Opinião

Algumas atualidades sobre o cheque

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4 de janeiro de 2022, 6h02

O cheque é um título de crédito que revela uma ordem emitida por uma pessoa (emitente ou sacador) contra um banco (sacado) de pagamento à vista, para que este venha pagar uma determinada quantia a alguém (tomador ou beneficiário), lastreada em fundos que o emitente mantém depositado na instituição financeira.

Como se trata de um título não causal, a circulação do cheque gera a abstração, a autonomia e a inoponibilidade das exceções pessoais, desvinculando-se do negócio jurídico subjacente, impedindo a oposição de exceções pessoais a terceiros endossatários de boa-fé, ressalvada a oposição na hipótese de má-fé do endossatário ou quanto ao título em aspectos formais e materiais (AgInt no REsp 1.280.442, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva). No entanto, se o cheque não tiver circulado, estando atrelado à relação jurídica originária constituída entre o emitente e seu beneficiário, afigura-se possível a discussão da causa da emissão do título de crédito (AgInt nos EAREsp 681.278, relator ministro Marco Aurélio Bellizze).  

Na doutrina, afirma-se que o atributo da autonomia é, pois, "uma garantia da negociabilidade do título, na medida em que uma pessoa que o adquire não precisa saber se o credor anterior teria ou não direito de receber o valor do título" (Marlon Tomazette. "Curso de Direito Empresarial". São Paulo: Atlas, V. 2, p. 34), e que "o título de crédito nasce para circular e não para ficar restrito à relação entre o devedor principal e seu credor originário. Daí a preocupação do legislador em proteger o terceiro adquirente de boa-fé para facilitar a circulação do título" (Luiz Emygdio Franco Rosa Jr. "Títulos de crédito". Rio de Janeiro: Renovar, p. 215). Ao emitente que deseje se proteger contra possíveis efeitos da circulação do título, é admissível o ajuste da cláusula "não a ordem".

A Lei 7.347/1985, conhecida como Lei do Cheque, em seu artigo 33, dispõe que o prazo para a apresentação do cheque é de 30 dias a contar da emissão, se for da mesma praça, ou de 60 dias a contar da emissão, se constar no título praça diversa.

Dentro da autonomia privada, o ajuste da pós-datação do cheque se constitui em motivo para ampliar o prazo de sua apresentação à instituição financeira sacada, desde que a data da emissão esteja estampada no campo específico da cártula, a teor do Tema 945 do Superior Tribunal de Justiça, e, caso o título seja apresentado antes da data acordada, o beneficiário pode ser responsabilizado por danos morais, a teor da Súmula 370 do STJ, segundo a qual "caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado". Mesmo que o título tenha circulado, não poderia o terceiro deixar de observar a data da pós-datação que tenha sido aposta na própria cártula, gerando a obrigação de reparar danos perante o emitente (AgInt no AREsp 1.117.318, relator Luis Felipe Salomão).

Ainda que não apresentado o cheque no prazo legal, a Lei do Cheque estabelece que o prazo prescricional para a ação de execução é de seis meses após o prazo de apresentação. Vale dizer, mesmo que não feita a apresentação do título, e desde que não tenha havido o pagamento do título, a Súmula 600 do Supremo Tribunal Federal assegura que "cabe ação executiva contra o emitente e seus avalistas, ainda que não apresentado o cheque ao sacado no prazo legal, desde que não prescrita a ação cambiária".

Expirado o prazo da ação de execução do título de crédito, fica ressalvada ainda a propositura de ação de cobrança ou monitória, dentro do prazo prescricional de cinco anos a contar do dia seguinte ao vencimento do título, a teor da Súmula 503 do STJ, segundo a qual "o prazo para ajuizamento de ação monitória em face de emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data da emissão estampada na cártula".

