Opinião

Uma matriz de risco é capaz de tornar os contratos administrativos completos?

Autores

  • Rodrigo Duarte

    é advogado da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados especialista em Direito Público e pós-graduando em Direito de Infraestrutura Concessões e Parcerias Público-Privadas pela PUC-MG.

  • Marcela Assis

    é advogada da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados e pós-graduanda em Direito da Energia pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (Cedin).

26 de fevereiro de 2022, 9h12

Em contraposição aos contratos completos (isto é, aqueles capazes de especificar todas as características de uma transação  incluindo preço, data, objeto, obrigações e direitos), criou-se a teoria dos contratos incompletos. Segundo ela, todos os contratos de longo prazo são  por natureza  incompletos, afinal, é humanamente impossível antever todas as possíveis futuras contingências decorrentes de um acordo. Tentar listar todos esses eventos torna o documento excessivamente complexo e extenso.

Atenta — ou não  a essa teoria, a Lei federal nº 14.133/21 (nova Lei de Licitações) tenta driblar a teoria dos contratos incompletos, de modo a trazer maior segurança jurídica e previsibilidade para os contratos administrativos. Para alcançar esse objetivo, a nova norma prevê a possibilidade e, em alguns casos, a obrigatoriedade de se inserir nos contratos administrativos cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes.

Histórico de alocação de riscos
Sob a perspectiva contratual, alocar riscos nada mais é do que uma estratégia de resposta a eventos supervenientes à celebração de um contrato.   

O tema alocação de riscos foi tratado na Lei federal nº 8.987/95, mais especificamente no conceito de "concessão de serviço público". Segundo consta, o particular delegatário do serviço deve executá-lo "(…) por sua conta e risco", de modo que caberia ao concessionário assumir todos os riscos ordinários ou previsíveis envolvidos na execução do contrato de concessão. Sem adentrar nas diversas teorias jurídicas que surgiram entorno da expressão, fato é que tal previsão não foi suficiente para evitar os inúmeros litígios entre particulares e o poder público envolvendo pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro.

Diante desse cenário, os textos normativos sobre contratação do poder público que se seguiram tentaram criar ferramentas para que o particular tivesse maior previsibilidade durante a execução de contratos. Nesse sentido, a "repartição de riscos entre as partes" já constava no texto legal da Lei das PPPs (Lei federal nº 11.079/04). Posteriormente, a Lei de RDC (Lei federal nº 12.462/11) também estabeleceu expressa possibilidade de que os contratos por ela regidos contemplassem matriz de alocação de riscos. Por sua vez, na Lei das Estatais (Lei federal nº 13.303/16), a matriz de risco é cláusula contratual necessária na contratação de obras e serviços por empresas públicas e sociedades de economia mista.

Diante da evolução legislativa sobre o tema, mesmo alguns contratos de concessão regidos pela Lei federal nº 8.987/95 passaram a contar com matrizes mais detalhadas, com uma preocupação maior em especificar, de forma mais objetiva, os riscos que podem incidir em um contrato de longo prazo, notadamente no campo da infraestrutura.

Tudo isso culminou na matriz de alocação de risco prevista na nova Lei de Licitações, a qual é fruto do amadurecimento das experiências vivenciadas sobre o tema.

A matriz de alocação de riscos da Lei 14.133/21
A matriz de risco da nova Lei de licitações constitui uma importante ferramenta na etapa introdutória do processo de licitação e na própria execução dos contratos administrativos. Obrigatória na hipótese de contratação de obras e serviços de grande vulto  assim considerados aqueles cujo valor estimado supera R$ 200 milhões  ou quando forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada, a matriz de riscos permite a alocação adequada dos riscos inerentes a cada contrato, devendo cada risco ser atribuído à parte que detiver as condições necessárias para evitar sua materialização ou para mitigar os prejuízos dele decorrentes.

Nos termos da Lei 14.133/21, ela deve fixar as hipóteses de: 1) desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos; 2) rescisão contratual por onerosidade excessiva; e 3) definir a contratação de seguros obrigatórios.

Na prática, isso impacta positivamente as contratações públicas brasileiras.

Primeiro, porque o preço final do contrato refletirá a devida remuneração das partes pela assunção de riscos que possam se efetivar ao longo da execução do objeto contratual  afinal, os custos com a contratação de seguros integrarão o preço do contrato e as partes contratantes, cientes dos riscos atrelados ao contrato, poderão se planejar e precificar melhor suas obras e serviços. Com efeito, a alocação eficiente dos riscos contribui para a contratação da proposta mais vantajosa possível pela Administração Pública, uma vez que reduz a incorporação, nos preços apresentados pelos licitantes, dos custos de insegurança decorrentes do desconhecimento dos riscos envolvidos no empreendimento. Nesse sentido, preceitua doutrina especializada:

"Boa parte das concessões de serviço público no Brasil é financiada sob a modalidade de project finance, na qual o financiador conta apenas com o fluxo de caixa do projeto para fazer face aos financiamentos. Esses projetos costumam ser bastante alavancados, com dívidas que chegam a 80% dos recursos investidos. Qualquer variação abrupta e imprevista de custos ou receitas da concessionária pode levá-la a inadimplir os financiamentos, razão pela qual uma análise extensa e profunda dos riscos do projeto é feita antes da contratação. Os riscos identificados são então mitigados por meio de seguros, provisões ou margens de segurança e os respectivos custos são repassados para a proposta. Diante de qualquer incerteza na alocação dos riscos, os licitantes tendem a incluir esses riscos em sua proposta, ainda que não seja claro quem deva suportá-los posteriormente" [1].

Segundo, porque permitirá a definição de estratégias mais bem desenhadas de gerenciamento de eventos supervenientes e de mitigação de seus impactos durante da gestão do contrato. E terceiro, porque os pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro se limitarão àqueles previamente desenhados na matriz de risco e/ou não previstos. Dessa forma, ganha-se na prevenção de litígios.

Apesar de todas essas vantagens, não nos parece que a matriz de alocação de riscos da nova Lei de Licitações é capaz de tornar os contratos administrativos completos, no sentido de prever todas as situações que, de fato, ensejariam o desequilíbrio e onerosidade excessiva. Decerto, o detalhamento dos riscos contratuais por meio da matriz de risco é limitado pela absoluta impossibilidade de previsão de todos os riscos e contingências futuras às quais os contratos poderão estar sujeitos. Aliás, entendemos que qualquer tentativa de previsão taxativa nesse sentido tornaria os contratos sobremaneira complexos.

Diga-se mais, é possível que mesmo riscos previstos de forma abstrata e alocados às partes na matriz de riscos podem, na prática, produzir efeitos que extrapolem o que poderia ser visto como uma consequência ordinária daquele risco. Nesses casos, desde que objetivamente demonstrado pela parte que o fato verificado lhe afetou, além do quanto poderia ter sido previsto, entendemos que os prejuízos excedentes ao montante tido como variação ordinária do risco podem ser objeto de pedidos de reequilíbrio contratual.

Seja como for, é indiscutível que tal ferramenta representa um avanço da Administração Pública no planejamento e na gestão dos seus contratos, dispondo de forma mais clara e objetiva os impactos de eventos supervenientes e, consequentemente, trazendo ganhos de eficiência e previsibilidade nos contratos.

 


[1] PINTO, Marcos Barbosa "Repartição de riscos nas parcerias público-privadas", in Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 13, nº 25, jun. 2006, p. 161.

Autores

  • é advogado da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados e pós-graduando em Direito de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

  • é advogada da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados e pós-graduanda em Direito da Energia pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (Cedin).

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