Opinião

Prevaricação? Não é bem assim!

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

25 de fevereiro de 2022, 10h47

Tem sido constante a investida de alguns políticos contra o procurador-geral da República por promover o arquivamento de procedimentos investigatórios e não determinar a investigação em algumas representações que lhe são endereçadas para apuração de supostos crimes cometidos por integrantes do governo federal, notadamente pelo presidente da República.

Ocorre que o Ministério Público é o titular da ação penal pública e somente ele, por um de seus membros, pode promover a ação penal mediante o oferecimento de denúncia. Claro que, com exceção de uma hipótese, há dentro da própria instituição sistema de controle quanto à promoção de arquivamento. Não concordando o magistrado com o pleito, o procedimento será encaminhado ao procurador-geral de Justiça ou à Câmara de Coordenação e Revisão (a depender do ramo do MP), que poderá determinar novas diligências investigatórias, designar outro membro do Ministério Público para oferecer denúncia ou homologar a promoção de arquivamento por concordar com as razões apontadas na promoção.

A exceção é quando a promoção de arquivamento é oriunda do procurador-geral da República. Nessa hipótese, não há mecanismo de controle e as cortes superiores são obrigadas a homologar a promoção de arquivamento, por não ser possível obrigar o MP a oferecer denúncia por entender não haver elementos para tanto, como ausência de indícios suficientes de autoria ou prova da materialidade, ser o fato atípico (não constituir crime) ou outro fundamento legal qualquer.

Com efeito, há mecanismos próprios no sistema processual acerca da instauração, tramitação e conclusão de investigações.

Por isso, descabido qualquer tipo de pressão contra membros do Ministério Público para que ofereçam a ação penal ou promovam o arquivamento, tanto que esses agentes políticos possuem diversas garantias constitucionais para que coações indevidas desse tipo não surtam efeito.

Uma das imputações realizadas a membros do Ministério Público é o delito de prevaricação, que possui elementares específicas para sua ocorrência.

O delito de prevaricação vem definido no artigo 319 do Código Penal nos seguintes termos: "Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena. Detenção, de três meses a um ano, e multa".

A norma tutela a Administração Pública, mormente quanto à lisura e presteza dos atos funcionais de seus agentes. Por isso, há necessidade de que ocorra infração ao dever funcional do agente público com lesão aos princípios da legalidade ou da moralidade administrativa.

São três as condutas típicas:

1) Retardar ato de ofício indevidamente (omissão); 2) deixar de realizar ato de ofício indevidamente (omissão); 3) praticar ato de ofício contra disposição expressa de lei (ação).

Retardar tem o sentido de atrasar, adiar, procrastinar. Assim, o funcionário público não realiza o ato de ofício no prazo prescrito (se existente) ou em tempo hábil para que possa produzir seus efeitos.

Deixar de realizar é não praticar. Nesse caso, a intenção do funcionário público não é apenas protelar o ato de ofício, mas omitir-se e não o praticar.

Praticar é conduta comissiva e consiste na realização do ato de ofício.

Nas duas primeiras condutas típicas, é exigido o elemento normativo do tipo "indevidamente", que significa injustamente, incorretamente, não permitido pelo ordenamento jurídico. É o caso do cartorário que, por não gostar do requerente de uma certidão, não a expede no prazo devido ou do policial que, por piedade, não prende em flagrante alguém que acabou de cometer um crime.

Na última conduta, também há o elemento normativo do tipo "contra disposição expressa de lei". Como tal, deve ser entendido o dispositivo que não oferece dúvida de interpretação. Exige-se, portanto, que o ato de ofício afronte a lei, não havendo esse delito se houver infringência de outra espécie de norma de categoria inferior, como portaria, regulamento etc. É o caso do delegado de polícia que, por ser amigo do marido que agrediu a esposa e lhe causou lesões corporais graves, arquiva o inquérito policial sem que haja requerimento do Ministério Público e decisão do juiz de Direito.

Em qualquer das condutas típicas é exigido o elemento subjetivo do tipo: "Para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". Inexistindo um desses elementos alternativos, o fato será atípico ou poderá constituir outro delito. Assim, a negligência, imperícia ou imprudência exclui o crime, haja vista a inexistência do dolo.

Ato de ofício é aquele ligado à atividade funcional do agente. Dessa forma, se o ato foge à atribuição do funcionário público, não haverá o delito por atipicidade da conduta, uma vez que o crime se caracteriza pela infidelidade ao dever funcional.

Interesse pessoal é a vantagem que o funcionário público pretende obter, que pode ser econômica ou moral. Havendo acordo entre o funcionário público e o particular para o recebimento de vantagem indevida, o crime será o de corrupção passiva (CP, artigo 317), e não prevaricação. Se a vantagem indevida foi oferecida ou prometida pelo particular para determinar ao funcionário público a prática, a omissão ou o retardamento do ato de ofício terá aquele praticado o crime de corrupção ativa (CP, artigo 333).

Sentimento pessoal está ligado à afetividade do sujeito ativo em relação às pessoas ou aos fatos a que se refere a ação ou omissão, como a amizade, o ódio, a piedade etc. É indiferente para a configuração do delito eventual nobreza dos sentimentos e altruísmo dos motivos determinantes, que poderão, se o caso, serem considerados na fixação da pena.

Noronha resume muito bem e em poucas palavras o significado do delito: "Prevaricação é infidelidade ao dever de ofício, à função exercida. É o não cumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesse ou sentimentos próprios" ("Direito Penal", v. IV, p. 253).

O delito em apreço possui alguma semelhança com a corrupção passiva privilegiada (artigo 317, §2º, do CP), mas com ela não se confunde. Naquele delito, o funcionário público transige com seu ato funcional em face de pedido ou influência de terceiro. Não o faz espontaneamente, mas por fatores externos é levado a praticar, deixar de praticar ou retardar ato de ofício, com violação de seu dever funcional. Na prevaricação, não há pedido ou influência de terceiro. O sujeito realiza a conduta por interesse ou sentimento próprios e sem o pedido ou intervenção de terceiro.

A prevaricação é crime eminentemente doloso e pressupõe, assim, a vontade livre e consciente de realizar a conduta típica. Havendo mera imprudência ou negligência, ou mesmo imperícia, o fato é atípico penalmente.

Ademais, é elemento subjetivo do tipo que o agente público, que tem a obrigação de agir, omita-se ou retarde o ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, de forma livre e consciente, isto é, dolosamente. Ou que o ato de ofício seja praticado dolosamente contra disposição expressa de lei, que é um elemento normativo do tipo.

Por outro lado, havendo elementos de prova concretos, que ao menos ensejem fundadas suspeitas de ilegalidade ou irregularidade, que não foram devidamente apuradas por omissão dolosa do agente público, que tinha o dever jurídico de agir em razão de suas funções, movido por interesse ou sentimento pessoal, daí, sim, terá ocorrido o delito de prevaricação.

Enfim, estando as promoções de arquivamento e os indeferimentos das representações para a realização de investigações devidamente fundamentadas, não há de se falar em prevaricação, podendo, pelo contrário, configurar crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do CP) ou calúnia (artigo 138 do CP), a depender da hipótese, por aquele que dolosamente requereu a instauração de investigação criminal pela prática de infração penal contra alguém que o sabe inocente.

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