Opinião

Inexigibilidade de licitação em serviços jurídicos não é carta branca a gestor

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

26 de fevereiro de 2022, 13h13

A Lei nº 14.133/2021 adveio no ordenamento jurídico com o propósito de aperfeiçoar as contratações públicas, consolidando em um único instrumento normativo as questões atualmente tratadas na Lei nº 8.666/93 (Lei Geral de Licitações), na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e na Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas), as quais se darão por revogadas em 1º de abril de 2023 [1].

Entre as noveis alterações, a Lei nº 14.133 se dispôs a solucionar a problemática acerca da contratação direta de serviços jurídicos mediante inexigibilidade de licitação, fazendo-o independentemente da singularidade do objeto.

A teor da Constituição Federal, dispõe-se que "ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes" (artigo 37, inciso XXI).

Note-se que a Carta Constitucional estabelece como regra a necessidade da realização de procedimento licitatório prévio para a seleção da famigerada "proposta mais vantajosa para a Administração Pública", admitindo-se, outrossim, a possibilidade de contratação direta nos "casos especificados na legislação".

Dessa sorte, tanto a Lei nº 8.666 quanto a Lei nº 14.133 preveem hipóteses de contratação de bens e serviços sem a precedência de licitação pública em que se franqueie a participação de todos os interessados, fazendo-se através de procedimentos de dispensa e de inexigibilidade de licitação, esta ultima quando houver inviabilidade de competição (Lei nº 8.666, artigo 25; Lei nº 14.133, artigo 74) [2].

No que concerne à contratação de serviços advocatícios, os quais têm caráter predominantemente intelectual, o modelo estabelecido na Lei nº 8.666 comporta tanto a precedência de licitação através dos tipos "melhor técnica" ou "técnica e preço" (artigo 46), como a contratação direta mediante dispensa (artigo 24, incisos II, V e XI) ou inexigibilidade (artigos 13, inciso V e 25, inciso III), esta ultima quando o objeto for "singular".

Ao dispor acerca da inexigibilidade de licitação para a contratação de "serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual" (artigo 74, inciso III), a Lei nº 14.133 deixou de exigir a necessidade de "singularidade" do objeto contratado [3].

Todavia, a percepção acerca da "inviabilidade" de competição é necessariamente dualística, de modo que, ou esta se afere diante da singularidade do objeto  como preconiza a Lei nº 8.666  ou se constatará genericamente para todo e qualquer serviço jurídico — como introduzido pela Lei nº 14.133.

Ao nosso entender, e em que pesar incoerência jurídico-normativa em se admitir a vigência concomitante de normas conflitantes, compreendemos que a mera predominância intelectual não é suficiente para demonstrar eventual "inviabilidade" de competição, o que demanda uma análise pontual e circunstanciada.

Ao que se confere, a inserção da contratação de serviços jurídicos como hipótese de inexigibilidade de licitação não se deu em decorrência da "inviabilidade" de competição  tanto que o contexto fático-normativo regido pela Lei nº 8.666 comprova tal efetiva possibilidade , e, sim ,por ficção legal [4] [5] de duvida constitucionalidade.

Ademais, tratando-se de contratações públicas, temos que a "confiança"  elemento intrínseco à relação advogado e cliente  deve ser aferível de forma técnica, e que pode ser mensurada na forma do artigo 74, §3º, da Lei nº 14.133 (o que deve ser restrito à hipótese de singularidade do objeto a ser contratado) ou seja mediante a adoção dos tipos "melhor técnica" ou "técnica e preço" (quando o objeto for comum), vedando-se qualquer grau de subjetividade, mormente porque o gestor público deve agir com impessoalidade.

Destaca-se mais que o julgamento objetivo consiste em princípio basilar ao microssistema das contratações públicas, cuja observância se faz necessária sempre que se revelar a existência de prestadores potencialmente aptos à execução do serviço a ser contratado, o que reforça a compreensão no sentido de que a contratação direta mediante inexigibilidade de licitação se fará tão somente nas hipóteses em que efetivamente houver inviabilidade de competição.

