Reflexões Trabalhistas

A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

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21 de janeiro de 2022, 8h00

No início deste mês de janeiro, o professor Paulo Sergio João me convidou para participar desta coluna, ao lado dele e do professor Raimundo Simão de Melo. Para mim, o convite foi um misto de satisfação e consternação, já que o espaço era ocupado pelo professor Pedro Paulo Teixeira Manus.

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A partida do professor Pedro tem nos causado muita dor e tristeza, seja pelo grande amigo que nos deixou, seja pelo vazio que sua ausência traz ao Direito do Trabalho brasileiro. Desde que fui contratada como professora na PUC-SP, nos idos de 1996, eu e algumas colegas (como as professoras Carla Romar, Suely Gitelman e Christiani Marques) somos conhecidas como "pedretes", já que sempre nos inspiramos em suas aulas e em seu conhecimento. Não tenho a pretensão e jamais conseguiria substituir a exposição de pensamentos rápida, bem-humorada, profunda e verdadeira do nosso querido Pedro Paulo. Mas, enquanto "pedrete", quero homenageá-lo pela legião de alunos e tantos professores que como eu, se formaram tendo o professor Pedro Paulo como paradigma.

Ainda em sua homenagem, por ser o professor Pedro Paulo um grande defensor da igualdade de gênero e contra qualquer tipo de discriminação arbitrária, gostaria de lembrar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado em outubro de 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal protocolo tem como alvo alcançar a equidade de gênero e atender ao Objetivo nº 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), sendo o resultado de estudos realizados pelo grupo de trabalho (instituído pela Portaria CNJ nº 27, de 2 de fevereiro de 2021) criado para colaborar com as políticas nacionais de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.

Com fundamento no referido documento, foi publicada, em dezembro de 2021, a decisão do mandado de segurança (MSCiv 0001165-09.2021.5.12.0060) da lavra da juíza do Trabalho Andrea Cristina de Souza Haus Waldrigues, titular da 3ª Vara do Trabalho de Lages (SC), que concedeu medida liminar para garantir a redução da carga horária semanal de uma empregada de 40 para 30 horas, para que esta pudesse acompanhar o tratamento do filho de nove anos, enquadrado na definição de pessoa com deficiência, nos termos do artigo 2º da Lei nº 13.146/2015.

Apesar de ainda pouco divulgado entre os operadores do Direito, o protocolo é fundamental para garantir a necessária análise de processos sob a perspectiva de gênero, auxiliando advogados, magistrados e membros do Ministério Público de todas as áreas de atuação a repelir conceitos classistas, sexistas, machistas, racistas, homofóbicos e tantos outros discriminatórios que estão incrustados na sociedade brasileira.

No âmbito do trabalho, observamos que a sua divisão é baseada em critérios sexistas, pois, segundo o pensamento patriarcal vigente, a mulher é responsável pelo trabalho reprodutivo e de cuidado (remunerado ou não), e ao homem corresponde o papel de provedor.

Como se não bastasse, observa o protocolo que:

"A suposta neutralidade e universalidade na norma formal e abstrata tem se mostrado insuficiente para resolver essas desigualdades, pois busca a sua incidência de igual forma para todos os indivíduos, mas olvida as diferenças existentes, gerando, muitas vezes, mais desigualdades. Isso ocorre porque as bases sobre as quais o direito se constitui são atravessadas por marcadores de gênero.
Dentro desta suposta neutralidade da norma, elaborada a partir do paradigma androcêntrico, branco e heterossexual, o direito do trabalho também criou suas bases, ignorando as diferenças de gênero socialmente construídas e permeadas por outros marcadores, como raça, classe social e orientação sexual.
Neste contexto, as desigualdades se manifestam de diversas formas e momentos da vida profissional das mulheres".

Ciente das dificuldades enfrentadas pelas mulheres no exercício de suas atividades profissionais, a sentença proferida pela 3ª Vara do Trabalho de Lages reproduz o protocolo e fundamenta a decisão sob a perspectiva de gênero, ressaltando, especialmente, que a maternidade não pode e não deve prejudicar a mulher profissionalmente:

"Outro fator que também contribui para as desigualdades salariais são algumas interrupções na carreira vividas pelas mulheres, como, por exemplo, em razão da gravidez/maternidade ou dever de cuidado com outros membros da família, que acabam impactando diretamente no seu crescimento profissional. Isso porque, a maternidade ainda é vista como um “empecilho” ao crescimento profissional da mulher dentro de um mercado de trabalho que não a acolhe e que valora de forma negativa uma condição que lhe é específica (gestação/lactação/maternidade), exigindo da trabalhadora que ela se adapte a espaços e instituições que são estabelecidas a partir do modelo masculino.
Neste ponto, a análise sob a perspectiva de gênero permite questionar de que forma a leitura e aplicação das normas pode ser feita como caminho a reduzir estas desigualdades".

