Opinião

Direitos sociais, prestação de contas e Direito Administrativo Sancionador

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

14 de janeiro de 2022, 6h03

O dirigismo constitucional brasileiro outorga competência ao gestor público para que providencie ações aptas a ofertarem estrutura adequada para dar vazão à demanda estabelecida pela sociedade.

A sua atuação deve ser pautada por arranjos institucionais, caracterizados como políticas públicas: ferramentas estruturantes que se valem da engrenagem administrativa disponível ao gestor no sentido de planejar, executar, monitorar e estabelecer parâmetros de mensuração de resultados das suas ações administrativas.

Esse panorama de proatividade é impulsionado pela teoria dos direitos fundamentais sociais, que alberga alocação orçamentária com ênfase no critério da equidade para que o suporte estatal alcance as pessoas mais necessitadas em uma perspectiva de obrigação de fazer por parte do Estado.

Em decorrência da sua importância para o desenvolvimento do Estado e toda a sociedade que o integra, os direitos sociais devem ser planejados à luz das reais necessidades do interesse coletivo, o que atrai a necessidade de percepção a respeito da importância funcional do orçamento público, caracterizado por ser uma ferramenta instrumental de atuação do Estado.

Assim, é importante que se estabeleça uma diretriz a respeito da funcionalidade do gasto público para que a utilização do erário não seja desvirtuada de modo manter as desigualdades já existentes.

Por funcionalidade do gasto público pode se entender a adoção de critérios técnicos, baseados em evidências, que indiquem pontos sensíveis onde a população socioeconomicamente vulnerável não está acobertada pela atuação estatal.

A utilização dos recursos públicos deve ser direcionada em atividades que efetivamente proporcionem o desenvolvimento nacional, razão pela qual é preciso cautela ao ordenador de despesas na conduta alocativa, a qual deve sempre agir com atuação pautada no sistema PDCA de planejamento administrativo.

O sistema PDCA de planejamento administrativo "é um sistema de retroalimentação que representa o esforço concomitante de planejar, fazer, monitorar e agir [1]" e apresenta resultados palpáveis em relação à administração do interesse coletivo.

O ciclo PDCA possibilita, a partir do monitoramento da execução de uma política pública, um diagnóstico mais próximo da realidade porque averigua se os parâmetros até então estabelecidos estão sendo cumpridos, o que possibilita modificar uma estratégia em curso de modo a aperfeiçoar a prestação dos serviços públicos.

A importância da mensuração de desempenho de políticas públicas é uma realidade jurídica encampada pela Emenda Constitucional nº 109/2021, que positivou o artigo 37, §16, no sentido de que "os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei".

Como a alocação orçamentária é uma das formas de exercício do poder, vez que planejada pelo Poder Executivo e aprovada pelo Legislativo, a sua análise crítica com método analítico resulta em uma espécie de raio-x das prioridades governamentais que, confrontadas com as necessidades da população, possibilita averiguar se o gasto projetado possui fins republicanos.

Sobre o tema eis o que adverte Fernando Facury Scaff: "Daí a importância da análise jusfinanceira, em especial do orçamento, pois observando o que nele consta é que se verificarão os verdadeiros centros de poder de uma sociedade. Saber quem paga e quem recebe as prestações civilizacionais estabelecidas pelos governos permitirá descobrir se a democracia possibilita que se implemente a república naquele país" [2].

O planejamento de uma política pública possui uma dimensão multidisciplinar que envolve a análise de toda a cadeia produtiva que lhe é correlata e nesse sentido a disponibilidade orçamentária é apenas um indício autorizativo o qual antecede, por exemplo, a compra de um bem e/ou a prestação de um serviço por intermédio de um procedimento licitatório.

É por intermédio do orçamento que a gestão pública sinaliza as suas prioridades em relação ao gasto e à formalidade intrínseca ao Direito Financeiro, que dispõe que todo gasto deve ter prévia autorização legal, sob pena de tipificação de crime contra as finanças públicas delimitado pelo artigo 359-D do Código Penal, o qual assenta como tipicidade a ordenação de despesa não autorizada em lei.

