Opinião

Direito, tecnologia e inovação em 2022: primeiras impressões para o Brasil

Autor

  • Fabrício Bertini Pasquot Polido

    é advogado professor associado de Direito Internacional Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas em L.O. Baptista.

17 de janeiro de 2022, 18h17

Apesar da constatação de nossos tempos "intrapandêmicos" que não terminam, 2021 definitivamente foi um ano repleto de desenvolvimentos no campo das tecnologias e inovação para o Direito. De modo geral, poderíamos lembrar as diferentes agendas regulatórias para governança da internet no Executivo e Legislativo brasileiros, as incursões para alteração do Marco Civil da Internet, as redobradas pressões sobre as big techs, além de um novo cenário institucional trazido com a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados. Muita comoção também foi gerada com os episódios envolvendo megavazamento de dados de brasileiros, sua utilização na deep web e variados ataques cibernéticos a determinadas bases de dados governamentais. Tivemos novidades com a estrutura operante da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a entrada em vigor das regras da LGPD estabelecendo sanções e multas, após longo e tortuoso caminho da lei, além de uma leve sensação de que o Brasil teria condições de deslanchar e navegar no oceano das leis e instituições de privacidade em escala global.

Outros temas também foram muito discutidos, por corpos ressuscitados, a propósito da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a inconstitucionalidade da regra da extensão do prazo de validade de patentes de invenções para além dos 20 anos — prazo universalmente reconhecido por tratados relevantes da propriedade intelectual, como o Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio. Entre nós, o artigo 40, parágrafo único, da Lei de Propriedade Industrial foi assunto extensivamente comentado por especialistas. O STF, por sua vez, estabeleceu um arsenal de opiniões contundentes entre os julgadores, de modo a fazer a diferença e demonstrar que a questão jurídica de fundo não poderia ficar reduzida apenas a uma narrativa superficial contra o atraso na concessão de registros de patentes pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o famoso backlog. Difícil, por outro lado, parece ter sido o reconhecimento, nos autos do processo constitucional, de que o Estado brasileiro deixou há tempos de valorizar as políticas industrial, científica, tecnológica e de inovação. Esse aspecto é evidente e confirma a visão deletéria  aparentemente liberal-econômica  de que essas áreas representariam meras despesas públicas e não investimentos. O atraso em que nos metemos, pois, parte de um ponto de chegada simbolizado pela completa falta de políticas públicas. Ele constitui intersecção temática necessária para que qualquer jurista tecnicamente qualificado possa enfrentar os desafios trazidos pela tecnologia e inovação para o Direito.

É sempre muito difícil fazer prognósticos dentro do Direito, inovação e tecnologias no Brasil, contudo a tarefa da advocacia especializada é a de engajar-se em um exercício construtivo e crítico em seu campo de conhecimento e prática profissional. Para 2022, existem tendências distintas já em marcha, que chegaram quentes para algumas das frentes mais sensíveis, como a regulamentação da internet, com os novos projetos de leis que modificam o Marco Civil para responsabilizar provedores de serviços online; regras para transparência nos mecanismos de moderação de conteúdo (especialmente no PL 2.630 — Lei de Liberdade, Transparência e Responsabilidade), assim como a discussão sobre obrigação de remuneração de conteúdo de notícias pelas plataformas, em inequívoca pressão de conglomerados televisivos que se ressentem da presença da internet na vida dos cidadãos brasileiros e do boom de novos modelos de negócios típicos da economia digital. Essa mesma novela, vale lembrar, foi sendo reprisada na Austrália, União Europeia, Canadá e assim por diante, sem fossem estabelecidas as diferentes condicionantes políticas, sociais e culturais para as decisões de política normativa para a internet nos países e chega importada para o cenário legislativo brasileiro. 

A pressão pela reforma superficial da Lei de Direito de Autor, de 1998, para adaptá-la ao ambiente digital, por sua vez, bem como as interpretações distorcidas trazidas aos tribunais brasileiros em matéria de exceções e limitações aos direitos sobre obras de autoria disponíveis online, demonstram o completo desalinho dessas frentes com a prática comparada e aplicação dos tratados da propriedade intelectual. A Convenção de Berna, de 1886, e suas evoluções interpretativas e aplicativas (por exemplo, a famosa "regra dos três passos") nos tribunais comparados têm sido adaptadas aos novos modelos de produção, distribuição e exploração de conteúdo autoral protegido na internet. Nossos legisladores e juízes são provavelmente iludidos a respeito de como os direitos de autor funcionam na prática. Se esquecem de visualizar como mecanismos variados de financiamento e produção colaborativas, acordos de coparticipação e licenças alternativas (por exemplo, acesso aberto, Creative Commons, software livre) tornaram-se a realidade do mundo digital. Artistas emergentes — e outros já em queda de popularidade e prestígio  são induzidos a contestar paródias e criações derivativas a partir de suas obras, como se elas não fossem legais e legítimas; ou como se eles não pudessem aproveitar as oportunidades inovadoras trazidas pelas ferramentas digitais, com espaços de desenvolvimento de projetos autorais social e culturalmente orientados para diversidade, abertura e transformação, também suscetíveis de "monetização".  

