Opinião

Ainda sobre a soberania dos veredictos

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15 de janeiro de 2022, 10h12

O julgamento do "caso Boate Kiss, finalizado no dia 10 de dezembro de 2021 na comarca de Porto Alegre, após desaforamento do local da tragédia, em Santa Maria (RS), tomou de assalto os noticiários brasileiros. E, como não poderia deixar de ser, trouxe à baila relevantíssimas discussões, tanto no âmbito do Direito Penal material quanto no Direito Penal processual. Para além do aparentemente inesgotável debate quanto aos limites da culpa consciente e do dolo eventual, cumpre agora obrar breve análise da constitucionalidade do novel artigo 492, inciso I, alínea "a", do CPP, o qual autoriza a execução provisória de condenação do tribunal popular, em se tratando de pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.

De proêmio, observa-se que o fundamento chave da defesa da validade material do aludido dispositivo diz respeito à necessidade de hermenêutica sistematizadora entre o princípio da não culpabilidade (artigo 5º, LVII, CR/88) e o princípio da soberania dos veredictos (artigo 5º, XXXVIII, alínea "c", CR/88). Com efeito, defende-se, em apertadíssima síntese, que, vislumbrada a impossibilidade de reforma de mérito do decidido pelo Tribunal do Júri, não haveria óbice à execução imediata da condenação.

Nada obstante, ressalvados os entendimentos em contrário, de há muito é sabido que a soberania dos veredictos, como princípio constitucional que é, encontra-se sujeita às mais variadas limitações, não ostentando, assim, natureza absoluta [1]. Nesse alinhavar de ideias, a soberania não pode ser confundida com o arbítrio, isto é, eventual poder ilimitado dos jurados. Cuida-se, tão somente, da inviabilidade de outro órgão judiciário substituir a decisão do conselho de sentença, nem mais, nem menos [2]. A bem da verdade, é esse, inclusive, o ponto fulcral da irresignação de parcela da doutrina que sustenta a recorribilidade de decisum exculpatório quando fundado no quesito absolutório genérico. Não se pode admitir que a decisão de juízes leigos, sem qualquer intenção ou viés elitista, passe ao largo da recorribilidade, haja vista a inexistência, no Estado democrático de Direito, de qualquer atribuição, competência ou poder indene de controle racional.

Conclui-se, por imperativo de coerência, que a recorribilidade das decisões de mérito do Tribunal do Júri, ainda que de cognição horizontalmente limitada, depõe contra a possibilidade de execução imediata de eventuais decisões condenatórias. Seja pela submissão do acusado a novo júri, em que pese a única vez (artigo 593, §3º, CPP), seja pela anulação do julgamento em virtude da ocorrência de nulidade, por quantas vezes necessário, caracterizando provimentos de natureza rescindente, demonstra-se, a mais não poder, que o reexame da decisão condenatória proferida não é ficção ou mera formalidade legal. Entender o contrário seria, em última análise, negar o próprio sistema recursal, tornando letra morta o artigo 593, CPP, em prejuízo do cidadão.

A reforçar o encaminhamento proposto, admite-se, inclusive, o juízo rescisório de condenação do Tribunal do Júri em sede de revisão criminal, isto é, possível a superação da soberania dos veredictos na hipótese, com a prolação de sentença absolutória, privilegiando o status libertatis do sentenciado [3].

Não fosse suficiente, o princípio da não culpabilidade, da forma como redigido na Carta Maior, assemelha-se muito mais à tipologia de regra, visto que, sem trânsito em julgado da sentença penal condenatória não há falar em reconhecimento de culpa [4]. Com a edição do artigo 283 do CPP, reforçou-se tal impedimento. Concedidas todas as vênias, não se verifica possível escapar ao retrocitado entendimento, mormente em se considerando que a interpretação constitucional deve sempre encontrar limites na expressão literal de seus dispositivos. A violência contra a expressa literalidade do texto, a alterar, ao fim e ao cabo, o próprio conteúdo do direito fundamental em testilha esbarra em óbice instransponível consistente na separação de poderes (artigo 2º, CR/88) [5]. De mais a mais, hialina a diferenciação existente entre a extensão da presunção de não culpabilidade talhada pelo constituinte originário, a exigir trânsito em julgado da sentença condenatória, e o teor da norma análoga positivada no Pacto de São José da Costa Rica, a qual pressupõe, para superação da referida presunção, a comprovação legal da culpa. Trata-se, esta, de garantia mínima, sustentáculo basilar do avanço civilizatório então esperado da América Latina. Todavia, a Constituição brasileira foi além, reforçando e expandindo o direito-garantia em tela [6], a autorizar a incidência da regra pro homine. A maior amplitude apresentada no ordenamento brasileiro, pela presunção de inocência, ou de não culpabilidade, deverá, portanto, prevalecer, como resultado do diálogo entre fontes internacionais (tratados de direitos humanos) e de direito interno.

Ao que tudo indica, a questão foi sepultada com o julgamento das ADCs 43 e 44. Logo, sem que ocorra frontal violação ao princípio da isonomia, não há justificativa razoável para permitir-se a execução imediata das decisões do tribunal popular e negá-la em relação aos demais delitos não dolosos contra a vida. É dizer: o júri é garantia do cidadão, de forma que não pode a soberania dos veredictos ser supervalorizada a ponto de inverter os polos, tornando-o instrumento de imposição da vontade do soberano em face do súdito.

