Embargos culturais

Orlando Gomes e as raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de janeiro de 2022, 8h00

Orlando Gomes (1908-1988) nasceu e viveu em Salvador. Um soteropolitano que se destacou nas letras jurídicas, no magistério, nas convicções e no enfrentamento a todas as formas de opressão e tirania. Lembra em alguns pontos um outro baiano, Hermes Lima, que nasceu em Livramento do Brumado, seis anos antes. São trajetórias distintas, mas que se encontram na firmeza das ideias.

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Orlando Gomes enfrentou o Estado Novo, foi preso em Fernando de Noronha. Civilista, juslaborialista, sociólogo, Orlando Gomes também se destacou como historiador do direito. “Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro”, publicado pela Universidade da Bahia, em 1958, é um exemplo dessa face intelectual de Orlando Gomes. O original é um discretíssimo opúsculo. Há uma versão recente publicada pela Martins Fontes. Merece leitura.

Orlando Gomes foi um intelectual engajado. Captou o ambiente de tensões que marca o direito privado e estudou as origens de nosso Código Civil no contexto das ambiguidades que marcam nossas tensões sociais. Esse livro, já longevo de mais de 60 anos, ainda é leitura fundamental para uma tentativa de compreensão de nossa tradição jurídica, de nossos arranjos e de nossa identidade.

O livro é curto, tem menos de 80 páginas. Orlando Gomes baseou-se em Braga Cruz, Clóvis Bevilaqua, Coelho Rodrigues, Ferreira Coelho, Guerreiro Ramos, Martins Júnior, Nestor Duarte, Oliveira Viana, Paulo de Lacerda, Gilberto Amado, Silvio Romero e Teixeira de Freitas. Antenado na tradição sociológica, valeu-se também de Sérgio Buarque de Holanda e de Hélio Jaguaribe. É também um livro simples, de leitura prazerosa.

Orlando Gomes principia lembrando a singularidade de nosso direito civil, marcado pela ininterrupta vigência das Ordenações Filipinas entre nós, por mais de três séculos. Em 1867 os portugueses conheceram o primeiro código civil daquele país, abandonando a barafunda normativa das Ordenações. O código português foi elaborado a partir de um projeto do Visconde de Seabra.

Entre nós, a situação persistiu até 1916, com a aprovação do código de Clóvis Bevilaqua. Este último, que foi Consultor-Jurídico do Itamarati, fora convidado para a empreitada por Epitácio Pessoa. Rui Barbosa implicou com o projeto, cuja redação bombardeou. Para Orlando Gomes, “a longevidade desse corpo legislativo [as Ordenações] organizado para o Portugal do século XVII, impediu que o país se integrasse no movimento de renovação legislativa que empolgou as nações ocidentais no século XIX”.

Esse atrasou ocorreu não obstante previsão expressa da Constituição de 1824, que prescrevia a organização, o quanto antes, de um Código Civil (art. 179, XVIII). Ao longo do Império não prosperaram três tentativas de codificação, nomeadamente, de Teixeira de Freitas (1859), de Nabuco de Araújo (1872) e de Felício dos Santos (1881). Orlando Gomes fez referência a uma observação de Pontes de Miranda, datada de 1928. O jurista alagoano (Pontes) lembrava que o Código Civil condensava um direito mais ligado ao círculo social da família do que ao círculo social da nação. Era uma norma para o espaço interno das vidas. Não traduzia um projeto de organização nacional.

Orlando Gomes sustentou e exemplificou esse argumento. Lembrou a convicção de Bevilaqua contra o divórcio, no sentido de que a dissolução da sociedade conjugal resultaria em poligamia sucessiva. Orlando Gomes insistia no conservantismo na disciplina das relações de família. No mesmo caminho, observava, a adoção da comunhão universal de bens como regime legal e a disciplina optativa da separação de bens. O privatismo doméstico era nota dominante do Código de 1916. A autoridade do marido era absoluta, e nesse ponto os fundamentos da tradição do direito romano fora assimilada e adaptada. O marido podia requerer a anulação do casamento, comprovando que a esposa não se casara virgem, nos primeiros dias que seguiam às núpcias. Invocava erro essencial quanto à pessoa.

Reconhecendo o subdesenvolvimento de nossa sociedade, Orlando Gomes apontava onde o Código Civil realçava essa característica negativa: organização jurídica da propriedade, limitação de alguns direitos reais (a exemplo do usufruto e da enfiteuse), bem como dos contratos de locação de serviços. Não nos esqueçamos que apenas 28 anos medeiam a abolição da escravidão (1888) de nosso primeiro diploma civil (1916). Era um código carregado de sugestões patriarcais e capitalistas, ainda que, olhando-se hoje com o benefício do retrospecto, saibamos que não poderia ser de outra forma.

Orlando Gomes constatou uma tensão entre os setores predominantes das camadas sociais mais abastadas. Havia uma quase intransponível contradição ideológica entre a burguesia mercantil e a burguesia agrária. Aquela primeira aspirava um regime jurídico que lhe garantisse uma plena liberdade de ação. Esta última temia a aplicação, ao pé da letra, dessa filosofia política. Para Orlando Gomes o Código Civil fora concebido na “preocupação de dar ao país um sistema de normas de direito privado que correspondesse às aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção”. Marxismo na medula. A infraestrutura (relações de produção) fundamentaria a superestrutura (arranjos organizacionais em forma de regras jurídicas).

O Código Civil de 1916, individualista, surgia numa época na qual se desencadeava uma reação ao individualismo jurídico. Não havia concessões para os direitos sociais, em um tempo em que essa agenda se fortalecia sobremodo na Europa. O autor do projeto do Código (Clóvis Bevilaqua), segundo Orlando Gomes, protagonizou uma “profissão de fé antissocialista, ao afirmar que, se cumpre evitar do individualismo o que ele contém de exageradamente egoísta e desorganizador, não é perigo menor resvalar no socialismo absorvente e aniquilador dos estímulos individuais”.

Ao ensejo do segundo ano do aniversário do Código, apontou Orlando Gomes, proclamavam solenemente, no Tratado de Versalhes, direitos dos trabalhadores. Entre nós, o Código não fazia referência ao tema dos acidentes de trabalho. Foi o que bastou para que Orlando Gomes não se juntasse aos incensadores do código, um “monumento jurídico” na leitura dos entusiasmados de sempre. Orlando Gomes foi direto no ponto. A elite brasileira, remata, não soube se libertar dos interesses conservadores, não tendo, mais uma vez, “a necessária visão histórica, tratando as relações de produção com espírito estreito”.

Creio que essa visão realista da construção do Código Civil tenha afastado o professor de Salvador dos núcleos mais conservadores de São Paulo. Arrisco opinar que essa situação tenha contribuído para a migração de Orlando Gomes para os temas de direito do trabalho. É um palpite. Não vejo outra explicação para a conciliação entre os óleos inconciliáveis da sistematização e proteção do patrimônio (Direito Civil) e alguma proteção e sistematização em favor de quem vende suas horas de serviço (Direito do Trabalho). Um desafio para os estudiosos da história das ideias jurídicas no Brasil.

 

1 Livre-docente pela USP. Doutor e Mestre pela PUC-SP. Advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi Consultor-Geral da União e Procurador-Geral-Adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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