Público & Pragmático

A Lei das Ferrovias e a desapropriação

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16 de janeiro de 2022, 8h00

A doutrina brasileira tradicionalmente relembra que o Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, atual Lei Geral de Desapropriações, foi editada em período autoritário da história brasileira, em que o Parlamento se encontrava fechado [1], e defende sua revisão [2]. Carlos Ari Sundfeld chega a dizer que a lei é "filha da ditadura — cujo perfil expressa à perfeição" [3].

Se a afirmação já seria discutível em 1941, quando do advento do diploma legal em questão — dadas as suas semelhanças, em termos de Direito material, com a legislação que o antecedeu e que derivava de atos do Congresso Nacional e da Assembleia Geral do Império —, ela deixou de fazer sentido após as sucessivas reformas legislativas pelas quais passou o Decreto-Lei nº 3.365. Dos 43 artigos originais do diploma, dez tiveram sua redação alterada, no todo ou em parte, por leis posteriores aprovadas pelo Congresso Nacional (artigos 3º, 4º, 5º, 10, 15, 26, 27, 28, 32 e 33), que também acrescentaram outros cinco artigos originalmente inexistentes (artigos 10-A, 10-B, 15-A, 15-B e 34-A). E isso sem falar no advento de outros diplomas que tiveram forte impacto no tema, embora sem alterar formalmente o texto de 1941, como os Códigos de Processo Civil de 1973 e 2015, o Código Civil de 2002, a Lei nº 4.132, de 1962, a Lei Complementar nº 76, de 1993, a Lei nº 8.629, de 1993, a Lei de Concessões, o Estatuto da Cidade e a Lei de Responsabilidade Fiscal, para ficar apenas no âmbito infraconstitucional.

Mais importante do que o número de dispositivos alterados é a profundidade e a abrangência das modificações. A mais significativa delas segue sendo a promovida pela Lei nº 2.786, de 1956, que teve por objetivo adaptar o Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, à Constituição de 1946, tal como descreveu o deputado Bilac Pinto na justificativa do Projeto de Lei nº 466-B, de 1955 [4]. Essa adaptação pode ser considerada incompleta e aberta à revisão da jurisdição constitucional, mas não inexistente.

O objetivo do presente artigo, contudo, não é uma análise global da compatibilidade entre o diploma de 1941 e a Constituição vigente [5], e nem um apanhado das diversas modificações legislativas, mas, sim, tratar da mais recente delas, a promovida pela Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021, que "estabelece a Lei das Ferrovias".

O artigo 68 da Lei de Ferrovias modificou parcialmente a redação dos artigos 3º, 4º e 5º do Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, e acrescentou o artigo 176-A à Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 1973), que também envolve desapropriação. Além disso, tratou do tema em outros dois dispositivos do corpo de seu texto: artigos 29, XII, e §2º, 61, §2º, III.

A maior parte das novidades já havia constado da Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021, ainda pendente de apreciação pelo Congresso Nacional, mas que atualmente está em vigor, uma vez que a vigência da nova Lei de Ferrovias só terá início em meados de fevereiro de 2022, 45 dias após sua publicação (artigo 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Na verdade, essa medida provisória foi baseada no texto do PLS nº 261, de 2018, de iniciativa do senador José Serra e relatado pelo senador Jean Paul Prates. Esse projeto de lei, por sua vez, na parte referente à desapropriação, constitui uma versão sintética, após exclusão de pontos polêmicos, da Medida Provisória nº 700, de 2015, que deixou de vigorar por não ter sido apreciada no prazo constitucional pelo Congresso Nacional [6].

Feita essa introdução, é hora de abordar as modificações legislativas realizadas. A partir deste ponto, recomenda-se ao leitor que passe a consultar os textos legais citados, à medida que progrida na leitura.

A primeira modificação promovida pela Lei das Ferrovias é no elenco de legitimados a "promover a desapropriação", ou seja, a realizá-la por meio de acordo com o expropriado ou ajuizamento da ação judicial pertinente. Na nova redação do artigo 3º da Lei de Desapropriações, fica explícita a possibilidade de que a desapropriação seja promovida por concessionários em geral, e não apenas concessionários de serviços públicos, e pelos autorizados a explorar ferrovias. A lei não fez referência aos autorizatários nos setores portuário, aéreo e aeroportuário, como fizera a Medida Provisória nº 1.065, de 2021, mas é possível que eles recebam tal atribuição com base no novo inciso III do artigo 3º, que menciona "entidades que exerçam funções delegadas do poder público".

