Observatório Constitucional

Veto reacende debate sobre controle de constitucionalidade de benefícios fiscais

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15 de janeiro de 2022, 8h00

O veto recentemente aposto pelo presidente da República ao Projeto de Lei Complementar nº 46/2021, que "institui o Programa de Reescalonamento do Pagamento de Débitos no Âmbito do Simples Nacional (Relp)", reacende o debate jurídico sobre parâmetros normativos de controle das renúncias de receita no Brasil.

Na Mensagem nº 17, de 6 de janeiro de 2022, em que comunicou a decisão, o presidente da República aponta duplo fundamento: inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. A proposição "ao instituir o benefício fiscal, implicaria em renúncia de receita, em violação ao disposto no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no artigo 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000  Lei de Responsabilidade Fiscal, e nos artigo 125, artigo 126 e artigo 137 da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020 — Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 (sic)".

Ou seja, o projeto não teria atendido à exigência constitucional de estar acompanhado da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro (artigo 113 do ADCT), daí a inconstitucionalidade. Também não teria cumprido os requisitos previstos no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 para concessão de benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita, especialmente a instituição de medidas de compensação, daí a contrariedade ao interesse público.

Não é a primeira vez que um projeto de lei que estabelece ou prorroga benefício fiscal é vetado por razões dessa ordem, seja pela falta de estimativa, seja pela falta de medidas de compensação. Também não se pode ignorar que diversos outros são sancionados, embora lhes faltem ambos os requisitos. Os exemplos são muitos.

Há, no entanto, uma mudança importante em andamento desde o final de 2016, a partir da edição da Emenda Constitucional nº 95. A emenda, no artigo 113, que incluiu no ADCT, elevou a exigência de estimativa de impacto orçamentário e financeiro ao nível da Constituição Federal, trazendo, por consequência, para o mesmo patamar também o debate jurídico sobre as renúncias fiscais.

Já tratamos desse tema em duas outras oportunidades nesta coluna. Primeiro, para destacar a prevalência do controle formal em matéria de benefícios fiscais (e renúncias de receita) no âmbito no STF. Depois, para apontar como a inserção do artigo 113 no ADCT alargou o espaço de apreciação dos benefícios fiscais pelo STF, que normalmente só se debruçava sobre a matéria para tratar da temática da guerra fiscal.

Na quadra atual do debate, o tribunal vai ocupando paulatinamente o espaço aberto com o novo parâmetro constitucional estabelecido pelo artigo 113 no ADCT. Com fundamento na alegação de falta de estimativa de impacto, tornaram-se cada vez mais frequentes as ações diretas nas quais se questiona a validade de benefícios fiscais. É o caso, por exemplo, das seguintes ações: ADI 5.882, relator ministro Gilmar Mendes; ADI 6.632, relator ministro Ricardo Lewandowski; ADI 5.893, relator ministro Luiz Fux, entre outras.

Algumas perplexidades da leitura do dispositivo remanescem, não foram ainda objeto de julgamento nem de tratamento doutrinário mais pormenorizado. Por exemplo: qualquer estimativa de impacto orçamentário e financeiro é suficiente para atender formalmente à exigência imposta pelo artigo 113, ainda que o número apresentado careça de fundamento metodológico adequado? O requisito pode ser implementado a qualquer tempo no curso do processo legislativo ou apenas antes da (primeira?) deliberação na casa iniciadora? Quem pode/deve apresentar a estimativa, apenas o proponente ou qualquer partícipe do processo legislativo? Essa exigência poderia ser suprida quando da sanção da lei?

Há, por outro lado, questões que já foram enfrentadas pelo STF e parecem, pelo menos por ora, assentadas em sua jurisprudência. As decisões até aqui prolatadas dão sinais de assegurar a força normativa desse dispositivo constitucional, especialmente a partir do julgamento da ADI 5.816, relator ministro Alexandre de Moraes, Pleno, em 5/11/2019, e da ADI 6.074, relator ministro Rosa Weber, Pleno, em 21/12/2020.

Um aspecto fundamental é o alcance conferido à regra do artigo 113 pelo STF. O tribunal fixou entendimento de que a exigência de estimativa se aplica aos três níveis da federação, não apenas à União. Ou seja, a norma do artigo 113 é tomada como parâmetro de controle para validade de leis de incentivo estaduais ou municipais, não apenas federais.

Prevaleceu, portanto, a leitura isolada do texto artigo 113, cuja redação não especifica os entes políticos destinatários do comando, em lugar da interpretação conjugada deste artigo com o caput do artigo 106 do ADCT, que determina textualmente que o novo regime fiscal se aplica "no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, (…) nos termos dos artigos 107 a 114" [1].

