Ambiente Jurídico

A Declaração dos Juízes sobre a Justiça das Águas

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15 de janeiro de 2022, 8h00

Em 2018, realizou-se em Brasília o 7º Fórum Mundial da Água, organizado pelo Conselho Mundial da Água [1] e pelo governo brasileiro, pela primeira vez no Hemisfério Sul, com a participação de várias centenas de entidades e pessoas interessadas. Em paralelo, foi feito um encontro de juízes com o apoio de Programa Nacional das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) [2], Organização dos Estados Americanos (OEA), International Union for Conservation of Nature (IUCN) [3] e Instituto Judicial Global para o Ambiente [4], com a participação de juízes e ministros de tribunais superiores de mais de cinquenta países. Em 21/3/2018, foi aprovada a Declaração de Brasília dos Juízes sobre a Justiça da Água, estabelecendo dez princípios que descrevemos em artigo anterior [5].

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Qual é a proteção legal da água no Direito brasileiro? A resposta envolve a evolução dessa proteção e as diversas formas como a água tem sido vista no mundo ocidental: como um recurso hídrico, que acentua o aspecto econômico e o uso para a dessedentação, irrigação, produção industrial, energia e, nessa visão, de titularidade pública ou privada; ou, em tempos recentes, como um elemento ambiental relevante integrado em um ecossistema de que depende a vida na terra, de interesse e titularidade pública [6].

A qualificação da água como um recurso hídrico é antiga. As Ordenações Filipinas de 1595 atribuíram ao rei as águas navegáveis e aquelas que as formam, pois seu uso é comum a todos "e mesmo a todos os animais", enfatizando o fluxo e a perenidade, mas sem afastar a propriedade privada dos pequenos cursos d'água. Essa posição foi acolhida pelo Código Civil de 1916, que cuidou das águas ao regular o direito de vizinhança e a utilização dos rios públicos pelos proprietários dos terrenos onde passem [7]. O Código das Águas de 1934 [8] definiu (artigos 2º a 8º) as águas públicas de uso comum (mares territoriais, correntes, canais, lagos e lagoas flutuáveis ou navegáveis e as correntes de que se façam estas águas, as fontes e reservatórios públicos, nascentes consideráveis, braços de correntes públicas que influam na navegação ou flutuação) e públicas dominicais (situadas em terrenos públicos); e as águas particulares, situadas em terrenos que também o sejam, quando não classificadas como comuns de todos, águas públicas ou águas comuns. O dono de qualquer terreno poderá apropriar-se por meio de poços, galerias etc. das águas que existam debaixo da superfície do seu prédio (artigos 96 a 101), desde que não prejudique aproveitamentos existentes; as águas pluviais (artigos 102 a 108) pertencem ao dono do prédio onde caírem diretamente, mas vedado o uso que prejudique os prédios que delas se possam aproveitar. Veda a qualquer um conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros (artigos 109 a 116). Dedica o Livro III à regulamentação da indústria hidrelétrica, uma das preocupações que levou à edição do decreto.

Enquanto o Código das Águas regulamentou o uso, o Código Florestal do mesmo ano cuidou da proteção das águas [9] ao proteger as florestas que, por sua localização, servirem conjunta ou separadamente para "conservar o regime das águas" (artigo 4º inciso I) e ao dispor que "as florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bens de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis em geral e, especialmente este código, estabelecem" (artigo 1º), um avanço relevante em relação ao Código Civil então vigente. A mesma preocupação transparece no Código Florestal de 1965 [10], que, sem falar em uso, reitera que as florestas são bens de interesse comum a todos os habitantes do país e que as áreas de preservação permanente têm, entre outras, a função de preservação dos recursos hídricos (artigos 1º e 2º, inciso II).

A LF nº 6.938/81, de 31/8/1981, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente [11], estabelece como princípios a manutenção do equilíbrio ecológico a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo, e a racionalização do uso do subsolo, da água e do ar (artigo 2º, incisos I e II), acentuando a proteção ecológica sobre o uso econômico da água. A Constituição Federal de 1988, artigo 225, não fez menção especial à água, incluída em sua previsão de direito de todos ao um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida e na regulação indicada em seus parágrafos e incisos.

