Território Aduaneiro

Considerações aduaneiras sobre o artigo mais descumprido do CTN

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

22 de fevereiro de 2022, 8h00

Esta terça-feira, 22/02/2022, é um dia muito especial. Você pode ler a data da esquerda para a direita, ou vice-versa, e o resultado será o mesmo! Palavras ou frases com essa característica são denominadas palíndromos (quer um exemplo de palíndromo aduaneiro? Você já deve ter ouvido falar do "radar"). Na matemática, essa rara simetria numérica é também conhecida como capicua, que remete à cabeça e à cauda.

Spacca
O doutor Aziz S. Inan, professor de engenharia elétrica na Universidade de Portland, que dedica estudos e artigos aos palíndromos há mais de uma década, destacou que, no formato dia-mês-ano, o aniversário de George Washington (1732-1799), em 22/02/2022, será um palíndromo de oito dígitos e, daqui a 200 anos, expurgando o "zero" referente ao mês, 22/2/2222 será um palíndromo de sete dígitos em qualquer sistema (dia-mês-ano ou mês-dia-ano) [1].

Há algo transcendental que cerca os palíndromos, especialmente no que se refere a datas, a ponto de cativar estudiosos, e alimentar temores, expectativas ou crenças. Entretanto, o palíndromo ou número capicua que escolhemos para analisar nesta semana não é uma data, mas um artigo da codificação tributária brasileira, e que tem relação (ao menos parcial) com matéria aduaneira.

Trata-se do artigo 212 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966  CTN), que estabelece: "Os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão, por decreto, dentro de 90 (noventa) dias da entrada em vigor desta Lei, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano".

Não há dúvidas de que o "artigo-palíndromo" 212 é o artigo mais descumprido do CTN. Ao contrário de outros descumprimentos normativos, sujeitos a intensos debates interpretativos e a eventuais dissidências jurisprudenciais, aqui a questão é matemática (como os palíndromos!).

Basta multiplicarmos, de 1967 até 2022, o número de anos em que deixaram de ser publicadas tais consolidações anuais, pelo número de tributos, e pelo número de "poderes executivos", no âmbito da União e dos estados (e do Distrito Federal), e dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros. Eis a quantidade de descumprimentos. É desafiante encontrar norma mais descumprida.

Nas palavras de Aliomar Baleeiro (conhecido por suas obras tributárias e por ter sido ministro do STF, mas que poucos sabem que ter sido professor de Regime Aduaneiro Comparado e filho de despachante aduaneiro), o artigo 212 do CTN é um "sino sem badalo" [2].

Já tivemos a oportunidade de analisar o referido artigo 212 da codificação tributária em obra coletiva sobre o CTN, disponibilizada pela Ordem dos Advogados do Brasil-Seccional do Paraná [3], destacando que o texto da norma, de caráter democrático, busca proporcionar o livre acesso à legislação tributária, o que facilita o cumprimento voluntário das obrigações tributárias, principalmente diante da alta taxa de fertilidade normativa nessa matéria.

Hoje, por exemplo, quando alguém consulta o Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (Decreto 7.212/2010  conhecido como Ripi), corre baixo risco de encontrar uma norma desatualizada, porque o Decreto 10.668/2021, além de alterar o texto de aproximadamente cem artigos do RIPI, no último deles aclarou: "Este Regulamento consolida a legislação referente ao IPI publicada até 31 de dezembro de 2019".

Essa é a segurança que busca quem aplica a legislação, dentro da filosofia do artigo 212 do CTN. No caso do IPI, bastaria ao aplicador da norma a leitura do RIPI atualizado, e a verificação da compatibilidade com as bases legais invocadas nos artigos (que poderiam, eventualmente, ter sido alteradas após 31/12/2019). O risco de desatualização, nesse caso, existe, mas, repita-se, é baixo (mas acontece, por exemplo, no artigo 151 do Ripi, que trata de redução de alíquotas prevista na Lei 11.484/2007, até 22/1/2022, data que acabou sendo prorrogada para 31/12/2026, por lei posterior à consolidação — Lei 14.302/2022).

No entanto, o simples fato de a atualização da legislação do IPI até 31/12/2019 ter sido publicada apenas em 9/4/2021 já poderia sugerir a inviabilidade das consolidações anuais previstas no artigo 212 do CTN, visto que seu trâmite no Poder Executivo aparentemente demora mais de um ano. A questão é complexa, mas crê-se que o trâmite seria mais célere e reduzido se as atualizações fossem efetivamente anuais, porque as normas alteradoras, embora mais frequentes, teriam menos artigos e o rito seria constante e bem conhecido [4].

De modo semelhante, o Regulamento do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (conhecido como RIR), publicado no Decreto 9.580, em 22/11/2018, consolidou a legislação sobre tal tributo, basicamente, de 1999 (data do RIR anterior) até 31/12/2016.

Outros regulamentos referentes a tributos federais, como o do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF), veiculado pelo Decreto 6.306/2007, e o do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, presente no Decreto 4.382/2002, sequer informam em seu texto até que data estão atualizados. Essa é também a situação do regulamento aduaneiro (Decreto 6.759/2009).

Faça-se, no entanto, uma pausa para esclarecer que o regulamento aduaneiro não é um simples "regulamento dos tributos aduaneiros". Basta verificar a estrutura do Decreto 6.759/2009 para que se note que apenas dois de seus oito desmembramentos se referem especificamente a tributos: o Livro II ("Dos impostos de importação e de exportação"  artigos 69 a 236) e o Livro III ("Dos demais impostos, e das taxas e contribuições, devidos na importação"  artigos 237 a 306).

