Opinião

Um decálogo para a pesquisa científica em Direito

Autor

  • Rodrigo Caramori Petry

    é advogado consultor jurídico professor de Direito Tributário doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Econômico e Social e membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

10 de janeiro de 2022, 7h14

Introdução
A palavra "decálogo" originalmente se refere aos dez mandamentos que teriam sido entregues por Deus ao profeta Moisés escritos em pedra, no alto do Monte Sinai, para orientar a vida e o comportamento dos seres humanos, conforme evento narrado na Bíblia ("Antigo Testamento", Êxodo, Capítulo 20, versículos 1-17). Por extensão, ao longo do tempo a palavra "decálogo" passou a ser usada como sinônimo de qualquer conjunto de dez ideias, orientações ou regras.

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No Direito há um decálogo muito conhecido, intitulado os "mandamentos do advogado", escrito pelo jurista uruguaio Eduardo Juan Couture, advogado e professor que viveu entre 1904 e 1956. Couture elaborou seu decálogo em 1950, mas o texto hoje ainda está disponível em livro ("Os Mandamentos do Advogado", 3ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987). Outros autores escreveram também decálogos, como por exemplo: "Os mandamentos do juiz" (de Juan Carlos Mendonza, 1965), e "O decálogo do promotor" (de J. A. Cesar Salgado, 1956) [1].

Na área da Metodologia, Eduardo Bittar oferece um decálogo da ética do pesquisador ao final de seu livro "Metodologia da pesquisa jurídica" (16ª ed., São Paulo: Saraiva, p. 327-328). Porém, sente-se ainda a falta de um decálogo que além da ética aborde mais a técnica, inspirando a atitude mental do estudante que pretende ser pesquisador na área do Direito. Embora existam muitas obras sobre epistemologia e metodologia da pesquisa em direito que tratam das ideias aqui expostas, um decálogo é recurso didático que não pode ser desprezado.

Isso justifica o propósito de criar neste artigo um decálogo do pesquisador em Direito. Aqui não se tem a pretensão de esgotar as recomendações possíveis, mas houve critério na escolha das ideias do decálogo: a importância e a recorrência delas em obras de metodologia e epistemologia.

Ensinar o modo de "pensar como pesquisador" em Direito é especialmente importante, já que o propósito do pesquisador é diferente daquele dos advogados, juízes e promotores de Justiça. O trabalho de pesquisa científica não se confunde com petições, sentenças ou pareceres. Vamos então às orientações para quem quer se iniciar na ciência jurídica.

1) Reconheça e valorize o que é fazer ciência
A palavra "ciência" designa um processo de conhecimento sofisticado, ou seja, uma forma de o sujeito humano proceder no esforço de investigação de um determinado objeto, e assim atingir aspirações ou atender necessidades humanas, explicando e resolvendo problemas teóricos ou práticos. Ao mesmo tempo, "ciência" também significa o resultado desse processo.

O objetivo de se fazer ciência é produzir um conhecimento que possa ser considerado o mais próximo da verdade. O uso de métodos baseados em fatos demonstrados, e não em opiniões, crenças, vontades, sensações ou interesses, é o que diferencia o conhecimento científico de outros conhecimentos, como por exemplo o "senso comum". O senso comum pode confundir como iguais duas coisas que são diferentes, assim como entender como diferentes duas coisas que são essencialmente iguais, e assim é potencial gerador de dúvida, insegurança, medo e conflito.

A ciência é uma forma de conhecimento que deve ser valorizada para inspirar a vida das pessoas, já que traz desenvolvimento, qualidade de vida, liberdade e inclusive proteção contra o perigo da manipulação político-ideológica nas notícias e narrativas falsas e sensacionalistas que apelam para sentimentos grosseiros, como ódio, medo e preconceito, e cujo radicalismo e ideias plantadas só interessam aos manipuladores que delas se beneficiam, confundindo para dominar.

2) Respeite a objetividade da ciência: é a pesquisa que 'fala' e não o pesquisador
A ciência é construída com objetividade (foco no objeto), inclusive na linguagem usada para sua fundamentação e demonstração: o texto científico deve ser escrito de maneira impessoal, usando-se gramaticalmente a terceira pessoa do singular (é ela, a pesquisa, que fala).

Siga a objetividade mencionando que as conclusões científicas são da pesquisa feita, e não conclusões pessoais carregadas de subjetivismo do autor da pesquisa.

Há outros espaços e formas, inclusive textos jornalísticos, didáticos ou de opinião, que admitem manifestações pessoais sobre o Direito, quando se usa a primeira pessoa do singular ("eu penso assim"), mas, em trabalhos científicos de pesquisa formal universitária, preserve a objetividade.

3) Prefira a autoridade do argumento e não o argumento de autoridade
Na linguagem para citação de autores de obras utilizadas para fundamentar a pesquisa, o pesquisador deve indicar o nome do autor citado sem qualificá-lo ou elogiá-lo como autoridade. Isso porque o que interessa na pesquisa científica em Direito é a autoridade do argumento, e não o argumento de autoridade (que seria um argumento baseado apenas na citação de que uma ideia vem de um autor já reconhecido, mas sem a respectiva fundamentação que lhe daria base).

