Opinião

O empresário é o novo inimigo do Direito Penal?

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26 de fevereiro de 2022, 6h04

No imaginário popular, possivelmente ainda predomina a visão de que o empresário dificilmente sofrerá com as consequências jurídicas do seu comportamento criminoso, dada a sua condição social.

Ainda que esse entendimento mereça uma releitura, como buscar-se-á demonstrar com este texto, não é ele de todo divorciado da história do Direito Penal e do próprio modo de construção social do Direito.

Historicamente, o Direito Penal apresentou-se reiteradamente como instrumento de controle social altamente seletivo, repressivo e estigmatizante. Essa configuração, como sustenta Nilo Batista [1], não pode ser explicada senão quando considerada a relação do texto normativo com o seu processo de construção social.

Com efeito, no bojo de uma sociedade estruturada em classes, o conjunto de normas penais não é completamente neutro, avalorado ou abstrato, mas, ao contrário, termina por refletir os interesses dominantes daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Logo, os interesses selecionados para a tutela penal guardam íntima relação com os valores partilhados pelos grupos que conseguem impor suas demandas no processo de elaboração das leis penais.

No entanto, como dito, algumas transformações no modo de reação penal impõem uma releitura dessa abordagem, não para negá-la, mas para atualizá-la, dado que, atualmente, não só os tradicionais destinatários do Direito Penal são objeto de sua incidência, como também os empresários criminosos, novos sujeitos a serem combatidos pelo sistema criminal.

Não se nega o caráter ainda seletivo do sistema penal, mas, apenas, aponta-se que a política criminal também tem sido orientada, mais recentemente, ao combate do empresário, classe antes considerada imune. Essa constatação é justificada pela moderna tendência de proliferação de tipos penais e instrumentos regulatórios no âmbito empresarial, além do aumento de penas, emprego excessivo de elementos normativos de tipo e normas penais em branco, punição de condutas omissivas ou pela ocupação de espaços, responsabilização penal da pessoa jurídica, tendência de relativização da responsabilização subjetiva e supressão de garantias penais ou processuais.

Não por outro motivo, em levantamento feito em 2019 [2] constatou-se que sócios, diretores e gerentes foram condenados criminalmente em 82% dos casos que chegaram à Justiça. Como, em regra, as pessoas jurídicas não podem ser penalmente responsabilizadas, a responsabilidade tem recaído sobre os dirigentes, mesmo que por decisões ou atos de terceiros, já que é problemática a apuração das participações individuais nos empreendimentos coletivos.

Contudo, o déficit de proteção pretérita não se compensa com a consideração atual de que o empresário é o inimigo a ser combatido pelo Estado. Como bem resume José Carlos Tórtima [3], "(t)ão nefasta quanto a ideia, herdada da criminologia positivista, do esteriótipo do criminoso pertencente às ‘classes inferiores’, é a inversão do preconceito, o estigma às avessas, o incentivo e o aplauso a toda sorte de abuso ou arbitrariedade dirigido aos outrora inatingíveis acusados de delitos econômicos".

Feita essa abordagem introdutória, passa-se a demonstrar, a seguir, as razões pelas quais o empresário tem sido objeto de um tratamento repressivo diferenciado quando comparado a outros destinatários da norma penal.

Pois bem, o desenvolvimento de atividades econômicas gera riscos. Em termos práticos, explorar uma atividade de lanternagem, funilaria e pintura de veículos automotores gera riscos, como o de provocar poluição sonora, atmosférica e/ou hídrica. Por isso, para ponderar os riscos tolerados, o legislador ou o administrador público estabelece regras para conciliar o direito à livre iniciativa com o direito ao meio ambiente equilibrado. Assim sendo, caso não instalada a cabine de pintura com exaustão, equipada com sistema adequado ao controle das emissões de material particulado e emissões gasosas, o empresário pode ver-se implicado em autuações ambientais, demandas civis e processos criminais, com sérias repercussões patrimoniais e reputacionais.

