Opinião

Por que o Brasil ainda trata os direitos das mulheres sob a perspectiva penal?

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

28 de fevereiro de 2022, 9h19

Em 2014, foi publicado em França o "Rapport Théry" [1], um relatório interdisciplinar elaborado pelo grupo Filiação, Origens e Parentalidade, formado no âmbito do Ministère des affaires sociales et de la santé. Formado por juristas, sociólogos, antropólogos, psiquiatras, psicanalistas, médicos, filósofos e políticos, o grupo teve como objetivo o estudo do direito face aos novos valores da responsabilidade geracional.

O groupe de travail [2] Filiação, Origens e Parentalidad foi formado para compreender as metamorfoses contemporâneas da filiação e para analisar a diversidade dos seus métodos de seu estabelecimento. O relatório é dividido em duas partes: a primeira se trata de uma reflexão prospectiva da filiação, sobre as diferentes modalidades de filiação atuais, notadamente, a adoção, o reconhecimento socioafetivo e a reprodução assistida. A segunda trata do acesso às origens, parentalidade e proposição de uma nova lei, no que se refere ao acesso às origens das pessoas nascidas sob a condição de anonimato (accouchement sous X).

O que significa o denominado accouchement sous X ? Trata-se de instituto previsto no artigo 326 do Código Civil francês que dispõe que logo após o parto a mãe pode pedir o segredo de sua admissão no hospital e que sua identidade seja preservada [3].

É a possibilidade de a mulher grávida dar à luz anonimamente, ou seja, sob X, quer num estabelecimento público ou privado, quer sob acordo ou não. A mulher grávida que deseja dar à luz sob X deve informar a equipe médica do estabelecimento de saúde da sua escolha (pública ou privada, contratada ou não). Ressalta-se que nenhuma identificação pode ser solicitada e nenhuma investigação pode ser conduzida.

Posteriormente, a criança é encaminhada ao serviço ASE (Service Sociale à l’Enfance  Serviço Social da Infância) e é redigido um relatório que menciona o possível consentimento para a adoção. Se a mãe assim o desejar, também contém todas as informações relativas à sua saúde, às origens da criança e às razões e circunstâncias para a entregar ao serviço social.

A partir desse momento, a criança já não tem qualquer filiação e a tutela específica é então organizada pelo tutor e pelo conselho de família. A criança é então encaminhada a uma creche ou à uma família de acolhimento durante um período de transição e o abandono da criança permanece temporário durante dois meses após o nascimento, período durante o qual a mãe tem a oportunidade de reconsiderar a sua decisão e reconhecer a criança.

Durante esse período, a criança não pode ser adotada. Após esse período, se a mãe não reverter a sua decisão de receber o seu filho de volta, a criança é admitida como pupila do Estado e pode então ser dirigida definitivamente para a adoção.

Por outro lado, se a mãe se retratar de sua decisão, lhe é oferecido apoio durante os três anos que se seguem ao regresso do seu filho, visando a garantir o estabelecimento das relações necessárias para o desenvolvimento físico e psicológico da criança e a sua estabilidade emocional.

A situação do Accouchement sous X é demonstrada no documentário "Wonder Boy", disponível na plataforma Netflix e que retrata a vida de Olivier Rousteing, ex-diretor da marca de altura costura Baumain. Rousteing nasceu sob X e o referido documentário demonstra a sua tentativa de encontrar rastros de suas origens familiares.

A Corte Europeia de Direitos Humanos já decidiu, com fundamento no artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950 [4] ("Toute personne a droit au respect de sa vie privée et familiale, de son domicile et de sa correspondance"[5], que é preciso conciliar a proteção do segredo da mãe e a demanda legítima da criança concernente ao conhecimento de suas origens, conforme o princípio da proporcionalidade e os critérios referentes à adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (l'affaire Odièvre c. France  13 de fevereiro de 2013).

A Corte Europeia supramencionada possui entendimento no sentido de que o direito de conhecer a própria descendência se enquadra no âmbito do conceito de "vida privada", que engloba aspectos importantes da identidade pessoal dos quais faz parte a identidade dos progenitores (ver Odièvre v. França [GC], nº 42326/98, § 29, ECHR 2003-III, e Mikuli v. Croácia, nº 53176/99, §53, ECHR 2002-I).

Com efeito, a França está na vanguarda da proteção e do reconhecimento do direito das mulheres desde 17 de janeiro de 1975, ano em que foi promulhada a Loi Veil, em homenagem a Simone Veil, então ministra da Saúde e principal responsável pela legalização da interrupção voluntária da gravidez, norma que prevê a despenalização do aborto na França.

A lei supramencionada alterou o artigo L 2212-1 do Código de Saúde Pública para dispor que: "Uma mulher grávida que não queira continuar uma gravidez pode pedir a um médico ou parteira para interromper a sua gravidez. Esta interrupção só pode ser efetuada antes do final da décima segunda semana de gravidez. Todos têm o direito de ser informados sobre os métodos de aborto e de escolher livremente um. Esta informação é da responsabilidade de todos os profissionais de saúde no âmbito da sua competência e em conformidade com as regras profissionais que lhes são aplicáveis".

No que concerne à dramática questão da gravidez não desejada, no território francês existe a interrupção voluntária da gravidez em até 12 semanas (com projeto legislativo de ampliação para 14 semanas) e o parto anônimo (accouchement sous X), medidas que evitam a morte de mulheres no âmbito de abortos clandestinos, e, no segundo caso, protegem a vida de recém-nascidos que seriam abandonados em situações de desespero.

