Controvérsias Jurídicas

São Paulo: o trágico dilema das enchentes

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

24 de fevereiro de 2022, 8h00

A cidade de São Paulo foi mais uma vez castigada com fortes chuvas no início deste mês. Todo ano a natureza volta a retribuir as agressões impostas ao meio ambiente, da forma mais violenta possível. É cenário cotidiano do paulistano ver ruas alagadas, postes caídos com a fiação rompida, cortes no fornecimento de energia e degradação do asfalto em função do acúmulo de água. A questão não é de agora e remete ao modelo de formação urbana do século 19. Em que pese a totalidade da população ser afetada, são os mais carentes os que mais sofrem. A população em situação de vulnerabilidade, moradora dos bairros mais afastados do centro, enfrenta cotidianamente as consequências da ausência de políticas públicas que a proteja da devastação causada pelas enchentes.

Pode parecer estranho que a enorme metrópole paulista começou como a pequena Vila de São Paulo de Piratininga, nascida do entroncamento dos Rios Anhangabaú e Piratininga, hoje Tamanduateí. O verbete "piratininga" remonta à língua tupi, que o chamava de "rio do peixe seco". O nome relacionava-se ao fato de que nos períodos de cheia o rio transbordava e ocupava as laterais. Quando a água abaixava e voltava ao seu curso normal, muitos peixes ficavam presos nas poças das áreas alagadas e morriam, atraindo as formigas e, consequentemente, os tamanduás. Assim, o "rio do peixe seco" passou a ser o "rio do tamanduá".

Durante aproximadamente 300 anos, a existência da Vila de São Paulo se deveu exclusivamente à confluência dos dois rios, responsáveis por proporcionar a circulação fluvial de pequenas embarcações até o Rio Tietê e, posteriormente, ao Rio Paraná. Nos dias atuais, os mais de 15 milhões de habitantes da região metropolitana mal notam sua existência. O Rio Tamanduateí, que antes beirava a Rua 25 de março e ostentava um porto em suas margens (Rua Ladeira Porto Geral), transformou-se em um estreito canal receptáculo de esgoto, que passa ao lado do Mercado Municipal.

Ao lado dos rios se encontrava o Mercado dos Caipiras, local onde pescadores e produtores rurais comercializavam víveres, legumes e hortaliças. Fator preponderante para atração de investimentos para a pequena vila, o café advindo do interior ganhava cada vez mais importância para a economia nacional, sendo necessária a construção de uma ligação férrea que escoasse a produção para o porto de Santos, ensejando, em 1867, a construção da São Paulo Railway. A ferrovia se utilizava do vale do Rio Tamanduateí como rota, colocando a cidade como o ponto de encontro com as ferrovias Sorocabana e Central do Brasil.

A ligação com o porto de Santos, além de diminuir a distância entre o planalto paulista e o litoral, substituiu o forte mercado peixeiro local pelos produtos do mar que subiam a serra. Dessa maneira, a confluência dos Rios Anhangabaú e Tamanduateí passou a ser um obstáculo para sua expansão. A construção do Viaduto do Chá sobre o Vale do Anhangabaú, por exemplo, serviu como marco inaugural da superação física dos rios que impediam comerciantes e habitantes de buscar novas terras parar plantar e morar.

O Viaduto do Chá foi responsável pela conexão entre o centro da cidade e os bairros nascentes à oeste, que serviam de abrigo para a elite cafeeira vinda do interior (bairros de Higienópolis e Campos Elíseos). Para garantir o sucesso do empreendimento imobiliário, os loteadores e construtores fundaram, em 1878, o primeiro sistema de abastecimento de água de São Paulo, a Cia de Águas e Esgoto Cantareira.

O aumento da população da pequena vila ocasionou maior consumo de água e resultou no aumento do volume do esgoto. Os dejetos passaram a ser despejados nas várzeas dos rios que cruzavam a cidade, causando grave problema sanitário em função do mato alto e dos mosquitos. Utilizando-se da política sanitária como fundamento para arrecadação de impostos, o então presidente da província decidiu aterrar as várzeas dos rios, disponibilizando-as para futuro loteamento. Assim, o esgoto a céu aberto passou a dar lugar ao córrego canalizado que levaria a sujeira para longe dos olhos da elite.

Durante a década de 20, as áreas próximas aos rios que dividiam a cidade foram transformadas em parques, Anhangabaú e D. Pedro II; e os limites naturais que dificultavam o avanço da cidade foram suplantados. Porém, o crescimento vertiginoso causado pelo mercado do café em pouco tempo colocou as autoridades municipais diante do mesmo dilema, desta vez causado pelo entroncamento dos Rios Tietê e Pinheiros.