Logo, no seio de uma sociedade estruturada sob o risco, a tolerância aos perigos por ele gerados depende da sua inserção dentro do marco juridicamente permitido. Por esse motivo, a fim de manter a empresa dentro do risco tolerado, os empresários devem atentar-se aos regramentos a serem observados no âmbito de sua atividade produtiva, inclusive no que toca às atividades desempenhadas por seus subordinados. Do contrário, considerando-se a recente tendência repressiva que os ameaça, serão possivelmente responsabilizados criminalmente, sujeitando-se, ainda, aos impactos negativos provenientes de outras esferas sancionatórias.

Atendo-se ao recorte exclusivamente criminal, as acusações têm-se baseado não somente no agir do dirigente empresarial para a prática de um delito, mas, também, na sua inércia diante de um evento que gere perigo de dano a bens jurídicos alheios. É a responsabilização pela ocupação de espaços. Não somente espera-se do dirigente uma abstenção no emprego de práticas empresariais ilícitas, como também, em razão de sua ocupação, o emprego de condutas positivas para evitar resultados lesivos decorrentes da empresa enquanto representante de uma fonte de perigo [4].

A conveniência repressiva da punição pela via da omissão imprópria, do ponto de vista político-criminal, é notória: além de viabilizar a punição sem exigir contribuições causais positivas, impõe ao dirigente tanto o dever de vigiar os riscos que emanem sobre a própria atividade econômica, quanto o dever de salvar bens jurídicos que estejam sob ataque por decorrência de uma situação de perigo gerada pela empresa.

Sob o viés utilitário, há ganhos sociais, pois a preocupação com o gerenciamento de riscos e o cumprimento dos deveres de cuidado fomenta a implementação de programas de compliance, privatizando-se a segurança, a fiscalização e a prevenção de crimes. A razão perpassa pelo fato de que somente com a observância do amplo espectro de deveres herdado é que o empresário tornar-se-á capaz de identificar os desvios antes que estes se concretizem, possibilitando a atuação voltada à sua evitação. Logo, o compliance acaba apresentando-se como ferramenta voltada ao afastamento ou à mitigação da responsabilidade penal.

No entanto, o utilitarismo não responde a todas as perguntas em matéria criminal, especialmente porque, em última instância, pode levar ao esfacelamento de certas categorias dogmáticas. Com efeito, nota-se, além da flexibilização da imputação típica objetiva com a abstração inerente ao nexo de causalidade nos delitos omissivos impróprios, o obscurecimento dos contornos da imputação subjetiva.

Nos delitos empresariais, não raras vezes presume-se o dolo, o que é viabilizado com o emprego descontextualizado de figuras dogmáticas estrangeiras como a teoria do domínio do fato e a cegueira deliberada. Deixando a primeira de lado, sobretudo pelo entendimento consignado na AP 975/STF [5] de que a teoria do domínio do fato não pode ser invocada para solucionar problemas de debilidade probatória ou a fim de arrefecer os rigores para a caracterização do dolo delitivo, a segunda é especialmente problemática, pois, na prática, pode viabilizar a punição a título doloso em quase todos os casos de delitos empresariais.

Conceituando-a de modo assumidamente redutivo, a cegueira deliberada, em linhas gerais, é uma doutrina, própria da tradição anglo-saxã, que, na tentativa de punir o agente nos casos de desconhecimento, equipara a autocolocação deliberada em estado de ignorância a uma situação de conhecimento.

Partindo-se do pressuposto de é que punível o dirigente nos casos em que se omitir em evitar o resultado provocado por coisas ou subordinados sob o seu domínio, é sedutora a conclusão, para o órgão acusador, de que qualquer desconhecimento do fato criminoso decorreu da inobservância consciente e desejada do dever de se informar, restringindo-se o espaço do desconhecimento culposo.