Então, no ano de 2022, por que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não resguarda o direito das mulheres tanto quanto o ordenamento francês? No Brasil, a ausência de registro do recém-nascido, a interrupção voluntária da gravidez e a esterilização sem consentimento do cônjuge são práticas caracterizadas como crime e punidas com reclusão.

Dispõe o artigo 50 da Lei de Registros Públicos a respeito da obrigatoriedade do registro, in verbis: "Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório".

Igualmente, o artigo 242 do Código Penal dispõe a respeito da infração penal do "parto suposto ou supressão de direito inerente ao estado civil de recém-nascido", consistente na conduta de dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil (redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981), verificando-se uma minorante se o crime é praticado por "motivo de nobreza".

Ainda, o artigo 243 do mesmo código dispõe que caracteriza infração penal a conduta de deixar em asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar direito inerente ao estado civil.

Interrupção voluntária da gravidez
No último dia 21, o Tribunal Constitutional colombiano descriminalizou a conduta relativa à infração penal relativa ao aborto até a 24ª semana de gestação, uma conquista histórica para as colombianas.

No Brasil, os artigos 124 e 125 do Código Penal prescrevem que a interrupção voluntária da gravidez é crime, punido com reclusão, excluindo-se apenas o aborto necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) ou o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, quando o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Vale ressaltar que em 13 de abril de 2012, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, o Supremo Tribunal Federal compreendeu que o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, principalmente, de proteção jurídico-penal. "Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida ", revelando-se uma conduta atípica.

Ora, é preciso lembrar o discurso de Simone Veil em 1975, na Assembleia Nacional francesa: "Chegamos a um ponto em que, nesta área, as autoridades públicas já não podem eximir-se às suas responsabilidades. (…) Não podemos impedir os abortos ilegais e não podemos aplicar o direito penal a todas as mulheres que estariam sujeitas aos seus rigores. (…) A situação atual é má, e eu diria mesmo que é deplorável e dramática. É esta desordem que deve ser travada. É esta injustiça que deve ser detida. Mas como é que isto pode ser feito? Digo isto com toda a minha convicção: o aborto deve continuar a ser a exceção, o último recurso para situações sem saída", mas não pode deixar as mulheres às mrgens da lei.

Ainda, no Brasil a denominada Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/1996) dispõe que somente é permitida a esterilização voluntária em mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, impondo-se o consentimento do cônjuge, sob pena de caracterizar-se o crime previsto no artigo 15, caput, da mesma lei.

O artigo 10, parágrafo 5º da lei dispõe que: "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges", o que mais uma vez retira a autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo.

Em França, a esterilização para fins contraceptivos está prevista no artigo l. 2123-1 da Lei nº 2002-588, de 4 de julho de 2001, e não depende do consentimento do cônjuge, in verbis: "A ligadura de tubos ou canais deferentes para fins contraceptivos não pode ser realizada com um menor. Só pode ser realizado se o adulto em causa tiver manifestado uma vontade livre, motivada e deliberada em consideração de informações claras e completas sobre as suas consequências".

Contudo, a operação só pode ser realizada após um período de reflexão de quatro meses após a primeira consulta médica e após confirmação escrita da pessoa em causa do seu desejo de se submeter a uma operação.

No contexto brasileiro [6], majoritariamente o ônus da contracepção, da maternidade e da criação dos filhos é legado às mulheres, mantendo-se a estrutura patriarcal em que a mulher é julgada em seu seio social, tratada às margens da lei penal e sem o abrigo do direito para resguardar os seus direitos justamente nos momentos de maior vulnerabilidade social.

Segundo informações publicadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) [7] e da ONG Centro de Direitos Reprodutivos, 23 mil mulheres morrem a cada ano realizando a interrupção voluntária da gravidez de forma não segura e outras milhares enfrentam complicações de saúde decorrentes da operação.

No âmbito da América Latina, Uruguai, Guiana e Argentina preveem a interrupção voluntária da gravidez sem condicionantes até a 12ª semana de gravidez. Por sua vez, Bolívia, Peru e Equador dispõem a respeito da referida possibilidade em condições relativas à saúde mental ou física da mulher com hipóteses mais amplas do que o Brasil.

Vale ressaltar que, segundo a Central Nacional de Informações do Registro Civil (CNIR), seis milhões de brasileiros não possuem o nome do pai na certidão de nascimento e os altos índicios de registro apenas no nome da mãe se mantiveram mesmo após a publicação de ato pelo Conselho Nacional de Justiça que desburocratizou o reconhecimento tardio de paternidade. 

Portanto, é imprescindível que o ordenamento jurídico pátrio proteja, resguarde e preveja direitos às mulheres para que todas se sintam protegidas e não punidas. É imperativa a adoção de um olhar mais humano, colocando-se a mulher como sujeito de direito e não objeto. Situações como o accouchement sous X e a interrupção voluntária da gravidez são dramáticas e indesejadas. Entretanto, sob pena de perda de sua legitimidade, a lei não pode continuar abandonando essas mulheres, deixando-as às margens do direito, notadamente, com alta taxa de natalidade e de abandono pelos genitores no Brasil.

Referências bibliográficas
Código de Saúde Pública francês
Disponível em :< https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGITEXT000006072665/ >. Acesso em 17/02/2022.

Código Civil francês
Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/codes/article_lc/LEGIARTI000006425119 > Acesso em 17/02/2022.

Código Civil brasileiro
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm > . Acesso em 17/02/2022.

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