Ter atitude científica requer coragem para abrir caminhos e expor os resultados de seu trabalho. Dedique-se seriamente à pesquisa para dominar o assunto e estar seguro dos resultados, e assim tenha "orgulho científico" no sentido dado por Umberto Eco, evitando escrever frases cheias de insegurança, como "não estamos à altura de tal assunto, mas arriscaremos a hipótese de…"[2]

Prepare-se bem para uma pesquisa que traga inovações ou questione o conhecimento já estabelecido. Não se limite a reproduzir o conhecimento de autoridades científicas (a "satelitização da inteligência"): "(…) Na vida literária, há pessoas que se contentam em gravitar ao redor de um pensador ou escritor de talento, atraídas pelo seu brilho" (José Souto Maior Borges) [3]. Busque criar novas ideias e contribuir na construção coletiva do enorme edifício do conhecimento.

4) Tenha honestidade intelectual
Respeite os direitos autorais, citando os trabalhos e autores que descobriram coisas antes de você e nas quais você se apoia, com dignidade e gratidão.

Não omita informações ou argumentos que podem derrubar sua hipótese de pesquisa ou que contrariem suas preferências pessoais, políticas ou ideológicas. Seja justo e imparcial com os dados, ainda que se admita na comunidade científica que a neutralidade total é impossível de ser atingida. Deixe claras as suas motivações, para permitir o controle por outros pesquisadores.

Demonstre suas fontes de pesquisa e as deixe acessíveis de forma que outros pesquisadores possam testar a hipótese da sua pesquisa, para comprová-la ou refutá-la.

Seja honesto no seu projeto, não prometendo resultados de pesquisa que não pode cumprir. Lembre-se do perigo de tentar fazer uma "tese panorâmica" (Umberto Eco) [4]. Escolha um tema bem delimitado que esteja dentro do alcance da sua força de trabalho. Só assim você poderá entregar nas conclusões da pesquisa aquilo que prometeu no início. Isso implica em ter humildade científica.

Também o ensino da pesquisa em Direito deve ser inspirado pelo rigor e honestidade nas avaliações e bancas: não se deve ter complacência com trabalhos mal feitos ou insuficientes.

Para um professor que avalia trabalhos científicos, ser rigoroso exige muito mais trabalho do que ser complacente e acrítico, e implica em justificar a correção e explicar falhas da pesquisa. Mas o rigor da avaliação fortalece o estudante-pesquisador e o progresso científico. Lembre-se de que é justamente o esforço da borboleta para se libertar do casulo o que lhe dá as forças para voar depois.

O progresso científico é um compromisso da comunidade acadêmica. O avaliador científico não pode permitir que a amizade, o interesse pessoal, a "autoridade" do pesquisador avaliando, ou o simples conforto de se omitir e ter uma postura benevolente contaminem a sua avaliação científica: o compromisso do pesquisador-avaliador é com a ciência, e com mais ninguém.

5) Procure se distanciar do objeto para enxergar melhor e vigie suas emoções
O cientista deve conduzir sua pesquisa de forma que a sua vontade e interesse não interfiram na produção do conhecimento. Essa diretriz ganha especial relevo na ciência jurídica, já que cientistas do Direito muitas vezes são também profissionais dedicados à defesa de interesses de pessoas, órgãos ou empresas, como por exemplo advogados, procuradores da Fazenda e auditores fiscais.

Alerte-se também que o resultado de uma pesquisa científica no campo do Direito, ao determinar qual é o sentido e alcance de normas, pode indicar quem ganhará e quem perderá um litígio envolvendo dinheiro, patrimônio, negócios, sentimentos e até a liberdade. Por isso, quem faz ciência jurídica deve utilizar métodos adequados e vigiar suas emoções.

Contingências profissionais ou pessoais (inclusive necessidades ou pressões financeiras) não devem interferir na elaboração da ciência jurídica, sob pena de se produzir um conhecimento parcial e interessado, que não é ciência, e, sim, a defesa de teses sem demonstração suficiente, focadas apenas na intenção do convencimento, e não do conhecimento.

O pesquisador não deve tentar incluir a sua vontade dentro do texto da lei, como se a única interpretação correta fosse aquela que ele deseja. Mesmo que a pesquisa dê uma outra solução jurídica que não lhe agrade ou lhe favoreça pessoalmente, o pesquisador deve fidelidade aos seus métodos e aos limites da interpretação. Se quiser criticar e propor mudanças, faça-o, mas não inclua na lei aquilo que só existe na sua vontade.

6) Apoie-se nos ombros de gigantes para enxergar mais longe
Pesquisar implica obedecer aos limites da investigação, o que exige que se façam recortes metodológicos no objeto de estudo. Em virtude disso, se devem considerar superados de antemão certos questionamentos paralelos sobre o tema. Não se deve tentar reconstruir todo o conhecimento sobre os aspectos adjacentes antes de abordar a questão-problema. É necessário apoiar-se em fatos já conhecidos e teorias já sustentadas.

