Opinião

Dois anos do acordo de não persecução cível: retrospectiva e tendências

Autores

  • Rodolfo Tamanaha

    é advogado sócio da prática de Negócios Digitais do Madrona Advogados doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (FD-USP) e mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UNB).

  • Filipe Lovato Batich

    é advogado associado da prática de Direito Penal Empresarial & Compliance do Madrona Advogados mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (FD-USP) e professor Universitário.

  • Rhasmye El Rafih

    é advogada associada da prática Direito Penal Empresarial & Compliance do Madrona Advogados e mestra em Direito pela Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

27 de fevereiro de 2022, 15h11

Em 2017, com a edição da Resolução nº 179 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), foi regulamentada a possibilidade de celebração de acordos em sede de improbidade administrativa, mediante compromissos de ajustamento de conduta. Contudo, essa modalidade de solução transacional era vedada na redação original da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que a considerava incompatível com o princípio da indisponibilidade do interesse público.

Com a promulgação da Lei nº 13.964, em dezembro 2019, a LIA foi alterada para disciplinar a possibilidade de solução consensual em matéria de improbidade administrativa, sendo expressamente previsto o acordo de não persecução cível (ANPC). Porém, os requisitos e procedimentos para a celebração do ANPC sofreram veto presidencial, o que acabou esvaziando a inovação legislativa.

Em virtude disso, o Poder Judiciário foi provocado a se pronunciar sobre algumas questões procedimentais afeitas ao ANPC, como em relação ao momento adequado para a sua celebração. Em março de 2021, foi publicado o primeiro precedente do Superior Tribunal de Justiça a esse respeito, estabelecendo ser possível a homologação do acordo também em fase recursal, desde que não haja o trânsito em julgado (AResp 1.314.581).

Em paralelo, o Ministério Público passou a regulamentar o ANPC nas esferas estadual e federal. Por exemplo, um dos órgãos pioneiros foi o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), com a edição da Resolução nº 1.193, de 11 de março de 2020, que estabeleceu o conteúdo mínimo do ANPC e seus requisitos de validade. Em dezembro de 2020, o MP-SP também emitiu a Nota Técnica nº 02/2020, visando a conferir coerência e unidade institucional na celebração do ANPC, com enfoque na efetividade das sanções e no estabelecimento de diretrizes para a atuação integrada nas tratativas envolvendo ilícitos cíveis e criminais.

No âmbito federal, apenas em novembro de 2020 é que foram estabelecidas as diretrizes para a celebração do ANPC por pessoas físicas ou jurídicas, por meio da Orientação nº 10 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do Ministério Público Federal (MPF). Referido documento, entre outros aspectos, dispôs sobre os direitos e deveres dos interessados, critérios para a celebração em primeira e segunda instâncias, além das cláusulas necessárias do ANPC, visando à sua uniformização. Ainda, foi prevista a faculdade de submissão do acordo à homologação prévia da 5ª CCR.

Em julho de 2021, a Advocacia-Geral da União (AGU) editou a Portaria Normativa nº 18, que regulamenta o ANPC em seu âmbito e no da Procuradoria-Geral Federal. Nessa normativa, foram estabelecidos os procedimentos e os requisitos do acordo, os fatores a serem considerados no ajuste, como a natureza e gravidade da infração e o dano, tendo sido igualmente consagrada a possibilidade de celebração do ANPC nas fases extrajudicial ou judicial, até o trânsito em julgado. Em atenção às variadas formas de solução consensual, há disposição expressa determinando o encaminhamento da proposta de acordo ao Departamento de Patrimônio Público e Probidade da Procuradoria-Geral da União, para avaliação em conjunto com a Diretoria de Acordos de Leniência da Controladoria-Geral da União (CGU), quando os fatos objetos da proposta forem passíveis de tipificação na Lei Anticorrupção e houver indicativo de possibilidade de celebração de acordo de leniência.

Com o advento da Lei nº 14.230, de outubro de 2021, conhecida como nova LIA, finalmente foram fixadas as premissas legais para a celebração do ANPC no que diz respeito a questões procedimentais gerais. Ademais, tendo em vista as controvérsias práticas envolvendo a apuração do valor do dano a ser ressarcido, foi prevista a manifestação do Tribunal de Contas competente para indicação dos parâmetros utilizados. Também em atenção às discussões sobre o momento apropriado para a celebração do ajuste, passou a ser prevista sua possibilidade inclusive no momento da execução da sentença condenatória. Outra novidade foi a previsão da possibilidade de que o ANPC contenha cláusulas que determinem a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria, incentivo à denúncia e aplicação efetiva das políticas de integridade.

Em que pese as iniciativas dos órgãos legitimados à celebração do ANPC e a recente alteração da LIA, é ainda tímida e esparsa a divulgação dos ANPCs celebrados no Brasil. Pende de operacionalização a criação do Cadastro Nacional de ANPCs, como previsto na Orientação nº 10 do MPF, para a organização sistemática das informações essenciais sobre esse acordo, ao menos na esfera federal.

No Relatório de Gestão do Ministério Público da União, disponibilizado em meados de 2021, há uma breve nota expondo que foram celebrados 138 ANPCs no âmbito federal em 2020.Ainda não há dados que demonstrem concretamente se a Política de Atuação Consensual do MPF, especialmente no que concerne ao ANPC, está ou não, de fato, tendo a adesão esperada.

A despeito disso, já se observa uma tendência de coordenação interinstitucional para a celebração do ANPC, principalmente em matéria de reparação do dano e considerando a possibilidade de celebração de acordos com outras autoridades e em distintas esferas, como acordos de não persecução penal. Além disso, a solução consensual também vem sendo utilizada para engajar pessoas jurídicas na implementação ou aprimoramento de programas de integridade e de mecanismos internos de denúncia e apuração de infrações, o que demonstra a alta aposta dos órgãos de persecução na colaboração de particulares.

Aparentemente, a consensualização, enquanto técnica de resolução de conflitos, vem remodelando os procedimentos estatais centrados no litígio e atraindo crescentes desafios para a sua consolidação e integração. 

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