Em prol da plenitude da defesa (artigo 5º, XXXVIII, alínea "a", CF/88), inconcebível que seja instrumentalizado o Tribunal do Júri para a realização de pretenso "sentimento geral" de justiça. Nunca é demais reforçar: o ordenamento jurídico possui, suficientemente, instrumentos para se obstar chicana processual. O Supremo Tribunal Federal, v.g,, sempre avalizou a certificação do trânsito em julgado, caso verificada a interposição de recursos meramente protelatórios [7]. E mais: a decretação da prisão preventiva supre, também a contento, a imperativa necessidade de garantia da ordem pública, sendo certo que, após a decisão do corpo de jurados, extravasada a imperiosidade de demonstração do fumus comissi delicti, por motivos óbvios, resta ao juiz-presidente fundamentar somente o periculum libertatis (artigo 312, caput, in fine, CPP).

Vislumbra-se, do exposto, que o juízo de necessariedade é ínsito a qualquer prisão determinada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, em estrita observância da linha mestra determinada pelo constituinte originário, verdadeira opção política, legítima, do Estado brasileiro, indevassável por manobras hermenêuticas. Para o bem da clareza: pode-se não concordar com a escolha, mas impõe-se sua observância, fulcrada no rigor dogmático. Isso porque, para o bem ou para o mal, somente o poder constituinte originário possibilitaria a alteração do multicitado direito insculpido no artigo 5º, inciso LVII, haja vista que o poder constituinte derivado possui relevante limitação material, nos termos do artigo 60, §4º, CR/88, a desautorizar qualquer alteração involutiva dos direitos e garantias fundamentais.

Nessa toada, a inconstitucionalidade da novel previsão legal ressoa ainda mais latente, à constatação de que fixado, sem maior justificativa, o quantum de 15 anos de reclusão. Sabida e consabida a existência de espaços diversos no âmago da decisão complexa oriunda do Tribunal do Júri. Conforme, inclusive, reconhecido pelo Pretório Excelso [8], compete ao jurado decidir sobre o mérito da imputação, conquanto ao juiz-presidente deliberar sobre a pena. Via de consequência, a cognição dos recursos referentes à dosimetria é ampla e exauriente, de modo que pode o Tribunal de Justiça reformar o quantum inicialmente fixado, ex vi do artigo 593, III, alínea "c", c/c o §2º, CPP.

Ora, à vista da possibilidade de reexame, repise-se, amplo e integral do cálculo dosimétrico, salta aos olhos a patente arbitrariedade, como que se implantado um sarrafo a ser superado pelos magistrados, a fim de que alcançada a constrição de liberdade imediata. Destarte, por via oblíqua, caso vislumbrada a presença dos requisitos autorizadores da custódia cautelar, poderia o julgador, simplesmente, carregar na dosimetria, sujeita à tão falada discricionariedade regrada, alcançado o quantum mínimo legal, sem sujeição à rígida e necessária motivação da prisão preventiva, nos termos dos artigos 312, caput, e 313, ambos do CPP. Tal incongruência foi percebida no voto do eminente ministro Roberto Barroso, no bojo do RE nº 1235340/SC, o qual decidirá, com repercussão geral, sobre o tema sub examine, não obstante, por motivos diversos, argumentando, ao contrário do sustentado no presente ensaio, que, soberanas que são as decisões do júri, não caberia à lei limitar a concretização e o alcance das mesmas deliberações. Ousa-se esgrimir a conclusão supra: o corte dosimétrico previsto na legislação objetiva, valendo-se de razão de política criminal consubstanciada na validação de penas altas como instrumento de prevenção geral, legitima, vergonhosamente, o voluntarismo legislativo, ao arrepio da Constituição Federal.

Com efeito, espera-se que o Supremo Tribunal Federal reconheça a inconstitucionalidade, ainda que por maioria de votos, da exequibilidade imediata das decisões condenatórias do Tribunal do Júri, de modo a não supervalorizar a soberania dos veredictos a ponto de subverter sua essência de garantia do cidadão contra o Estado, permitindo-lhe ser julgado por seus pares. A simples impossibilidade de substituição do julgamento do corpo de jurados pelo de outro órgão judiciário não deve levar, irremediavelmente, à pretensa negativa de vigência do sistema recursal erigido pelo Código de Processo Penal. O direito ao recurso, corolário dos princípios do contraditório e ampla defesa, ostenta importantes fundamentos sociais, pautados na falibilidade humana e no inconformismo das pessoas [9].

No júri, em cujo procedimento as decisões finais carecem de motivação ante a incidência do sistema da íntima convicção, tais escopos recursais, ao contrário de negados, devem ser reforçados, consolidado o equilíbrio entre soberania popular e o império do Direito.

 


[1] Por todos, STF, HC 114770, Rel. Min. Marco Aurélio; Rel. p/ Ac. ministra Rosa Weber

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique Ivahy. Processo Penal. 8ª Ed. RT. 2020, p. 765

[3] Por todos, STJ, RESP 964.978/SP, relatora ministra Laurita Vaz

[5] MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional. 11ª Ed. Saraiva, 2017, p. 1351

[7] Por todos, o recente HC 129138, relator ministro: Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão ministro Alexandre de Moraes.

[8] STF, HC n. 85944-1/SP, relator ministro Cesar Peluso

[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Vol. Único. 6ª Ed. 2018, Juspodium. Salvador, p. 1648

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