Portanto, é preciso valorizar o aforismo que prega a humildade ao cientista diante da descoberta de algo novo, e que faz a todos refletir sobre aquela antiga frase, em estilo metafórico, usada por Newton: "Se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre o ombro de gigantes"[5].

Um trabalho científico de tese precisa partir da análise de todos os melhores trabalhos de pesquisa já escritos sobre o tema (revisão da literatura), para que a nova pesquisa possa identificar os possíveis avanços a serem dados, preenchendo uma lacuna naquele conhecimento.

7) Demonstre o caminho e teste a hipótese: não existem fundamentos óbvios
Teses prontas não possuem demonstração (o que é errado) porque baseiam-se em fundamentos óbvios, pressupostos, como se já tivessem sido demonstrados pelo pesquisador.

A pesquisa em Direito não pode ser feita com a escolha prévia de um resultado determinado. Parte-se apenas de hipóteses, que deverão ou não ser confirmadas e demonstradas na pesquisa. Pesquisa não é defesa de um resultado escolhido a priori, e o pesquisador tem o dever de resistir à "tentação de defender a hipótese ao invés de testá-la" (Daniel Nicory do Prado) [6].

É preciso lembrar que o pesquisador não está sozinho: ele faz parte de uma comunidade científica que também pode se dedicar a criticar e refutar a pesquisa. Assim evolui a ciência.

8) Seja cuidadoso com a interpretação
O objetivo da ciência jurídica é, ao mesmo tempo, o de descobrir a "vontade do legislador" (visão subjetiva e histórica) e a "vontade da lei" (visão objetiva do texto). A vontade do legislador não pode ser ignorada já que traduz, ainda que imperfeitamente, a vontade popular (artigo 1º, § único, da CF). Mas isso não significa que o texto legal deixe de ter objetividade e relativa autonomia, por sua generalidade, abstração e interação com o sistema jurídico. Mas não é só isso.

Ao fazer pesquisa em Direito use cuidadosamente os diversos métodos de interpretação estruturados pela ciência hermenêutica jurídica: literal, lógico, histórico, finalístico e sistemático.

Lembre-se que a ciência jurídica possui função descritiva e construtiva. O intérprete pode, assim, descobrir implicações normativas da lei que não foram pensadas pelo legislador, mas que resultam do somatório sistemático das normas e valores, no tempo, em certo ordenamento. Na visão correta de Humberto Ávila, o intérprete não pode ver o Direito como algo previamente dado a ser apenas descrito, mas, também, como algo que depende de uma prática reconstrutiva e situativa de sentidos, forma de raciocínio que chama de "semântico-argumentativa" [7].

9) Valorize o papel transformador da ciência
A ciência jurídica se dedica a descobrir e construir os sentidos e alcances normativos, demonstrando o conteúdo e efeitos das normas jurídicas, ao mesmo tempo em que pode servir para orientar o legislador na criação de novas leis e aperfeiçoar seus efeitos jurídicos e práticos.

O pesquisador não deve se restringir a indicar as possíveis interpretações normativas, mas também fixar a orientação para decisões corretas e fundamentadas, para que a ciência do Direito seja um instrumento para a pacificação social e o desenvolvimento.

10) Seja responsável com as fontes e com os resultados de sua pesquisa
A pesquisa em Direito exige um intenso trabalho de busca, reunião, seleção e análise de documentos (pesquisa teórica), ou a produção de documentos/dados sobre fatos da realidade em pesquisas no campo social, econômico, político, judicial etc. (pesquisa prática ou empírica). Seja responsável e fiel com esses documentos e dados, para não gerar omissões nem manipulações.

As conclusões da pesquisa podem influenciar políticas públicas. Por isso o pesquisador deve ter o mesmo tipo de cuidado que os juízes das cortes superiores devem ter quando lidam com decisões: agir como se estivesse a manusear explosivos.

Seja responsável com os resultados. A pesquisa deve ser ferramenta de aperfeiçoamento do sistema jurídico, facilitadora da pacificação de conflitos, orientadora de decisões, fonte de soluções de problemas e assim promotora do desenvolvimento.

 


[1] Para ler tais decálogos: AZAMBUJA, Ruy Rodrigo Brasileiro de. Os mandamentos. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, dez. 1981. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/8856/6166>. Acesso: 1º/01/2022.

[2] ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 25ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 175.

[3] BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz. 3ª ed., São Paulo: Quartier Latin, p. 32.

[4] ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 25ª ed., São Paulo: Perspectiva, p. 09-11.

[5] A frase foi usada em uma carta escrita pelo cientista inglês Isaac Newton ao seu colega Robert Hooke em 1675 (cópia da carta está disponível em: <https://digitallibrary.hsp.org/index.php/Detail/objects/9792>. Acesso: 04/01/2022).

[6] PRADO, Daniel Nicory do. Temas de metodologia da pesquisa em direito. Salvador: Faculdade Baiana de Direito, 2011, p. 39-40.

[7] ÁVILA, Humberto. A doutrina e o direito tributário. In Fundamentos do direito tributário. Org. Humberto Ávila. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 237.

Autores

  • é doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR, membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), advogado, consultor e professor de Direito Tributário.

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