Assim, finalizado o ciclo do planejamento orçamentário, sobrevém a fase da destinação financeira, em que a solenidade do regime jurídico administrativo se correlaciona com a submissão de toda a etapa procedimental à análise do controle.

A respeito daquela etapa do gasto público, é preciso lembrar o princípio constitucional da obrigatoriedade em relação ao dever de prestar contas, estabelecido pelo artigo 70, parágrafo único, do pacto social: "Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária".

O controle do gasto público perpassa três caminhos: o controle social, a fiscalização da ordem jurídica exercida pelo ministério público e a averiguação do ajuste das contas públicas à jurisdição constitucional exercida pelos Tribunais de Contas.

O controle social se caracteriza pela aproximação da sociedade às escolhas da gestão pública no sentido de averiguar se o Estado cumpre com o estabelecido pela constituição federal, bem como com os anseios da coletividade.

Inclusive o controle social está presente na primeira fase do ciclo orçamentário, que é o planejamento, por intermédio da participação popular em audiências públicas que objetivam escutar a população em relação às escolhas alocativas, como é o caso do orçamento participativo topografado no artigo 48, §1º, inciso I, da lei de responsabilidade fiscal, o qual propõe o "incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos".

A respeito do controle social, registra Carlos Ayres Britto o seu caráter exógeno: "Pois bem, a fiscalização que nasce de fora para dentro do Estado é, naturalmente, a exercida pelos particulares ou por instituições da sociedade civil. A ela é que se aplica a expressão 'controle popular' ou 'controle social do poder', para evidenciar o fato de que a população tem satisfações a tomar daqueles que formalmente se obrigam a velar por tudo que é de todos [3]".

Outra atuação em relação à supervisão do gasto público é a fiscalização da ordem jurídica das contas públicas exercida pelo Ministério Público, que não significa um controle propriamente dito porque lhe falta competência para invalidar um ato administrativo e/ou ato de gestão.

Contudo, o Parquet possui mecanismos que influenciam o processo de tomada de decisão do gestor público, como são as recomendações, expedidas depois de um procedimento preparatório prévio, como, por exemplo, um inquérito civil.

Além disso, balizado pelo artigo 5º, §6º, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina o rito processual da ação civil pública, o Ministério Público pode celebrar termo de ajustamento de conduta em caso de eventual desconformidade de uma despesa e/ou ato administrativo com o que dispõe a ordenamento jurídico, que possui natureza jurídica de título executivo extrajudicial.

Já a averiguação do ajuste das contas públicas à jurisdição constitucional exercida pelos Tribunais de Contas é um horizonte em que se descortina uma análise mais específica do gasto, porque o seu escopo de atuação pode adentrar no mérito administrativo, o que nem o Poder Judiciário é competente para fazê-lo.

Ao passo em que o Poder Judiciário exerce um controle de legalidade da gestão pública, a jurisdição dos Tribunais de Contas vai além e também foca em parâmetros estritamente subjetivos, como são a legitimidade e a economicidade da despesa pública.

É o que prescreve Ana Carla Bliacherine: "Pelo controle da legitimidade, o órgão competente pode averiguar não apenas o cumprimento dos preceitos legais, mas também aspectos do direito fundamental à boa administração pública: o dever de preservar todos os princípios incidentes sobre a administração pública. No caso da proteção do patrimônio econômico do Estado o dever de observar, especialmente, os princípios básicos da prevenção e da precaução" [4].

Nessa perspectiva, depois da fase do planejamento, que moldura a realização de uma despesa pública, a atuação do controle exercido pela sociedade e/ou pelo Tribunal de Contas, bem como a atuação do Ministério Público enquanto fiscal da ordem jurídica vigente, pode resultar na responsabilização do ordenador de despesas.

E é na órbita da teoria da responsabilização que gravita o Direito Administrativo Sancionador, ramo que possui como objeto de pesquisa o estudo a respeito das sanções decorrentes dos ilícitos praticados em face do regime jurídico administrativo.

O Direito Administrativo Sancionador possui ênfase no consequencialismo em relação à responsabilidade civil do gestor público com base em um sistema específico que diz respeito a parâmetros que atribuem legitimidade à aplicação de sanção.

