Opinião

A multa por pesquisa eleitoral sem registro e a sua inaplicabilidade aos eleitores

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20 de janeiro de 2022, 6h03

A Justiça Eleitoral ganhou muito destaque nos últimos tempos, como consequência, basicamente, de dois fatores: a) ataques e críticas infundadas ao modelo eletrônico de votação; e b) reconhecimento de sua competência, pelo STF, para julgar crimes que estavam sob a alçada da operação "lava jato".

Neste ano de 2022, em que, ao que tudo indica, teremos uma eleição extremamente conturbada, é muito provável que os holofotes continuem nessa direção.

Talvez seja este, então, um bom momento para provocar reflexão sobre uma questão que há muito nos intriga, mas que não tem recebido a devida atenção por parte da comunidade jurídica. Referimo-nos às ações que têm como fundamento o artigo 33 da Lei nº 9.504/97.

Quando o TSE julgou os processos que visavam à cassação da chapa Dilma-Temer, o ministro Gilmar Mendes, então presidente daquela corte, assinalou que "o ministro Henrique Neves da Silva já nos relatou que, quando viaja ao exterior, é perguntado sobre isso, de quantos são cassados, e as pessoas ficam assustadas, porque dizem que estamos cassando mais que a ditadura  e é uma Justiça que se pretende democrática".

Exageros à parte, a verdade é que esse viés punitivista da Justiça Eleitoral não se resume à cassação de registros, diplomas ou mandatos eletivos. Vai muito além, irradiando-se pelos variados temas do Direito Eleitoral [1]. Mas, por ora, fiquemos apenas com o artigo 33 da Lei das Eleições, objeto destas breves ponderações.     

O mencionado artigo disciplina as tão conhecidas pesquisas de intenção de votos. Nesse ponto, e sobre o que de perto nos interessa, o dispositivo legal exige que as pesquisas sejam registradas na Justiça Eleitoral antes da divulgação, e prevê uma pena de multa, a mais elevada na esfera eleitoral, para o descumprimento dessa obrigação. A multa é aplicável, em suma, no caso de veiculação de pesquisa sem prévio registro na Justiça Eleitoral.   

O grande problema, em nossa singela compreensão, está no fato de que alguns tribunais eleitorais, especialmente o de São Paulo, têm proferido decisões em larga escala nas quais condenam pessoas comuns, simples eleitores, ao pagamento de multa que varia entre R$ 53.2050 e R$ 106.410.

Essa multa, todavia, não parece destinar-se a pessoas naturais, eleitores, mas, sim, aos institutos de pesquisa de opinião pública (pessoas jurídicas). Por consequência, as condenações impostas a pessoas naturais carecem de amparo legal.

A propósito, diz o artigo 33, caput, que "as entidades e empresas que realizarem pesquisas de opinião pública relativas às eleições ou aos candidatos, para conhecimento público, são obrigadas, para cada pesquisa, a registrar, junto à Justiça Eleitoral, até cinco dias antes da divulgação, as seguintes informações: (…)".

E, após especificar as informações necessárias, o artigo 33, em seu §3º, estabelece que "a divulgação de pesquisa sem o prévio registro das informações de que trata este artigo sujeita os responsáveis a multa no valor de cinquenta mil a cem mil UFIR".

Pois bem. O caput do artigo 33 faz alusão a entidades e empresas que realizam pesquisa de opinião pública, e diz que essas empresas e entidades têm a obrigação de registrar a pesquisa antes de sua divulgação. Portanto, é um dispositivo legal voltado para as pessoas jurídicas, para os institutos de pesquisa, tais como Datafolha, Ipec (sucessor do Ibope), Instituto Brasil, Vox Populi etc.    

Na sequência, o §3º estipula a pena de multa para os responsáveis pela inobservância do comando legal, isto é, pela divulgação de pesquisa sem o prévio registro.

Convém rememorar que há uma regra basilar de hermenêutica segundo a qual os parágrafos devem ser interpretados em conformidade com caput dos artigos de lei. Mais que isso, essa regra está positivada na LC nº 95/98, cujo artigo 10, II, estabelece que os parágrafos são desdobramentos do caput. Referida LC ainda acrescenta que os parágrafos expressam os aspectos complementares e as exceções à regra contida na "cabeça" do artigo, sendo esta uma regra que confere ordem lógica ao texto legal (artigo 11, III, "c").    

Partindo dessas premissas, poderíamos perguntar: onde está a previsão de multa para os cidadãos? Ora, se o caput se refere a pessoas jurídicas, os parágrafos devem ser compreendidos como normas que trazem alguma especificidade sobre as mesmas pessoas jurídicas.

Não se discute que o legislador poderia estender, num parágrafo do artigo 33, a responsabilização em comento aos eleitores, às pessoas naturais, pois isso seria mera complementação ao caput. Aliás, o projeto de novo código eleitoral o faz (detalhes adiante), mas a Lei nº 9.504/97 não o fez.  

É claro que a LC nº 95/98 se dirige de forma imediata à atividade legislativa. Mas isso, por si só, não é empecilho a que sirva também como norte interpretativo na atividade jurisdicional. Se a LC estabelece que o legislador, ao elaborar outras leis, deve utilizar parágrafos para complementar ou excepcionar a regra contida no caput, por que não poderíamos concluir que essa destinação mais restrita dos parágrafos deva ser observada também pelo Poder Judiciário, quando da aplicação da lei?

Mas não é só isso. Todas as regras que disciplinam a veiculação de pesquisa eleitoral caminham no sentido que aqui defendemos, ou seja, de que a multa não pode ser aplicada a pessoas naturais.