Ilustrativamente, um diretor contábil pode ser punido dolosamente por ter-se mantido deliberadamente ignorante em relação ao dever de supervisionar o contador da empresa, situação que o impedira de agir, mesmo que não demonstrado qualquer indício de anormalidade fiscal no setor contábil da empresa que criasse uma fundada dúvida apta a justificar a intervenção causal positiva. Como resultado, equiparando-se a ignorância ao conhecimento [6], a omissão dolosa é facilmente aferível, punindo-se dolosamente mesmo nos casos de inobservância culposa do dever de vigiar riscos empresariais [7].

Além do rebaixamento dos padrões exigidos em matéria de Direito Penal substancial, o próprio standard necessário ao recebimento da denúncia, questão de matéria processual, foge à regra do artigo 41 do CPP. Nesse sentido, o STJ, como decidido no HC 394.225/ES [8], entende que há justa causa quando a denúncia, apesar de não descrever minuciosamente as atuações individuais dos acusados, demonstrar um liame entre o seu agir e a suposta prática delituosa, estabelecendo a plausibilidade da imputação e possibilitando o exercício da ampla defesa.

Somado a isso, ainda no âmbito processual, vem-se admitindo o sequestro e o arresto-hipoteca legal sem a comprovação do periculum in mora, ignorando-se sua natureza cautelar. Nesse sentido, o acusado pode sofrer efeitos patrimoniais adversos e desproporcionais com o bloqueio cautelar e a indisponibilidade de ativos, invertendo-se o ônus da prova, pois o réu, no caso do sequestro, é quem tem de demonstrar que o bem não é provento de crime.

Todo esse conjunto de fatores aponta para uma expansão da resposta repressiva no âmbito da criminalidade empresarial. A fim de viabilizar a punição em empreendimentos, nota-se a flexibilização de algumas categorias dogmáticas como resposta às dificuldades estruturais de identificação dos envolvidos com a trama delituosa e de suas contribuições causais, ante a fragmentação da autoria e a diluição do dolo.

Com isso, para o empresário, a responsabilização penal é um fenômeno quase inexorável, mormente porque os processos, sobretudo nos âmbitos fiscal e ambiental, são instruídos com provas documentais pré-constituídas, elaboradas unilateralmente pelo próprio Estado.

Diante do cenário desenhado, para orientar o empresário, é preciso prepará-lo para uma crise jurídico-penal, pois, considerado o atual movimento de combate contra os novos inimigos do Estado, a imputação criminal é uma variável futura contra a qual provavelmente será preciso lidar, ainda que não haja contribuição positiva ou vinculação subjetiva com o resultado.

 


[1] Cf. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª ed. 2007, p. 18.

[2] Cf. EXECUTIVOS são condenados em 82% dos casos levados a esfera criminal. 2019. VALOR ECONÔMICO. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/08/23/executivos-sao-condenados-em-82-dos-casos-levados-a-esfera-criminal.ghtml. Acesso em: 18 fev. 2022.

[3] Cf. TÓRTIMA, José Carlos. Crimes contra o sistema financeiro nacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1ª ed. 2011, p. 8.

[4] Sobre o tema da omissão imprópria aplicável aos dirigentes empresariais, Cf.: ESTELLITA. Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedade anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[5] STF, AP 975, Relator: Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, DJe 01.03.2018.

[6] Para Lucas Pardini, é errado igualar o erro e a ignorância para fins jurídicos, pois o erro, estado positivo e necessariamente inconsciente, sempre implicaria a ignorância da realidade, ao passo que a ignorância, estado negativo caracterizado por uma lacuna de conhecimento, poderia ser consciente e, até mesmo, desejada. Cf. GONÇALVES, Lucas Pardini. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. 179 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

[7] Para uma visão completa do tema, por todos, Cf. LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

[8] STJ, HC 394.225/ES, 5ª Turma, relator ministro Jorge Mussi, DJe 24.8.2017.

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