Outro progresso da nova redação do artigo 3º do Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, é a exclusão da referência arcaica a "estabelecimentos de caráter público", nomenclatura aparentemente herdada do ordenamento jurídico francês e que caiu em desuso no Brasil, eliminando, assim, a ambiguidade existente no texto original, que não deixava claro se a promoção da desapropriação poderia ser atribuída a quaisquer estabelecimentos "que exerçam funções delegadas de poder público", ou apenas a estabelecimentos "de caráter público" que exerçam tais funções. O termo "entidades", utilizado na nova redação, é mais adequado à linguagem jurídica brasileira dos dias de hoje.

Em comparação com a caduca Medida Provisória nº 700, de 2015, o novo artigo 3º deixou de fazer referência à promoção da desapropriação pelo "contratado pelo Poder Público para fins de execução de obras e serviços de engenharia sob os regimes de empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada", justamente um dos pontos que mais causou controvérsia na época. A omissão, contudo, não tem maior relevância, pois já foi resolvida pela nova Lei de Contratações Públicas, que autoriza a atribuição da promoção de desapropriação ao contratado de modo até mais amplo (artigo 25, §5º, II, da Lei nº 14.133, de 2021), em especial, mas não exclusivamente, nas hipóteses de contratação integrada e semi-integrada (artigo 46, §4º, da Lei nº 14.133, de 2021).

Vale lembrar que a promoção da desapropriação por todos esses particulares colaboradores do poder público depende, além da autorização contratual, de prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, que continua regulada pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, que não foi modificado. Continua necessário, portanto, o decreto do chefe do Poder Executivo ou, em hipóteses explicitamente previstas em lei, ato praticado por agência reguladora, como a Aneel (artigo 10 da Lei nº 9.074, de 1995) e a ANTT (artigo 24, XIX, da Lei 10.233, de 2001), ou autarquia, como o Dnit (artigo 82, IX, da Lei 10.233, de 2001).

A segunda modificação da Lei de Ferrovias no regime das desapropriações é no parágrafo único do artigo 4º do Decreto-Lei nº 3.365, de 1941. A nova redação autoriza que a receita decorrente da revenda ou exploração imobiliária de imóveis expropriados componha a remuneração do agente executor do plano urbanístico que motivou a expropriação. A redação anterior do dispositivo, inserido pela Lei nº 12.783, de 2013, continha autorização similar, mas um pouco mais restritiva. Ela mencionava apenas urbanização e reurbanização, enquanto a nova fala em planos de urbanização, renovação urbana, parcelamento ou reparcelamento do solo, o que deixa muito mais clara a possibilidade de aplicação da regra a áreas já urbanizadas. A redação anterior também mencionava "projeto associado", o que demonstra que esta receita era tratada como acessória, nos termos do artigo 11 da Lei de Concessões. Na nova redação, nada impede que essa receita seja a principal, o que pode ser útil em concessões urbanísticas. Por fim, a redação anterior também exigia que o poder público recebesse, no mínimo, ressarcimento dos desembolsos com indenizações em desapropriações que ele tivesse custeado, o que poderia não fazer sentido em parcerias público-privadas em que o concessionário recebesse parte de sua remuneração diretamente dos cofres públicos. Essa limitação foi excluída, relegando o tema à modelagem de cada empreendimento.

A terceira modificação é o acréscimo dos novos §§4º e 5º ao artigo 5º do Decreto-lei nº 3.365, de 1941. Os novos dispositivos explicitam a possibilidade de alienação dos bens expropriados ou em cuja posse o expropriante foi imitido, inclusive por integralização de cotas de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico, bem como da cessão de sua posse direta ou indireta por qualquer mecanismo contratual. A previsão poderá ser útil sobretudo em projetos de renovação urbana ou reparcelamento do solo, que poderão ser modelados para que os proprietários de lotes amplamente modificados se tornem cotistas de fundos ou acionistas de sociedades de propósito específico que terão a atribuição de implementar o empreendimento urbanístico (por exemplo, artigo 61, §2º, II, da Lei das Ferrovias), ampliando seu interesse na valorização dele decorrente e, assim, reduzindo a resistência ou o interesse de reter determinado bem para tentar obter indenização superior aos seus vizinhos. O novo §5º deixa claro que a alienação ou cessão deve assegurar que o imóvel receba a destinação prevista no plano de urbanização, renovação urbana, parcelamento ou reparcelamento do solo, o que reduz significativamente o risco de desvio de finalidade e utilização indevida da expropriação para tão somente beneficiar determinado particular.

