Opinião

Legislativo x Judiciário: pela Lei 14.285, Congresso faz erodir o Tema 1.010/STJ

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

5 de janeiro de 2022, 13h40

O Superior Tribunal de Justiça decidiu aplicar retroativamente o Código Florestal a todas as construções existentes às margens dos cursos d'água, tanto nas áreas urbanas quanto nas áreas rurais.

Essa retroatividade significa que, na prática, todas as construções existentes estariam sujeitas aos limites de 30 a 500 metros, categorizadores de áreas não edificáveis pelo artigo 4º do Código Florestal/2012 — em lugar dos 15 metros previstos na Lei Federal nº 6.766/79.

O STJ o fez pelo Tema 1010, assim elaborado:

"Questão submetida a julgamento
Extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d'água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no artigo 4°, I, da Lei nº 12.651/2012 (equivalente ao artigo 2°, alínea 'a', da revogada Lei nº 4.771/1965), cuja largura varia de 30 a 500 metros, ou ao recuo de 15 metros determinado no artigo 4°, caput, III, da Lei nº 6.766/1979.
Tese Firmada
Na vigência do novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu artigo 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade" [1]

Ainda não transitou em julgado o recurso especial repetitivo em torno do qual se fixou o Tema 1.010  e, por tal motivo, na prática ainda não gerou o caos em nossas vidas.

Antes de abordar a relevância desse movimento feito pelo Congresso Nacional, ao modificar o Código Florestal de 2012 por meio da Lei 14.285, sancionada em 29/12/2021 e que começou viger no dia seguinte, vamos considerar como começou a lide que, em grau de recurso especial repetitivo, gerou o Tema 1.010 suso mencionado.

O caso concreto iniciou-se por ter autoridade de município catarinense indeferido o pedido de reforma de construção já existente há tempos, em área urbana. Qual reforma? A substituição de madeira por alvenaria!

O mencionado indeferimento foi embasado no Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012, que fixa o limite de 30 a 500 metros, dependendo da largura do rio — artigo 4º), e não da lei federal que trata do parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79, que prevê área não edificável em faixa mínima de 15 metros). Em grau de recurso a matéria chegou ao STJ, que, em grande resumo, pelo mencionado Tema 1.010, entendeu que prevaleceria o Código Florestal e esse paradigma seria vinculador para todo o sistema judiciário nacional, a partir do momento em que transitasse em julgado a decisão.

Como outros prestigiosos profissionais, também atuamos no caso e oferecemos ao STJ elementos para a ponderação dos múltiplos interesses em jogo, alvitrando a modulação dos efeitos da decisão.

Aliás, inclusive requeremos que a corte considerasse se as pontes construídas sobre os rios também ficariam sujeitas àquela decisão e quiçá à demolição, uma vez que as suas pilastras estariam cravadas nos cursos d1água e nas margens dos rios.

O tema envolve o princípio da confiança e da estabilidade das relações jurídicas, já que nos faz indagar se prevaleceria o direito adquirido e o ato jurídico perfeito expressamente tratados na Constituição Federal ou a retroatividade absoluta de uma lei federal (Código Florestal, de 2012)?

O Superior Tribunal de Justiça ainda não modulou os efeitos da decisão ex officio e também ainda não o fez a requerimento de partes, interessados ou amicus curiae.

A grande repercussão na sociedade e entre os pensadores do Direito também atingiu o Congresso Nacional, que modificou a legislação, como resposta direta ao caos que geraria o Tema 1.010:

"O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu em abril deste ano que essas regras também devem ser aplicadas a áreas urbanas, em vez da faixa de 15 metros estipulada na Lei de Parcelamento do Solo Urbano" [2].

Com isso, o Congresso Nacional agiu e, como tudo começou em processo originário do 3stado de Santa Catarina, nada mais natural do que o novel projeto de lei fosse apresentado por deputado federal daquele aprazível ente federativo. Foi o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (MDB/SC) que o fez e, na proposição, lemos:

"A providência procura corrigir inadequação presente na Lei nº 12.651, de 2012 (Lei Florestal), que, em variados casos, fixa limites de APP iguais para zonas rurais e urbana […] Ocorre que em tais hipóteses não se enquadram diversas situações muito frequentes em áreas urbanas, tais como construções privadas e públicas próximas a encostas e a cursos ou corpos d'água. Em razão disso, inúmeros administradores municipais se encontram em situação desconfortável, pois, sem ter como fazer cumprir os limites fixados pela Lei Florestal, são constantemente pressionados e questionados pelo Ministério Público" [3].

Assim, ao entrar em vigor em 30 de dezembro, a nova norma federal incide na base dos fundamentos da decisão proferida pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Para alimentar o quadro de extrema importância da matéria, enquanto ainda nos acostumávamos com o comentado Tema 1.010, eis que, em 8/6/2021 o STF decide em prol do Código Florestal, falando em ser aplicável "com eficácia retroativa sobre fato passado" (Reclamação 39.991), enquanto também já decidiu que pensar que "o novo código não poderia alcançar fatos pretéritos, resulta no esvaziamento da eficácia da referida norma, cuja validade constitucional foi afirmada por esta Corte" (STF, RE 1.051.404 -AgR/SP).

Certamente mais sensível diante das perceptíveis imensas repercussões na vida das pessoas e no cotidiano das cidades, pela nova norma o Congresso Nacional passou a atribuir aos municípios a competência para tratar das áreas de preservação permanente no entorno de cursos d'água em áreas urbanas consolidadas.

Vitória da realidade, do mundo real. Noutras palavras, c'est la réalité des faits, como dizem os franceses.

A propósito do vigor dos fatos, o grande historiador Moniz Bandeira, registra:

"Na história, como Oswald Spengler salientou, não há ideais, mas somente fatos, nem verdades, mas somente fatos, não há razão nem honestidade, nem equidade etc, mas somente fatos (…) E palavras não mudam a realidade dos fatos" (Moniz Bandeira, Luiz Alberto. "A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias". Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 1ª edição, 2016, p. 513).

Assim, não obstante o bom texto original, é crível que o Poder Legislativo concluiu que a original boa ideia contextual do Código Florestal exigiu pronta revisão diante da realidade despertada pelo Tema 1010/STJ, suso referido.

O Poder Legislativo modulou, no próprio Parlamento, os efeitos da ideal norma que editou, por exigência do mundo real e dos insistentes fatos que envolvem a vida das pessoas e a pulsante vibração das cidades. É a realidade cobrando juízo das ideias.

 


[1] Fonte: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1010&cod_tema_final=1010.

[2] Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/799893-CAMARA-APROVA-MUNICIPALIZACAO-DE-REGRAS-DE-PROTECAO-DE-RIOS-EM-AREA-URBANA.

[3] Fonte: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1737096&filename=PL+2510/2019.

Autores

  • é advogado, membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, associado ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP) e defensor público junto ao STF, STJ e TJ-RJ.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!