Rigorosamente, não nos parece que o entendimento acolhido pelo STF seja o que mais prestigia a leitura sistemática do inteiro teor da Emenda Constitucional nº 95/2016, tampouco o histórico legislativo da sua tramitação. Interpretar assim, isoladamente, o comando do artigo 113 parece também afastá-lo da cláusula de transitoriedade prevista no artigo 106 do ADCT ("Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros"), alçando-o à condição de disposição permanente.

Por outro lado, é preciso reconhecer que essa leitura reforça a eficácia do dispositivo, amplia o número de leis de incentivo questionadas no Judiciário e, por conseguinte, a própria visibilidade do tema. A orientação fixada adotada pelo STF já produziu consequências inclusive no âmbito do Judiciário estadual.

Baseado na jurisprudência do Supremo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, alterou seu entendimento a respeito do alcance subjetivo do artigo 113 do ADCT e julgou procedente a ADI nº 2.197.983-75.2020.8.26.0000. A ação fora ajuizada contra a Lei Municipal nº 5.398/2020, do município de Mogi Guaçu (SP), que autorizava o Poder Executivo a parcelar o recolhimento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), sem incidência de juros e correção monetária.

Lentamente, o tema da renúncia de receita ganha espaço no controle judicial de constitucionalidade. Parece consolidado na jurisprudência do STF o entendimento de que a estimativa de impacto é requisito formal da validade de leis de incentivo, como decorrência direta da norma do artigo 113 do ADCT. Não se trata, portanto, de matéria interna corporis, nem de questão afeita à discricionariedade política do Parlamento. A aprovação de benefícios fiscais deve necessariamente considerar os custos de sua concessão, isto é, a renúncia de receita (efeito de renúncia)[2].

Descumprida essa exigência no curso do processo legislativo, a lei que dele resulta é formalmente inconstitucional, como já decidiu o STF no caso das Leis nº 4.012/2017 (ADI 5.816) e nº 1.293/2018, do estado de Roraima (ADI 6074), ambas declaradas inconstitucionais pelo tribunal. 

Nesse ponto está verdadeiramente o cerne da questão, a mudança em curso desde 2016. Não propriamente no teor do comando do artigo 113  estimativa de renúncia obrigatória , mas no patamar que assumiu essa norma no ordenamento jurídico e nos efeitos jurídicos que deve produzir.

A estimativa de impacto financeiro orçamentário já era obrigatória desde a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000. Contudo, seu descumprimento não autorizava a propositura de ações diretas, nem afetava a validade das leis. Em diversas oportunidades, o STF deixou de conhecer ações questionando renúncias fiscais com fundamento do artigo 14 da LRF, combinado com o artigo 163, I, da Constituição Federal, por se tratar de ofensa indireta à Constituição, que não autoriza controle concentrado de constitucionalidade [3].

Na prática, a matéria continuava insindicável do ponto de vista judicial, sujeita primordialmente à discricionariedade política do Legislativo durante a tramitação da matéria e do Executivo, quando da sanção ou veto. A decisão do constituinte derivado de soerguer a exigência de cálculo da renúncia de receita ao texto constitucional deu aos tribunais um parâmetro jurídico novo para o controle judicial de constitucionalidade dos benefícios fiscais e um papel diferente em relação ao tema, que pouco a pouco começa a ser exercido.

As consequências que até agora observamos ainda são tímidas, inclusive no plano da legislação federal. O controle de benefícios fiscais precisa ser aperfeiçoado, assim como o debate nacional a respeito da matéria. E esse caminho passa, sobretudo, pelo cumprimento do artigo 113 do ADCT, também por parte do STF.

 


[1] Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin e Marco Aurélio, no julgamento da ADI 6.074, e há precedente da Segunda Turma, em sentido contrário, com exaustivo voto em sentido contrário do relator: RE 1.158.273 AgR, relator ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 06/12/2019.

[2] Cf. CORREIA NETO, Celso de Barros. O Avesso do Tributo. 2ª ed. São Paulo: Almedina, 2016.

[3] É o caso, exempli gratia, das seguintes ações: ADI 5.005, relatora ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 05/11/2019; ADI 3.796, relatora ministra Gilmar Mendes, j. 8/3/2017; ADI-AgR 3.789, relator ministro Teori Zavascki, DJe 25/2/2015; ADI-AgR 3.790, relator ministro Menezes Direito, DJe 1º/2/2008.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, diretor-geral da Câmara dos Deputados e autor dos livros "O Avesso do Tributo" e "Os Impostos e o Estado de Direito".

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