As modificações promovidas na Lei de Registros Públicos — introdução do artigo 176-A e modificação da redação do artigo 235 — são saudáveis, pois potencializam os efeitos benéficos da desapropriação como aquisição originária da propriedade, permitindo que ela seja utilizada para superar obstáculos registrais de difícil solução. Trata-se, mais uma vez, de prudente retomada da modificação que havia sido feita pela Medida Provisória nº 700, de 2015.

Em relação às disposições sobre desapropriação constantes do corpo do texto da Lei das Ferrovias — ou seja, em artigos que não modificam a redação de dispositivos de outros diplomas legais —, merece destaque o artigo 29, §2º, que prevê que a "autorizatária arcará com os custos e riscos da fase executória do procedimento de desapropriação", o que é coerente com a adoção do regime privado em assimetria regulatória para o setor ferroviário, medida central da nova lei.

Por fim, o artigo 61, §2º, III, da nova Lei de Ferrovias deixa claro que essa atribuição de promoção de desapropriações à autorizatária se aplica também à execução de projeto urbanístico associado à ferrovia, e não apenas à construção da linha ou da infraestrutura ferroviária de apoio. Isso ocorre mesmo se o expropriante for sociedade de propósito específico, ou seja, uma pessoa jurídica com atribuição exclusiva de implementar o projeto urbanístico e se a finalidade primária da expropriação for a renovação urbana. De todo modo, essas desapropriações devem estar de acordo com "o disposto no plano diretor municipal e no plano de desenvolvimento urbano integrado", ou seja, as autorizatárias não assumirão nenhuma competência decisória sobre planejamento urbano, que continua a ser dos municípios, isoladamente ou em conjunto (na hipótese de municípios integrantes de região metropolitana ou aglomeração urbana).

Em suma, embora intitulada Lei das Ferrovias, a Lei nº 14.273, de 2021, tem impacto geral — e positivo — sobre o regime jurídico das desapropriações.

Não é a primeira vez que isso ocorre no Brasil. Durante o Império, o Decreto nº 1.664, de 27 de outubro de 1855, estabeleceu regras específicas para a desapropriação para "construção das estradas de ferro", excepcionando a aplicação do Decreto nº 353, de 12 de julho de 1845, que era a Lei Geral de Desapropriações. Posteriormente, nas primeiras décadas da República, o Decreto nº 1.021, de 23 de agosto de 1903, transformou as regras que eram especiais em gerais, aplicáveis a "todas as obras da competência da União e do Distrito Federal" (artigo 1º).

Como se vê, a estreita relação entre o regime geral das desapropriações e a implantação de ferrovias vem de longa data. É de se esperar, portanto, que ela gere progressos jurídicos transversais, e não meramente setoriais. Para saber se a expectativa será convertida em realidade, será necessário acompanhar a regulamentação e a execução da nova lei, com a consciência de que seus frutos, se existentes, serão colhidos em décadas, e não em meses.


[1] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à lei da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 10 e 67.

[2] Por exemplo: MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 18ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 398.

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 192, p. 38, abr./jun. 1993.

[5] Uma ótima análise com tal objetivo foi feita em ARAUJO, Florivaldo Dutra de. A lei geral de desapropriação em face da constituição de 1988. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca; BARBOSA, Maria Elisa Braz; COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da; CORDEIRO, Caio Barros (Coord.). Estado e propriedade: estudos em homenagem à professora Maria Coeli Simões Pires. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 301-319.

[6] Isto foi mencionado explicitamente pelo Consultor Legislativo do Senado Federal, Victor Carvalho Pinto, em sua participação na audiência pública realizada na Comissão de Infraestrutura do Senado Federal no dia 27 de junho de 2019. O vídeo pode ser assistido em https://www12.senado.leg.br/portalcedoc/pcedoc2/2019/20190627/20190627125801_1201216.MP4.

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