Opinião

O dilema da regulação no campo das criptomoedas

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21 de fevereiro de 2022, 9h11

Desde logo, o título do presente ensaio poderia parecer contraditório. E isso no mais fechado e estrito sentido da palavra. Explica-se: o mercado das criptomoedas deveria se mostrar, a princípio, desregulado e sem controle estatal. Por outro lado, a regulação é exatamente uma série de freios e contrapesos postos pelo Estado para gerir ou minimizar problemas em campos sensíveis.

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Jairo Saddi, um dos mais conceituados estudiosos e profissionais do mercado do Direito Bancário, doutor em Direito Econômico pela USP e pós-doutor por Oxford, já escreveu que "pode-se afirmar que a regulação é, antes de tudo, uma maneira de tentar melhorar os resultados do mercado, no pressuposto de que ele não é perfeito, em razão das falhas que nele existem. Embora existam diferentes justificativas para a intervenção do Estado, de modo amplo, e sob as mais diversas terminologias, a regulação se dá no intuito de sanar as falas do mercado" [1]. Seria isso, contudo, possível em sede de criptomoedas?

Antes de mais nada, faz-se necessária uma explicação histórica. As criptomoedas têm origem em grupos cypherpunks dos anos 2000, que visualizavam situações alternativas já em jogos eletrônicos em que se utilizavam de moedas próprias. Mais tarde, quando da crise de 2007/2008 [2], foi sentida uma profunda revolta com o estado de coisas que o establishment de então acabou por propiciar. Surge, então, um dos momentos mais revolucionários, e com diversas lendas urbanas, que acabaram por turbar aquele episódio: a criação do protocolo bitcoin por Satoshi Nakamoto [3].

Muito se discute, ainda hoje, sobre a natureza jurídica das criptomoedas (ou criptoativos). Teriam elas, intrinsecamente, o mesmo perfil das moedas em si, vale dizer, a ideia de meio de troca, unidade de conta e reserva de valor? Por certo essa é uma equação que varia — e muito — com o passar do tempo. No entanto, a dúvida se seria possível sua regulação parece ser ainda maior.

Se o mundo cripto acabasse por se limitar ao que foi a ele inicialmente imaginado, vale dizer, um campo de atuação paralelo ao sistema tradicional, talvez todo esse estado de coisas fosse e se mostrasse absolutamente supérfluo. Ocorre que ele ganhou uma dimensão de horizonte fantástico, mostrando-se como uma nova equação no cenário econômico global. Estão a se dar investimentos em criptomoedas, modalidades diversificadas de compras, fundos específicos, empréstimos, sistemas vários de pagamentos, entre tantas inovações. Com isso, rapidamente os governos nacionais, bem como o sistema bancário como um todo, acabaram por se mostrar com atenção ao admirável mundo novo que estava a se descortinar. E, com isso, surge a preocupação em regulação [4].

De forma proposital, aqui nem mesmo será tratado, ou abordado, o tema tão recorrente da alegada falta de lastro das criptomoedas, uma vez que isso deixou de ser questão relevante desde Bretton Woods. Ainda assim, o dilema da regulação é, sintomaticamente, interessante. E isso quer por um inicial preconceito havido em relação às criptomoedas, quer pelo espaço econômico que hoje elas estão a desempenhar.

Em um mundo já distante no tempo, onde se disse que vigorava a lei do velho oeste em termos de criptomoedas, teve-se que elas foram, sim, utilizadas para práticas criminosas várias, como foi o conhecido caso Silkroad, ou o mercado eletrônico das drogas [5]. Aquele momento, apesar de superado, e ainda que exista utilização dessa modalidade virtual para prática de recebimento de valores oriundos de atuar criminoso, gera efeitos significativos no público em geral. E, ainda, deitou sombra em toda a historiografia das criptomoedas. Hoje, não raro, se imagina a mesma por vezes como instrumento de crime. Mas é de se lembrar que ela é tão viciada quanto os pacotes de dinheiro vivo utilizados por traficantes de drogas.

A partir de uma segunda geração da utilização de criptomoedas — percebida quando passaram a ser usadas em fundos de investimentos, em empréstimos e em meios de pagamento variados —, o cenário mudou. Agora, o mercado tradicional passa a ter interesse nas criptomoedas e, necessariamente em sua regulação. Aqui, uma primeira observação. Ao contrário do que se viu na IN 1.888/2019, a única possibilidade de regulação se verifica em sede empresarial, em especial no que diz respeito às exchanges e empresas destinadas à lida ou comercialização das mesmas.