Afinal, já é tempo de reconhecer que a discriminação e a violência contra a mulher, além de consequências desastrosas para o desenvolvimento social, causam prejuízo bilionário para a economia brasileira. A título de exemplo, basta analisar o relatório da "Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar", apresentado em agosto de 2017, que acompanhou a vida de dez mil mulheres nordestinas desde 2016 e contabilizou os impactos no que perde cerca de R$ 1 bilhão devido às agressões sofridas pelas trabalhadoras em suas casas.

Como se não bastasse, podemos perceber que, para a tão desejada igualdade, não basta o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, sendo também necessário o fim dos estereótipos relativos aos chamados trabalhos "de homem" e "de mulher", da desigualdade salarial, da discriminação, do assédio moral e sexual e a possibilidade de progressão na carreira, que mais uma vez foram ressaltados na sentença do mandado de segurança (MSCiv 0001165-09.2021.5.12.0060):

"b. Discriminação
As hipóteses de discriminação na Justiça do Trabalho são amplas e variadas, e acontecem em todas as fases da relação contratual, ou seja, na fase pré-contratual, de anúncio/seleção/admissão, no curso da relação de emprego e na dispensa. O ambiente de trabalho é, na verdade, um terreno fértil para discriminações, pois a assimetria inerente à relação empregatícia favorece a prática velada de condutas discriminatórias, o que não exclui a ocorrência deste tipo de conduta também entre colegas no mesmo nível hierárquico. (…)
b.2. Fase contratual e extinção do contrato
A busca das mulheres e de outras minorias, consideradas as diversas interseccionalidades, para se manter num mercado de trabalho que não as acolhe, propicia práticas discriminatórias não menos perversas e excludentes. Reproduz-se na execução da relação empregatícia os mesmos preconceitos, os mesmos mitos e as mesmas crenças arraigadas no imaginário social, intensificando as desigualdades que, de tão repetidas, tornam-se invisíveis e imperceptíveis, reforçando o lugar de inferioridade destes grupos na pirâmide social. (…)
Situação não muito diferente se verifica em relação às trabalhadoras gestantes e lactantes, pois, ainda que exista vedação expressa de discriminação direta em razão desta situação biológica particular às mulheres, estas, por estarem inseridas num modelo de regras e rotinas de trabalho estabelecidos a partir do paradigma masculino, pensado para os padrões do “homem médio”, acabam sendo vítimas de discriminações decorrentes deste modelo que não as acolhe.
Neste cenário, explica SEVERI174, 'a gravidez é percebida como um atributo da mulher, uma diferença em relação ao padrão para o qual o ambiente de trabalho foi projetado (homem), que quebra a expectativa não declarada na qual as pessoas precisam se encaixar. Da mesma forma, a capacidade de ver, ouvir, a brancura, a heterossexualidade e a masculinidade: todas as diferenças são definidas em relação aos padrões de normalidade geralmente aceitos. Com isso, as diferenças se tornam inteiramente incompatíveis com a suposta semelhança exigida por uma análise baseada na igualdade'.
Dentro deste arranjo sexista da relação empregatícia, atitudes como mudança de horário ou local de trabalho no período de gestação e lactação são vistas como naturais e decorrentes do poder empregatício legitimado pelo art. 2º da CLT, quando, na verdade, escondem práticas nitidamente discriminatórias no sentido de afastar ou inviabilizar que estas mulheres exerçam ou permaneçam nas suas funções.
As situações relatadas são apenas exemplificativas de práticas discriminatórias que permeiam as relações de trabalho, não limitativas aos vínculos formais dos contratos empregatícios, e que, quando analisadas sob a perspectiva de gênero, ganham múltiplos contornos diante do ambiente sexista, patriarcal e racial que ainda persiste na seara laboral. (…)".

Assim, as constatações destacadas acima demonstram a importância do documento elaborado pelo CNJ e a necessidade da conscientização das injustiças sociais reproduzidas em determinados julgamentos quando as desigualdades existentes não são combatidas por aqueles que operam o direito.

Encerro esta coluna agradecendo à ConJur pela oportunidade e acreditando na luta por uma sociedade livre, justa e solidária.

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