O fato de as várzeas dos rios ficarem alagadiças em apenas um período do ano despertou forte interesse imobiliário. As populações mais pobres, que sofriam com a falta de estrutura das "baixadas", fizeram com que a Administração Pública acelerasse o debate acerca da canalização dos dois rios. O modelo adotado para reurbanizar a cidade foi o idealizado por Prestes Maia, consistente em um plano radial concêntrico de avenidas. Diferentemente das cidades europeias que serviram de paradigma, São Paulo não possuía um plano concêntrico de ferrovias e hidrovias que auxiliasse no deslocamento da população, fazendo do automóvel o único meio de locomoção dos moradores.

Nomeado prefeito, Prestes Maia implementou seu plano de reurbanização com a construção de avenidas que tomaram o lugar dos pequenos riachos da cidade. Impróprias para construções, tais áreas, úmidas e alagadas, eram de baixa procura para moradia, sendo as regiões de menor densidade populacional da época. Mais uma vez a especulação imobiliária viu uma oportunidade de aumentar seus negócios, adquirindo grandes porções de terra por baixo valor e grande perspectiva de valorização, dada a sua proximidade com o centro.

O plano de avenidas idealizado por Prestes Maia foi fundamental para a sedimentação da cultura urbanística de substituição de rios por vias, transformando o espaço das águas no espaço dos carros e do asfalto. Canalizados ou escondidos, os Rios Anhangabaú, Tamanduateí, Tietê e Pinheiros se mostram vivos durante os períodos de chuva, tomando o espaço necessário para dar vazão ao volume de água. Em tese, a natureza retoma o que sempre foi seu, o espaço dos leitos dos rios, fazendo das enchentes o resultado das políticas urbanísticas de séculos.

Tentando disciplinar o uso e ocupação do solo, a Lei nº 10. 257/01 (Estatuto das Cidades) estabeleceu "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental" (artigo 1º, parágrafo único). A lei se fundamenta na garantia do direito a cidades sustentáveis, no planejamento e desenvolvimento das cidades de modo a evitar distorções do crescimento urbano e efeitos negativos sobre o meio ambiente, e no impedimento de instalação de empreendimentos ou atividades que funcionem como centros geradores de tráfego, impactando na infraestrutura do local.

Preceitua o artigo 2º, XII, do Estatuto das Cidades que a política pública urbana deverá "promover a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico". Para isso, é necessário que as empresas incorporadoras e as autoridades públicas verifiquem previamente os impactos da deterioração das áreas destinadas ao empreendimento e a poluição e degradação ambiental a serem geradas. Como instrumentos de cumprimento da lei, o poder público poderá traçar planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; e planejamento municipal, especialmente no que tange ao parcelamento do uso e ocupação do solo e zoneamento ambiental (artigo 4º, III, "b" e "c", do Estatuto das Cidades).

O Estatuto das Cidades prevê a obrigatoriedade do estudo prévio de impacto de vizinhança, determinando que a lei municipal "definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construções, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal" (artigo 36). O estudo deverá levar em conta o adensamento populacional causado; o uso e ocupação do solo; e o impacto da construção ou atividade na paisagem urbana e nos patrimônios natural e cultural (artigo 37, I, III e VII), não substituindo a elaboração e aprovação de estudo prévio de impacto ambiental (EIA), requeridas na legislação ambiental (artigo 38).

A Lei nº 12.608/12 acrescentou ao Estatuto da Cidade dispositivo próprio referente aos municípios com áreas suscetíveis a ocorrências de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos (artigo 42-A). Em cidades como São Paulo, o plano diretor deverá "mapear as áreas com risco de deslizamento e enchentes, planejando preventivamente a realocação da população residente nas áreas de risco". De igual forma, deverá "promover a drenagem urbana necessária para a prevenção e mitigação dos danos decorrentes de desastres e identificar as áreas verdes municipais com o objetivo de reduzir a impermeabilização da cidade" (artigo 42-A, II, III, IV e VI).

A experiência trazida ao longo do século 20 mostrou aos paulistanos que o crescimento da cidade para desenvolver a economia, se feito de forma desenfreada, não é sustentável a longo prazo. A ocupação desordenada do solo e a descaracterização natural do ambiente geram aborrecimentos à população e custos ao erário público. Parte dos recursos despendidos em obras estruturais dos dias atuais, que poderia ser utilizada em saúde e educação, serve para resolver a sanha desmedida de crescimento de séculos atrás. Atrelar o crescimento econômico ao bom uso do solo é o modelo mais eficaz de boa utilização dos recursos públicos, adequando o modus vivendi da sociedade às características naturais do local.

O discurso político demagógico, que estimula ocupações em áreas de preservação ambiental ou de risco, bem como a falta de controle sobre a expansão imobiliária promovida pelo crime organizado, vendendo lotes irregulares por meio de escrituras falsas, traz como consequência imediata tragédias humanitárias como a de Petrópolis e a degradação do meio ambiente. A destruição impune do ecossistema cobra o pesado preço da trágica interrupção prematura de vidas humanas.

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