A Lei nº 9.100/95, que antecedeu a Lei nº 9.504/97, dispunha que seriam penalizados "os responsáveis pela empresa ou entidade de pesquisa, pelo órgão veiculador, partido, coligação ou candidato que divulgarem pesquisa não registrada" (artigo 48, §4º).

A Lei nº 9.504/97, em primeiro lugar, atentou para o fato de que as pessoas jurídicas não têm representantes. Elas próprias se "apresentam", constituindo-se, portanto, em sujeitos de direitos e obrigações. Elas têm personalidade jurídica própria, agem em nome próprio, por intermédio de seus administradores.

Assim, não fala a Lei nº 9.504/97 em "responsáveis pela empresa ou entidade", com essa conotação de representante legal, mas simplesmente em "responsáveis", vinculando a expressão diretamente às entidades e empresas mencionadas no caput do artigo 33. 

Em segundo, excluiu da responsabilidade o órgão veiculador da pesquisa, bem como os partidos, as coligações e os candidatos. Ou seja, sob a óptica da Lei nº 9.504/97, nem mesmo o candidato beneficiário da veiculação irregular da pesquisa pode ser penalizado com fundamento no artigo 33, §3º.

Daí condenar meros eleitores que simplesmente repassam uma mensagem (muitas vezes com características de enquete) em grupos de WhatsApp ou rede social é um passo bastante largo, incompatível com o princípio da legalidade.

Observe-se, a título ilustrativo apenas, pois é fácil encontrar Brasil afora centenas de decisões nesse sentido, o que restou consignado num acórdão recente da Corte paulista: "(…) A alegação do recorrente de que não é figura política, não é filiado a partido político, bem como não concorreu a cargo eletivo, não o socorre, pois a norma em tela pune a conduta de qualquer cidadão que divulgar pesquisa eleitoral irregular, pois o bem jurídico tutelado é a higidez do pleito eleitoral" [2].

A frase é imponente. Mas será mesmo que a norma referida (artigo 33, §3º, da LE) pune qualquer cidadão por divulgação de pesquisa eleitoral sem prévio registro? Essa sanção não estaria reservada aos institutos de pesquisa?  

Outro fator interessante é que o Tribunal Superior Eleitoral, a cada eleição, edita resoluções visando disciplinar o processo eleitoral. Sobre a pesquisa eleitoral, nas eleições de 2020, foi editada a Resolução TSE nº 23.600/19, que estabeleceu que o registro das pesquisas deveria ser realizado exclusivamente em sistema próprio, denominado Sistema de Registro de Pesquisas Eleitorais (PesqEle). Para a utilização do sistema, as entidades e empresas, e somente elas, deveriam cadastrar-se previamente, exigindo-se para o cadastro, entre outras informações, a indicação do CNPJ [3].

Ou seja, a própria norma do tribunal superior repele qualquer possibilidade de uma pessoa natural cadastrar-se no sistema. Dessa forma, como condenar essa pessoa natural por supostamente haver veiculado pesquisa eleitoral sem antes providenciar seu registro junto à Justiça Eleitoral? Nessa situação, a Justiça Eleitoral exige, implícita ou explicitamente, uma providência que ela própria inviabiliza que seja adotada pelo eleitor.

Não bastassem os inconvenientes até aqui apontados, recorremos, para finalizar, ao projeto de novo Código Eleitoral que tramita no Congresso Nacional, já aprovado, inclusive, na Câmara dos Deputados.

Referido projeto, se aprovado também no Senado Federal e sancionado da forma como está, tornando-se lei complementar (esperamos que as impropriedades jurídicas e gramaticais sejam corrigidas), disporá, em seu artigo 586, que poderão ser penalizados tanto as empresas de pesquisa quanto os contratantes, os candidatos, os partidos políticos, as coligações e, ainda, os veículos de comunicação que primeiro veicularem o resultado da pesquisa não registrada, regressando, em certa medida, à antiga sistemática da Lei nº 9.100/95.

Mas o projeto vai além, prevendo expressamente a responsabilização do eleitor que reproduzir ou retransmitir a pesquisa sem registro, cominando uma pena pecuniária bem inferior à prevista para os demais destinatários da reprimenda (mencionados no tópico anterior).   

Dessa forma, à luz da futura legislação, se assim aprovada, haverá amparo legal para que a Justiça Eleitoral imponha sanções aos particulares (leia-se: eleitores, pessoas naturais), com base em veiculação de pesquisa eleitoral sem prévio registro. Mas, atualmente, não há.

Seria, aliás, uma boa oportunidade para o legislador corrigir por inteiro essa séria distorção na aplicação do Direito, instituindo a anistia para as pessoas naturais que já foram condenadas, à revelia do princípio da legalidade.

Fica o registro. Ou melhor, a sugestão. 

 


[1] Nas eleições de 2020, presenciamos incontáveis julgados que cancelaram as filiações partidárias de eleitores, por duplicidade/coexistência de filiações, apesar de a Lei, desde 2013, dispor que em tal hipótese prevalecerá a filiação mais recente (artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 9.096/95). E o argumento principal era de que as filiações tinham a mesma data e, não podendo a Justiça Eleitoral identificar qual seria a mais recente,todas deveriam ser canceladas.

[2] Recurso Eleitoral nº 0600083-57.2020.6.26.0058. Este, entre tantos outros julgados, chamou a atenção porque a parte pelo menos questiona a legalidade da condenação, circunstância rara nos processos dessa natureza.

[3] Destacamos somente a Resolução das eleições de 2020, mas nos anos anteriores a sistemática foi idêntica (Resoluções TSE 23.549/17, 23.453/15, 23.400/13 etc.).  

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