O cheque prescrito perde os atributos cambiários da autonomia, da independência e da abstração, comprometendo a pronta exigibilidade do crédito nele exteriorizado, o que desnatura a função exercida pelo ato cambiário, de sorte que, em sede de ação de cobrança ou da monitória, afigura-se admissível a discussão do fato gerador da obrigação (causa debendi), isto é, torna-se possível a oposição de exceções pessoais a portadores precedentes ou mesmo ao próprio emitente do título, o que equivale a admitir a discussão da causa dependi, embora a Súmula 531 do STJ aponte que "em ação monitória fundada em cheque prescrito ajuizada contra o emitente, é dispensável a menção ao negócio jurídico subjacente à emissão da cártula". Assim, embora não seja exigida a prova da origem da dívida para a admissibilidade da ação monitória fundada em cheque prescrito (Súmula 531/STJ), nada obsta que o emitente do título discuta, em embargos monitórios, a causa debendi (REsp 1.669.968, relatora ministra Nancy Andrighi).

Para o ajuizamento de ação de execução do cheque contra o emitente e seus avalistas, não há a necessidade de protesto do título. Este torna-se necessário apenas para viabilizar a execução contra os endossantes e respectivos avalistas. O protesto do título cambial exterioriza prova da sua apresentação, não tendo o portador logrado êxito em receber o pagamento, configurando a inadimplência da obrigação cambial, e gera, entre outros relevantes efeitos, a interrupção da prescrição, a fluência de juros moratórios e o preenchimento de requisito para o ajuizamento de ação de falência por impontualidade.

No julgamento do REsp 1.423.464, relator ministro Luis Felipe Salomão, o STJ adotou o entendimento de que sempre é possível, no prazo para a execução cambial (seis meses contados da expiração do prazo de apresentação), o protesto do cheque com a indicação do emitente como devedor.

Inicialmente, entendia o STJ que se constitui ato ilícito o protesto de título prescrito da pretensão executória, gerando a obrigação de reparar danos morais in repsa, por se tratar de meio ilegal de cobrança e por gerar o abalo de crédito (REsp 1.346.296, relator ministra Maria Isabel Gallotti).

Porém, seguindo o precedente firmado pela 3ª Turma do STJ no REsp 1.677.772, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 14/11/2017, a 4ª Turma do STJ, no REsp 1.536.035, relator ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 26/10/2021, passou a decidir uniformemente que, se a pretensão da ação de cobrança ou da ação monitória não tiver sido alcançada pelo prazo prescricional de cinco anos, o protesto irregular de cheque prescrito não gera o dever de indenizar por danos morais. Isso porque, sendo possível o ajuizamento de ação de cobrança ou monitória, descabe cogitar de abalo de crédito, eis que o emitente do título permanece na condição de devedor.

É dizer, estando pendente a obrigação de pagar a dívida materializada pelo título de crédito, dívida passível de cobrança pelas vias da ação de cobrança ou da monitória pelo prazo prescricional de cinco anos, o devedor não pode se sentir moralmente ultrajado por um ato que se limitou a atestar a sua inadimplência, o que configura um exercício regular de um direito.

Ademais, a eventual conduta do devedor, que venha a pleitear perdas e danos pelo protesto de título prescrito, mas ainda susceptível de ser ajuizada ação de cobrança ou monitória, não se coaduna com o princípio da boa-fé objetiva e do seu consectário da proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium), na medida em que o contrato somente cumpre a sua função social com o adimplemento das obrigações pactuadas, meio pelo qual é obtida a circulação de riquezas e mantém a economia girando (Sérgio Cavaliere Filho. "Programa de direito do consumidor". São Paulo: Atlas, p. 115).

Portanto, na hipótese em que se encontra em aberto o prazo prescricional de cinco anos para o ajuizamento de ação de cobrança ou monitória, voltada à cobrança de dívida encartada em cheque cuja pretensão executória encontra-se prescrita, o eventual irregular protesto do cheque após o prazo de seis meses não gera o dever de indenização por danos morais.

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