Opinião

A proteção insuficiente e a Lei nº 14.285/2021

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

3 de janeiro de 2022, 17h15

Em uma infeliz coincidência, a Lei nº 14.285, de 29 de dezembro de 2021, foi sancionada durante as piores enchentes no estado da Bahia nos últimos 35 anos [1], sendo certo que tais "fenômenos naturais" se reproduzem com frequência em nosso país. Há cerca de 11 anos já havíamos escrito sobre a questão [2]. Mas afinal, do que trata a Lei 14.285/2021? Ela é uma grave e inconstitucional reforma no sistema de áreas de preservação permanente previsto na Lei nº 12.651/2012, impropriamente denominada Novo Código Florestal (NCF); bem como promove mudanças nas Leis 6.766/1979 e 11.592/2009.

Não se esqueça de que o NCF é fruto de um grande acordo político no Congresso Nacional que estabeleceu parâmetros mínimos de proteção ambiental que, em diversos casos, retrocederam em relação à Lei nº 4.771/1965, que foi por ela revogada. No particular, o Supremo Tribunal Federal assegurou a constitucionalidade da imensa maioria das normas do NCF. Não se esqueça, igualmente, que as alterações produzidas pela Lei nº 14.285/2021 já haviam sido vetadas no projeto de lei que deu origem ao NCF (Mensagem nº 212, de 25 de maio de 2021) [3].

O objetivo principal da lei é reduzir a extensão das áreas de preservação permanente (APP) urbanas que, conforme a redação até então vigente, eram idênticas. Às rurais, conforme a nova redação dada ao artigo 4º do NCF, com o acréscimo do §10. O argumento principal dos defensores da mudança estrutural na legislação é o de regularizar áreas de ocupação de baixa renda e populares, aliás, cabe dúvida se as favelas estão incluídas no conceito de áreas urbanas consolidadas do novo texto, o argumento é falacioso e inconstitucional. É falacioso pois tais habitações e outros equipamentos urbanos de utilidade pública e interesse social foram e continuando sendo objeto de uma exceção autorizativa para, no caso concreto, permitir a supressão de vegetação, mesmo nativa, nas áreas de preservação permanente. O STF, há longa data, já se manifestou sobre o tema, autorizando as intervenções de utilidade pública ou interesse social (MCADI 3.540). A matéria, hoje, consta da Lei nº 13.465/2019, que deu amplo tratamento ao assunto, permitindo a regularização fundiária social e de interesse específico. Logo, o objetivo da alteração legislativa ora comentada não é socorrer ao interesse público, pois este já estava contemplado cabalmente.

Repita-se, a Lei nº 12.651/2012, claramente, permite a regularização de áreas populares e a realização de serviços de utilidade pública e interesse social, conforme consta de seu artigo 8º, em combinação com o artigo 3º, VIII, IX e X. Logo, desnecessária qualquer alteração legislativa para a autorização de medidas urgentes, supostamente, de interesse público. Aliás, diariamente, dezenas, senão centenas, de autorizações para supressão de vegetação em APP são concedidas pelos órgãos ambientais de todos os níveis federativos, até mesmo com uma certa liberalidade tendo em vista o enorme número de exceções. Quanto a isso já escrevemos: "Que o leitor não se perca pela leitura. Como se sabe, preservação é a utilização indireta dos recursos naturais e permanente tem o significado de perene. As APPs não ostentam tais características, devido ao grande número de exceções que abrigam, repita-se" [4]. O que não se autoriza é a utilização de áreas de preservação permanente para atividades meramente recreativas, como ficou decidido na ADI 4.988, que entendeu que a Lei nº 1.939/2008 do estado do Tocantins conferia "proteção deficitária" a áreas de preservação permanente do Estado. Isso porque a lei autorizava a intervenção e a supressão de vegetação em áreas de proteção permanente, as APPs, em caso de construções de até 190m² para lazer, contanto que não contenham fontes poluidoras, conforme relatado pelo ministro Alexandre de Moraes.

A Lei nº 14.285/2021 é inconstitucional perante o inciso III do §1º do artigo 225 da Constituição Federal, pois as áreas de preservação permanente são espaços territoriais especialmente protegidos e, em tal condição, leis que os modifiquem não podem autorizar qualquer "utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção". No caso concreto, o atributo principal que justifica a proteção é a função ecológica desempenhada pela vegetação ripária ou mata ciliar. Veja-se que o inciso VII do §1º do artigo 225 da CF, protege a função ecológica, "… proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica…".

