antes do julgamento e que, frequentemente, não têm dinheiro para pagar a fiança e para contratar um advogado, diz o estudo.

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