O mesmo Jairo Saddi recorda que "não há regulamentação certa ou errada; há regra boa ou má. Boa é aquela que reduz custos de transação e contribui para o desenvolvimento econômico. Má é, claro, exatamente o contrário: aumenta custos de observância e transação sem gerar qualquer benefício" [6]. Entretanto, a lógica legal deve, de alguma forma, ombrear-se a uma lógica mercadológica. Em termos de mercados com controle gerencial estatal, isso se mostra mais fácil, até mesmo com arreios penais. Em um ambiente absolutamente aberto, ao revés, isso se revela bastante difícil. Continua Saddi, dando mostra de seu tirocínio ao analisar um dos mais avançados projetos de lei em discussão sobre o tema no Congresso Nacional (PL 2.303/2015): "Em qualquer dos temas ínsitos a criptomoedas, emissão, custódia, compensação, distribuição, coleta, intermediação, mineração, entre outros, a natureza deles é a descentralização. O conceito de blockchain é de um ledger aberto. As plataformas são abertas e não há autoridade central. Aqui, não se trata de gostar ou não de centralizar e de controlar aspectos de identificação dos detentores, mas de, efetivamente, conseguir, tecnicamente, tal feito. Se toda e qualquer atividade tiver que passar pelo Banco Central ou pela Comissão de Valores Mobiliários, a pergunta correta não é se vamos ter mercado, mas se os reguladores vão conseguir controlá-lo. O projeto de lei, assim, presta um serviço à burocratização crescente que assola o Brasil, sem contribuir em nada para o seu desenvolvimento. Trata-se, indiscutivelmente, de uma regulação má" [7].

Desde um ponto de vista penal, no qual as noções de regulação acabam, por vezes, atuando em uma distinta geração de normas penais em branco [8], a completar o escopo típico de determinadas previsões abertas, isso se mostra ainda mais problemático. Explica-se: em determinadas situações, é a partir da regulação que determinados mercados passam a se submeter a regramentos econômicos e com reflexos penais, para o bem ou para o mal. Dessa forma, em alguns casos, uma regulação má pode ser, também, um decreto de eventual criminalização errática ou ineficaz.

Uma eventual regulação no campo de criptomoedas somente se mostraria com alguma serventia, desde uma perspectiva de auxílio político-criminal, caso viesse a ser estabelecida dentro de padrões de gargalo em que um sistema criado para se mostrar alternativo e aberto viesse ao encontro do sistema financeiro tradicional, notadamente em âmbito institucional, jamais pessoal. Isso se daria, fundamentalmente, na inteiração de ambos, vale dizer, em seu momento criacional de criptomoedas (mineração), de venda a varejo por exchanges, de utilização no mercado financeiro (fundos, empréstimos, pagamentos) ou mesmo de troca por moedas soberanas. Não por outra razão, em alguma perspectiva, já se nota uma aproximação de alguns entes do mundo cripto com o próprio sistema financeiro, o que daria, sim, vazão a essa linha de pensar. E, dessa forma, também acaba por se verificar um controle à semelhança dos controles estabelecidos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 9.613/1998, ao que diz respeito à lavagem de dinheiro [9]. Para além disso, talvez, se estejam tecendo apenas conjecturas. Ou, unicamente, estabelecendo uma má regulação, em especial, sob lentes penais.

 


[1] SADDI, Jairo. Crise e regulação bancária. Navegando mares revoltos. São Paulo: Textonovo, 2001, p. 46 e ss.

[2] Cf. VIGNA, Paul; CASEY, Michael J. Cryptocurrency. How Bitcoin and Digital Money are Challenging the Global Economic Order. London: Bodley, 2015, p. 41 e ss.

[3] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; CAMARGO, Beatriz Correa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 174, p. 145 e ss, 2021.

[5] Cf. KELLY, Brian. The Bitcoin Big Bang. How Alternative Currencies Are About to Chane the World. New Jersey: Wiley, 2015, p. 140 e ss.

[5] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin e suas fronteiras penais: em busca do marco penal das criptomoedas. Belo Horizonte: D'Plácido, 2018, p. 112 e ss.

[6] SADDI, Jairo. Regulação dos criptoativos. Disponível na internet: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/regulacao-dos-criptoativos.ghtml. Acesso em 14/1/2022.

[7] SADDI, Jairo. Regulação…Op. cit.. p. 1.

[8] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crise econômica e reflexos penais: leis penais em branco, compliance fiscal e regularização de ativos. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Repatriação e crime. Aspectos do binômio crise econômica e direito penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 101.

[9] Em termos genéricos e preventivos, BERMEJO, Mateo G. Prevención y castigo del banqueo de capitales. Un análisis jurídico-económico. Madrid: Marcial Pons, 2015, p. 129 e ss.

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