Não levaríamos ao extremo esse argumento, contudo. Isso porque a irresponsabilidade de governos também é contributiva com o caos. A manifesta destruição das bases das políticas de incentivo à cultura no Brasil, em alta com as sucessivas perdas de investimentos e projetos, criou injustiças e hostilidades contra a classe artística brasileira. Sem estímulos à cultura local  megadiversa, diga-se de passagem não existem direitos autorais viáveis no Brasil, a não ser a serviço de titulares estrangeiros credores de royalties pagos localmente. Provavelmente este ano que se inaugura permanecerá com o gosto de amarga derrota de nossa capacidade brasileira de transmutar e tornar a vida mais animada, leve e feliz com o entretenimento, a diversidade cultural e todos os potenciais de uma autêntica indústria criativa no país.   

2022 também contará com potenciais intervenções regulatórias sobre as atividades de plataformas de marketplace em operações envolvendo venda online de produtos não homologados pela Anatel, assim como novas regras e orientações trazidas pelo Plano Nacional de Combate à Pirataria. O combate à pirataria é globalmente reconhecido como objetivo necessário para redução de riscos à saúde, perdas de receitas obtidas com a tributação no comércio e prejuízos aos direitos de titulares da propriedade intelectual. No entanto, existem também preocupações quanto aos usos e atos de comercialização legítimos de produtos e serviços que estejam aparados por exceções e limitações à propriedade intelectual e regras de proteção ao consumidor online e que não constituam violação de direitos de titulares, ou pirataria e contrafação.

Da mesma forma, a depender de como as autoridades domésticas passem a tratar "produtos não homologados", "produtos pirateados", estabelecendo regulamentos que possam criar obstáculos e barreiras injustificadas ao comércio de bens tecnológicos no e-commerce, o Brasil poderá ser alvo de uma reclamação no contencioso da Organização Mundial do Comércio, em especial por violação de obrigações estabelecidas nos Acordos GATT, Trips e de Barreiras Técnicas (TBT). Em alta estarão questões envolvendo tecnologias digitais e comércio internacional, sobretudo quanto à discussão sobre especificações técnicas de produtos eletrônicos, dispositivos inteligentes, baterias, roteadores e TV boxes (como os que permitem acesso a serviços de streaming) e prováveis conflitos com obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, inclusive relativamente ao pleito de adesão do país à OCDE.

Outra marca do agitado ano que se inicia é o do percurso de ascensão das instituições de privacidade e proteção de dados no Brasil. 2022 será basicamente esperado em três grandes frentes para a ANPD, sendo a primeira de expansão regulatória (com novas regulamentações, diretrizes e orientações), a segunda de atuação fiscalizatória e sancionatória pelo órgão e a terceira de cooperação reforçada com outras instituições no Brasil e exterior. Não diferentemente, a ANPD caminhará em suas iniciativas educativas e estratégicas na área de proteção de dados, mas também deve avançar na gradual instauração de processos administrativos para apuração de violação à Lei Geral de Proteção de Dados, com imposição de sanções e multas a empresas, espelhando-se na prática internacional. A Autoridade também voltará sua atividade normativa para regulamentações profundas dentro do campo específico de sua atuação. Nesse sentido, destacam-se questões relacionadas ao exercício concreto de direitos de titulares, aplicação das bases de tratamento de dados pessoais, como no caso de interesse legítimo de controladores, interfaces com regras de segurança da informação, proteção do consumidor e proteção de direitos fundamentais. Importante aqui que sejam ponderados valores e objetivos relacionados às políticas de privacidade e governança de proteção de dados; a atuação regulatória deve encontrar estímulos para que a aplicação da LGPD não seja feita de modo refratário a princípios de inovação e desenvolvimento de modelos de negócios entre agentes econômicos, particularmente rumo à expansão da economia digital.

A ANPD tenderá à conduta proativa nas atribuições de fiscalização preventiva, como em solicitações a controladores, em particular quanto à apresentação de relatórios de impacto à proteção de dados, procedimentos de revisão de testes de balanceamento de interesse legítimo no tratamento de dados, e avaliação de danos substanciais a direitos fundamentais de titulares, particularmente em relação a certas indústrias e em função das atividades intensivas de tratamento de dados.  Em operações de fusões e aquisições, que se intensificam durante o já longo período de recessão na economia brasileira, vários setores serão cobrados por planos de contingência contra riscos de segurança da informação e medidas sancionatórias decorrentes da implementação atrasada ou deficitária da LGPD pelas empresas brasileiras. A Autoridade poderá voltar-se mais detidamente à elaboração de recomendações relacionadas à proteção de dados pessoais e privacidade em sistemas baseados em biometria e reconhecimento facial, dispositivos associados à internet das coisas e aplicações centradas em inteligência artificial.

De outro lado, preocupações de segurança cibernética estarão em evidência, sobretudo em virtude das vulnerabilidades de segurança de sistemas e bases de dados de órgãos governamentais em áreas de saúde pública, saneamento e energia ("infraestruturas críticas"). A politização dos ataques feitos por grupos extremistas online e processos judiciais variados em matéria eleitoral seguramente serão um dos esperados eventos a afetar o ambiente digital, as redes informáticas e privacidade de dados, com respostas que deverão ser dadas tanto pelo Tribunal Superior Eleitoral como pela ANPD. Para direito e tecnologias, 2022 será um ano de muitas emoções, mas também de experimentação e evolução.  

Autores

  • é advogado, professor associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da UFMG, doutor em Direito Internacional pela USP e sócio das áreas de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas de L.O. Baptista.

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