Caso o pressuposto normativo não seja observado, surge a possibilidade de aplicação de penalidades, mas o sistema de responsabilidade administrativa requer obediência à legalidade então posta.

Sobre o tema, é importante lembrar o que prescrevem José Roberto Pimenta e Dinorá Adelaide Musetti Grotti: "Denomina-se sistema de responsabilidade o conjunto de normas jurídicas que delineiam, com coerência lógica, a existência de um sistema impositivo de determinadas consequências jurídicas contra o sujeito infrator e/ou responsável, levando-se em conta a prévia tipificação do ato infracional e das sanções imputáveis, o processo estatal de produção e os bens jurídicos ou interesses públicos constitucionalmente protegidos com sua institucionalização normativa" [5].

Como se vê, é preciso que a estrutura do controle observe a matriz normativa que objetiva manter a higidez do regime jurídico-administrativo, o que inclusive contempla um juízo de ponderação prescrito pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

É o caso do seu artigo 22, caput, que prescreve a importância de se observar o real cenário em que o ocorreu a despesa pública: "Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências políticas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados".

A LINDB esclarece que a sanção não é um fim em si mesmo e que a teoria do Direito Administrativo Sancionador deve levar em consideração a funcionalidade e o caráter operacional da gestão pública, o que ecoa as palavras de Alice Voronoff no sentido de que "busca-se a adequação da conduta dos administrados com vista à realização de objetivos de interesse público, dissociados, como regra, de um juízo de desvalor éticosocial inerente ao direito penal. Para promover esses resultados, a sanção administrativa, como instrumento, ferramenta institucional e meio de gestão (e jamais como um fim em si), deve ser apta à produção de incentivos que, consideradas as peculiaridades de cada setor econômico-social e do ambiente institucional que circunda a autoridade administrativa, promovam a conformação das condutas esperadas e desejadas pelo ordenamento jurídico" [6].

Embora objetive zelar pela higidez do regime jurídico administrativo, o Direito Administrativo Sancionador não deve ser correlacionado a um aspecto punitivo, mas, sim, de prevenção e correição. A sanção é apenas a última fase do seu funcionamento. Não o porquê.

Vale lembrar que a matriz funcional do Direito Administrativo Sancionador está submetida à teoria dos direitos fundamentais e deve levar em consideração a ideia de Estado de Direito, que determina um devido processo legal e um juízo de ponderação baseado em proporcionalidade e razoabilidade em relação à aplicação de sanção.

 

Referências bibliográficas
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp 1899184/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrighi.

RE 934233 AgR, Relatoria do ministro Edson Fachin.

AgRG no RMS 43329/RS. Relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura.

ARAÚJO, Mário Augusto Silva. O planejamento do direito à educação e a agenda ODS 2030. Revista Digital Consultor Jurídico: Dezembro de 2021.

BLIACHERINE, Ana Carla. Controle da Eficiência do Gasto Orçamentário. Belo Horizonte: Fórum: 2016.

BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 1189218 AgR, Relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.

BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre "controle social do poder" e "participação popular". Revista De Direito Administrativo, 189, 114–122. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45286 acesso em 06/01/2022.

OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público – IP, Belo Horizonte.

SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual  Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte/SP: Editora Fórum, 2018.

VOROFOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Justificação, interpretação e aplicação. Fórum. Belo Horizonte: 2018.

 


[1] ARAÚJO, Mário Augusto Silva. O planejamento do direito à educação e a agenda ODS 2030. Revista Digital Consultor Jurídico: Dezembro de 2021.

[2] SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual – Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte/SP: Editora Fórum, 2018, p. 86.

[3] BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. Revista De Direito Administrativo, 189, 114–122. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45286 acesso em 06/01/2022.

[4] BLIACHERINE, Ana Carla. Controle da Eficiência do Gasto Orçamentário. Belo Horizonte: Fórum: 2016, p. 166.

[5] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, mar./abr. 2020.

[6] VOROFOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Justificação, interpretação e aplicação. Fórum. Belo Horizonte: 2018, p. 120.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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