Sabemos que a jurisprudência tem compreendido, de forma casuística, que, não havendo função ecológica, a proteção excepcional não se aplica.

"3. Aferrada às margens de rios, córregos, riachos, nascentes, charcos, lagos, lagoas e estuários, intenta a APP ciliar assegurar, a um só tempo, a integridade físico-química da água, a estabilização do leito hídrico e do solo da bacia, a mitigação dos efeitos nocivos das enchentes, a barragem e filtragem de detritos, sedimentos e poluentes, a absorção de nutrientes pelo sistema radicular, o esplendor da paisagem e a própria sobrevivência da flora ribeirinha e fauna. Essas funções multifacetárias e insubstituíveis elevam-na ao status de peça fundamental na formação de corredores ecológicos, elos de conexão da biodiversidade, genuínas veias bióticas do meio ambiente. Objetivamente falando, a vegetação ripária exerce tarefas de proteção assemelhadas às da pele em relação ao corpo humano: faltando uma ou outra, a vida até pode continuar por algum tempo, mas, no cerne, muito além de trivial mutilação do sentimento de plenitude e do belo do organismo, o que sobra não passa de um ser majestoso em estado de agonia terminal.
4. Compreensível que, com base nessa ratio ético-ambiental, o legislador caucione a APP ripária de maneira quase absoluta, colocando-a no ápice do complexo e numeroso panteão dos espaços protegidos, ao prevê-la na forma de superfície intocável, elemento cardeal e estruturante no esquema maior do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por tudo isso, a APP ciliar qualifica- se como território non aedificandi. Não poderia ser diferente, hostil que se acha à exploração econômica direta, desmatamento ou ocupação humana (com as ressalvas previstas em lei, de caráter totalmente excepcional e em numerus clausus, v.g., utilidade pública, interesse social, intervenção de baixo impacto). (REsp 1245149/MS, relator ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 13/06/2013)".

Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de reconhecer a competência legislativa municipal em matéria de meio ambiente "no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados" (RE 586.224, relator ministro Luiz Fux, j. 5-3-2015, P, DJE de 8-5-2015, Tema 145). Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça fixou o Tema nº 1010, que, ao interpretar o NCF, assentou que vigência do NCF, a extensão não edificável nas APPs de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que foi disciplinado pelo seu artigo 4º, caput, inciso I, alíneas "a", "b", "c", "d" e "e", a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

É possível imaginar que a lei recém sancionada tenha por objetivo reduzir a proteção ambiental, contrariando o direito jurisprudencial já consolidado. Aliás, é importante registrar o veto presidencial aos imorais §§6º e 7º, que seriam acrescentados ao artigo 4º do NCF, que regularizaria todas as construções ilegais feitas até 28 de abril de 2021, o que só demonstra uma intenção deliberada do legislador em reduzir desproporcionalmente o nível de proteção ambiental das APPs, medida que, se o STF seguir o seu atual padrão jurisprudencial, será julgada inconstitucional.

Do ponto de vista do mundo real, sabemos que as fortes chuvas da Bahia, bem como as chuvas de verão que tradicionalmente assolam o Brasil, em intensidade cada vez maior, nos indicam que a Lei nº 14.285/2021 é um retrocesso na proteção ambiental, gerando um grau de proteção insuficiente (STF ADI 3.470) e, o que é pior, incentivando uma "guerra ambiental" que, à semelhança da guerra fiscal, estimulará uma corrida pelo município que "proteja menos o meio ambiente". Relembre-se que as enchentes de 1966 [5] no Rio de Janeiro deixaram saldo de mais de 200 mortos e 50 mil desabrigados. Em janeiro de 2011 [6], fortes chuvas na região serrana do Rio de Janeiro causaram a morte de cerca de 900 pessoas, além de grandes danos materiais e pessoais.  Em Santa Catarina, o Vale do Itajaí registrou 94 enchentes em 169 anos [7]. Esses são apenas alguns exemplos.

A Lei nº 14.285/2021 tem grande chance de ser declarada inconstitucional pelo STF e, em tal condição, só terá gerado mais insegurança jurídica ao afrontar preceitos constitucionais e uma jurisprudência amplamente consolidada. Diante do atual quadro de emergência climática, a Lei nº 14.825/2021 é uma verdadeira aberração jurídica, sobretudo se considerarmos a Política Nacional de Mudanças Climáticas e o Acordo de Paris.

 


[2] Disponível em < https://oeco.org.br/colunas/23801-analista-do-depois/ > acesso aos 30 dez 2021.

Autores

  • é presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN e professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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