Portanto, na área aduaneira, o artigo 212 do CTN é, em regra, descumprido anualmente apenas em relação a essa matéria (tributos incidentes no comércio exterior), que reside na área de intersecção entre o Direito Tributário e o Direito Aduaneiro.

O fundamento legal do regulamento aduaneiro, como um sistema normativo afeto ao controle das operações de comércio exterior, e não meramente à questão tributária, reside na norma que já chamamos nesta coluna de "lei aduaneira" [5]: o Decreto-Lei 37/1966, mais especificamente em seu artigo 176: "O Poder Executivo regulamentará as disposições deste Decreto-Lei dentro do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da data de sua publicação".

Reconheça-se, no entanto, que o primeiro regulamento aduaneiro pós-Decreto-Lei 37/1966 tardou mais que os 180 dias previstos na lei, e foi aprovado pelo Decreto 91.030/1985. Passaram-se 17 anos até o regulamento seguinte (Decreto 4.543/2002) e outros sete até o RA atual (Decreto 6.759/2009), que passou por duas atualizações gerais, promovidas pelos Decretos 7.213/2010 e 8.010/2013, cada uma delas com alteração de quase cem artigos.

De lá para cá, as alterações efetuadas no RA (verbi gratia, pelos Decretos 8.187/2014, 8.266/2014, 9.128/2017, 9.283/2018, 9.537/2018 e 10.550/2020) foram pontuais, sem preocupação atualizadora/consolidadora, de modo que o RA já atinge mais de uma década sem atualizações em relação a suas bases legais. No que se refere à parte relativa aos tributos sobre o comércio exterior (Livros II e III), que pode também ter amparo no artigo 212 do CTN, hoje o texto do RA já não consolida os tributos federais incidentes sobre o comércio exterior, pois não traz disciplina do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM)  e nem sobre a Taxa de Utilização do Sistema Mercante, ambos previstos na Lei 10.893/2004 [6].

Na parte não tributária, há também muitas questões a atualizar no RA, seja em função de alterações expressas de suas bases legais (verbi gratia, algumas multas e sanções previstas na Lei 10.833/2003 e alteradas pela Lei 13.043/2014) ou mesmo em decorrência de tratados internacionais como a Convenção de Quioto Revisada e o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (que, aliás, completa cinco anos de vigência nesta terça!), além de temas novos a compilar (verbi gratia, os referentes a origem não preferencial, constantes na Lei 12.546/2011, com as modificações efetuadas pela Lei 14.195/2021) [7].

A consolidação das normas aduaneiras (assim como de qualquer outra área do Direito) é importante e necessária, com fundamento que se alastra por toda a hierarquia normativa brasileira, desde o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal, que atribui à lei complementar a regulação da "consolidação das leis".

A Lei Complementar 95/1998 tratou do tema da consolidação, não só das leis, mas também de outros atos normativos, em seus artigos 13 a 17, e a temática está atualmente disciplinada no Decreto 9.191/2017 (em relação a leis e decretos) e no Decreto 10.139/2019 (para atos de hierarquia inferior a decreto).

Esse processo de consolidação temática de normas infralegais, seja em regulamentos ou em normas de hierarquia inferior, é a mais pura expressão do que buscaram o legislador tributário, com o artigo 212 do CTN, e o legislador aduaneiro, no artigo 176 do Decreto-Lei 37/1966.

Que os bons ventos da consolidação normativa, e do portal transcendental aberto nesta terça, em 22/02/2022, façam badalar não só o sino do artigo-palíndromo do CTN, mas contribuam também para a atualização periódica e constante do regulamento aduaneiro brasileiro, permitindo que os intervenientes em operações de comércio exterior tenham acesso fácil e completo às normas aduaneiras vigentes. Não temos tempo para esperar até a repetição do fenômeno da data capicua, em 21/12/2112.

 


[1] Você pode encontrar várias curiosas publicações do Dr. A. S. INAN, como a aqui mencionada (conjunta com M. Mayntz: "Palindrome Dates in 2022: February wins". Farmers’'Almanac, Lewiston, Maine, January 18, 2022), em: https://faculty.up.edu/ainan/publications.html.

[2] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 10. ed. rev. e atu. por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 638.

[3] TREVISAN, Rosaldo. Artigo 212. In: GRILLO, Fabio Artigas; SILVA, Roque Sérgio D'Andrea Ribeiro da Silva (coord). Código Tributário Nacional Anotado. OAB/PR, Curitiba, p. 695-698. O texto da obra está disponível em: http://www2.oabpr.org.br/downloads/ctn_v2.pdf.

[4] Em extrapolação matemática grotesca, vejamos o caso do RIPI, que é uma norma de 2010, e que, embora já houvesse recebido alterações pontuais (pelo Decreto 7.990/2013), só foi atualizada e consolidada em 2019. Aparentemente, a centena de artigos alterados em 2021 reflete a consolidação de uma década de legislação. Se esse trabalho fosse feito anualmente, seriam, grosso modo, cerca de dez artigos por ano a atualizar/consolidar, em média, o que provavelmente reduziria o tempo de trâmite da norma dentro do Poder Executivo, ainda mais se houver fluxo específico para as normas que se referem a simples atualização, em função de alteração de base legal.

[6] Essas disciplinas estão em um decreto autônomo (Decreto 8.257/2014), e na Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal do Brasil (IN RFB) 1.471/2014, e alterações posteriores.

[7] A quem desejar conhecer a estrutura básica do Regulamento Aduaneiro brasileiro (Decreto 6.759/2009), e em que temas são demandadas as principais atualizações, indico a série de vídeos que gravei sobre o tema, disponíveis em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLcUMzWw6mF2BabeU2UsGw0Zuvd3eChy5v.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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