Muito embora exista autorização constitucional para que a lei estabeleça hipóteses de contratação direta ("ressalvados os casos especificados na legislação"), tem-se por evidente que o poder de conformidade do legislador não pode ser exercido de forma ilimitada, sob pena de inconstitucionalidade por violação substancial ao artigo 37, inciso XXI, da CF/88 em razão do excesso de poder legislativo [6].

Nesse contexto, o artigo 74, inciso III, da Lei nº 14.133 deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, de modo a evitar que se subverta a regra esculpida em seu artigo 37, inciso XXI, assegurando-se ainda que a seleção da "proposta mais vantajosa para a Administração Pública" não se funde em critérios pessoais e subjetivos.

Vale destacar que se encontra pendente de julgamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 45 [7], na qual já se formou maioria para reconhecer a constitucionalidade dos "artigos 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993", nos quais se admite a contratação direta mediante inexigibilidade de licitação.

Nos termos do voto do relator, o pressuposto de constitucionalidade da contratação direta de serviços advocatícios não se limita à sua natureza predominantemente intelectual e/ou à expertise daquele a ser contratado, mas, sim, à adoção pela Lei nº 8.666 do critério da "singularidade" do objeto, o qual, deve ainda: a) ser estranho à rotina do órgão/entidade; b) envolver "complexidades que tornem necessária a peculiar expertise"; e ainda c) demonstrar a "impossibilidade ou relevante inconveniência de que a atribuição seja exercida pelos membros da advocacia pública".

A contratação direta de serviços jurídicos desprovidos de singularidade apresentaria melhor compatibilidade com a Constituição Federal mediante dispensa de licitação, tal como já previsto na Lei nº 8.666 e na Lei nº 14.133 (artigo 75, incisos II, III, XIII), sem prejuízo do advento de previsão específica para tais serviços  desde que o faça de forma não irrestrita.

 


[1] Por força o artigo 191 da Lei nº 14.133/2021, e até que se opere a revogação total da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 10.520/2002 e da Lei nº 12.462/2011, a Administração poderá adotar o regime estabelecido nestas ou naquela.

[2] Diferentemente da Inexigibilidade, a Dispensa de Licitação (Lei nº 8.666/93, artigo 24; Lei nº 14.133/21, artigo 75) consistente em hipóteses para as quais a competição é possível e viável, mas que a Administração se encontra legalmente desobrigada por razões de conveniência e de emergência, a exemplo em decorrência de situação emergencial, do valor a ser contratado, dentre outras situações expressamente previstas em Lei, tratando-se de rol taxativo.

[3] Não se pode confundir a "singularidade do profissional" (relacionada à notória especialidade do profissional  Lei nº 8.906/94, artigo 3º-A) com a "singularidade do objeto" (relacionada à complexidade do objeto e que demanda "primor técnico diferenciado, detido por pequena ou individualizada parcela de pessoas, as quais imprimem neles características diferenciadas e pessoais"  STF, ministro Dias Toffoli, Inq. 3.077/AL).

[4] Compreende-se por "ficção legal" (ou jurídica) a situação definida por lei que destoa da realidade fática, prática esta que, apesar de aceita, não pode ser empregada para alterar o alcance da Constituição Federal. A ficção difere da "presunção", a qual descreve uma situação possível no campo fático, mas que admite prova em sentido contrário.

[5] Em sentido semelhante, embora de forma contrária, tanto a Lei nº 8.666 (artigo 25, inciso II), como a Lei nº 14.133 (artigo 74, inciso III), friccionam a "viabilidade" de competição relativamente aos serviços de publicidade e divulgação, os quais igualmente consistentes em "serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual".

[6] "Importa assinalar, todavia, que o vício de excesso de poder legislativo, externado sob a forma de desvio de poder, há de ser aferido com base em critérios jurídicos. Não se trata de perquirir sobre a conveniência e oportunidade da lei, mas de precisar a congruência entre os fins constitucionalmente estabelecidos e o ato legislativo destinado a prossecução dessa finalidade" (Gilmar Ferreira Mendes, em Controle de Constitucionalidade, 1990, p. 42).

[7] O feito se encontra sobre a relatoria do ministro Roberto Barroso, encontrando-se em pauta de julgamento para o dia 04/05/2022.

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