A LF nº 9.433/97 de 8/1/1997 instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e seu gerenciamento [12], deixando claro que a água (toda ela) é um bem público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico (artigo 1º, incisos I e II); qualifica a água como um recurso hídrico (a lei se preocupa com o uso, vindo a proteção ambiental como um requisito para a preservação desse bem finito) e que entre seus objetivos está "assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos" (artigo 2º, inciso I) e a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental (artigo 3º inciso III), regulamentando a seguir a complexa gestão de tais recursos. A mesma preocupação com o uso aparece no Plano Nacional de Saneamento Básico [13], em que a preservação ecológica da água é apenas um subproduto do bom uso; a lei inclui no saneamento o abastecimento de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição, e o esgotamento sanitário, que compreende a coleta, transporte, tratamento e disposição final adequada dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até sua destinação final para a produção de água de reuso ou seu lançamento adequado no ambiente (artigo 3º, inciso I, alíneas "a" e "b").

A Constituição Paulista de 1989 [14] cuidou dos recursos hídricos nos artigos 205 a 213; prevê um sistema integrado de gerenciamento de recursos hídricos que assegurará a utilização racional das águas superficiais e subterrâneas e sua prioridade para abastecimento das populações, seu aproveitamento múltiplo e a proteção das águas contra ações que possam comprometer o seu uso atual e futuro; a conservação e proteção das águas subterrâneas, "reserva estratégica para o desenvolvimento econômico-social e valiosas para o suprimento de água às populações" (artigo 206); veda o lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais, sem tratamento, em qualquer corpo d'água (artigo 208); a instituição de áreas de preservação das águas utilizáveis para abastecimento da população e a implantação, conservação e recuperação das matas ciliares (artigo 210, inciso I); e que a proteção da quantidade e da qualidade das águas será obrigatoriamente levada em conta quando da elaboração de normas legais relativas a florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e demais recursos naturais e ao meio ambiente (artigo 213).

Esse arcabouço legal denota a preponderância da visão das águas como um recurso hídrico, com um bem a ser preservado para o uso das populações; mas cresce a consciência de que as águas precisam ser preservadas e respeitadas por si mesmas, como a fonte da vida e um dos mais relevantes fatores de sustentação e conformação dos biomas, das espécies, do clima; do planeta, enfim. No próximo artigo enfocaremos essa vertente ambiental que vai se avolumando no Brasil e no mundo.

 


[1] O Conselho Mundial da Água é uma organização internacional criada em 1996 com sede em Marselha, França, com cerca de 400 entidades governamentais e não governamentais associadas, de sessenta países nos cinco continentes. Sua missão é convencer os líderes públicos e privados que a área é uma prioridade política vital para o desenvolvimento sustentável e equânime do planeta. The World Water Council | World Water Council.

[2] O Pnuma (também conhecido por Unep, a sigla em inglês), um órgão da ONU, é um programa das Nações Unidas voltado à proteção do meio ambiente e à promoção do desenvolvimento sustentável; coordena as ações internacionais de proteção ao meio ambiente e trabalha com grande número de parceiros, incluindo outras entidades da ONU, organizações internacionais, nacionais e não governamentais. É sediado em Nairobi, Quênia. Sobre o Pnuma | Unep – UN Environment Programme.

[3] A IUCN é uma entidade fundada em 1948 e reúne mais de 1.250 organizações, incluindo 84 governos nacionais, 112 agências de governo e um grande número de organizações não-governamentais nacionais e internacionais, com cerca de dez mil membros individuais, cientistas e especialistas. Sua missão é influenciar, encorajar e assistir sociedades do mundo todo na conservação da natureza. União Internacional para a Conservação da Natureza – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[4] O Instituto Judicial Global para o Ambiente, recentemente estruturado e com sede em Genebra, Suíça, tem como membros juízes de qualquer instância, do mundo, dedicados à questão ambiental.

[6] Para uma análise detalhada da evolução legal e das alterações no conceito da água como bem a ser protegido, vide HERMAN BENJAMIN, Water Justice: The Case of Brazil, Environmental Law Report, Environmental Law Institute, 2018.

[7] Código Civil de 1916, artigo 563 a 568. O Código não define as águas públicas e particulares, mas admite a existência de ambas ao mencioná-las em seus dispositivos. Vide, por exemplo, o artigo 602: "Nas águas particulares, que atravessem terrenos de muitos donos, cada um dos ribeirinhos tem direito a pescar do seu lado, até o meio delas".

[8] DF nº 24.643/34 de 10-7-1934. D24643compilado (planalto.gov.br).

[9] DF nº 23.793/34 de 23-1-1934. D23.793 (planalto.gov.br).

[10] LF nº 4.771/65 de 15-9-1965. L4771 (planalto.gov.br).

[13] LF nº 11.445/07 de 5-1-2007, grandemente alterada pela LF nº 14.026/20 de 5-7-2020. Faço aqui menção à redação atual. Lei nº 11.445 (planalto.gov.br).

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