Direito Civil Atual

Ideias estúpidas podem ser submetidas a escrutínio? Impressões sobre o caso Monark

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21 de fevereiro de 2022, 11h41

A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens.

(Miguel de Cervantes)

A célebre máxima "eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo" contém fake news quanto à sua autoria. Atribuída a Voltaire  pseudônimo de François-Marie Arouet , ela é da lavra de sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall [1]. A circunstância de o adágio ter sido erroneamente imputado ao biografado e não à biógrafa  a própria Hall escrevia sob o pseudônimo de S.G. Tallentyre  talvez seja sintomática da dificuldade de se defender fidedignamente o seu conteúdo.

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É mais palatável a assimilação de uma ideia supostamente engendrada por um ícone do Iluminismo, porquanto ela agrega ao "argumento de autoridade" a "autoridade do argumento". A defesa honesta da liberdade de expressão coloca o seu defensor, em regra, numa posição ontologicamente desconfortável, na medida em que ele pode ser acusado de cumplicidade ou associação a um discurso obtuso, pelo simples fato de resguardar o direito à manifestação.

Entretanto, ninguém precisa invocar a "liberdade de expressão" para emitir opiniões inócuas ou truísmos. Consoante asserção de Wilde, "todo efeito que produzimos nos proporciona um inimigo. Quem quer ser popular, tem que ser uma mediocridade" [2].  Bem disse Orwell que "a liberdade, se é que significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que não querem ouvir" [3]. Assim, é justamente na possibilidade de defesa de teses mais grotescas que se procede ao teste epistêmico dos limites ao exercício de tal direito.

Recentemente, o youtuber Bruno Aiub (Monark) defendeu em seu canal o direito à existência legal de um partido nazista. A celeuma concerne em saber se essa proposição  esdrúxula, a não mais poder  encontra amparo na liberdade de discurso.

 Pois bem: o mundo civilizado, de um modo geral, proscreve  em maior ou menor grau  discursos de ódio que preguem o extermínio de determinada etnia.

Os Estados Unidos cultuam a liberdade de expressão sob um paradigma alargado de interpretação da 1ª Emenda, segundo a qual "congress shall make no law […] abridging the freedom of speech, or of the press". Em Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969), exempli gratia, a Suprema Corte deparou-se com o caso de um líder da Ku Klux Klan que havia proferido, num comício, expressões injuriosas contra negros e judeus. Ao sustentar que o discurso estava protegido pela constituição, afirmou-se que um estado não pode proibir uma fala em defesa da violação da lei, a menos que ela fosse dirigida a incitar um ato ilegal iminente ("directed to inciting or producing imminent lawless action"). Já no século XXI, em Virginia v. Black, 538 US 343 (2003), entendeu-se que queimar uma cruz era ato entrelaçado à história da Ku Klux Klan, que impôs um reinado de terror em todo o Sul, ameaçando e assassinando negros. Assim, era usado como ferramenta de intimidação e ameaça, e, portanto, poderia ser considerado um "símbolo de ódio" não resguardado pela 1ª Emenda.

Por seu turno, a Europa é bem mais rigorosa quanto ao exercício de tal direito. A Corte Europeia de Direitos Humanos, apesar de afirmar que "la liberté d'expression constitue l’un des fondements essentiels [d’une] société [démocratique]" (Handyside c. Royaume-Uni), adverte que "on peut juger nécessaire, dans les sociétés démocratiques, de sanctionner, voire de prévenir, toutes les formes d'expression qui propagent, incitent à, promeuvent ou justifient la haine fondée sur l'intolérance" (Erbakan c. Turquie). Suas decisões baseiam-se em diretrizes da Convention européenne des droits de l'homme, quais sejam as de excluir a proteção de discursos 1) quando houver propósito odioso e que constitua negação aos valores da própria convenção (artigo 17) e 2) ainda que não odiosos, aprioristicamente, possam destruir os valores fundamentais sobre os quais repousa a convenção (artigo 10.2).

A partir desses vetores axiológicos, há decisões a proscrever a veiculação de: a) ódio racial (Glimmerveen et Haqenbeek c. Pays-Bas); b) ameaça à ordem democrática (Nachtmann c. Autriche); c) negacionismo e revisionismo (Pastörs c. Allemagne); d) apologia a crimes de guerra (Lehideux et Isorni c. France) e, e) proibição à discriminação e ódio racial (Jersild c. Danemark), entre outras interdições.

O Brasil inclina-se mais na direção do Velho Continente. A legislação pátria capitula como crime induzir ou incitar a discriminação racial ou étnica, bem como propagar símbolos que utilizem a suástica para fins de divulgação do nazismo (Lei nº 7.716/1988, 20, §1º). Ao decidir o caso Ellwanger  no qual um cidadão publicava obras antissemitas , o STF esclareceu que "o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra" (STF, HC 82424 / RS, DJ 19-03-2004). A questão, então, é saber se o discurso de Monark estimulou/instigou a prática do nazismo, de modo a extrapolar as fronteiras da liberdade de expressão e desembocar em conduta criminosa.

E a resposta, por mais desagradável que seja à sanha punitiva, é não. No episódio (https://www.youtube.com/watch?v=WaFBYWLHCXE), Monark diz com todas as letras que "nazismo é de errado; é de demônio" (sic) para, logo em seguida, indagar: "as pessoas não têm o direito de ser idiotas?". Noutras passagens, também é categórico em sua oposição ao regime. Schwartsman asseverou que ele "exibiu uma assustadora inabilidade argumentativa, além de ignorância em relação a nazismo e antissemitismo”, mas não houve “crime em suas intervenções” porque “não há nenhum tipo de apologia nem incitação" [4].

São corretas as afirmações. Monark revelou-se néscio, sem compreensão histórica sobre o tema. Em sua obtusa convicção, o nazismo é torpe, mas a melhor forma de combatê-lo é tirá-lo do subterrâneo e permitir o debate público de suas ideias para a exprobração social. É a sua solução para uma chaga social que, por mais detestável que seja, não é apologética.

O pensamento é, de fato, equivocado. Mas ele acerta ao afirmar que não é proibido ser um energúmeno  e parece ambicionar ser a prova viva disso. Dostoiévski alude ao direito de desejar "algo muito estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente" [5].

Aos que advogam a interdição de falas contra valores constitucionalmente albergados ou que recebem a qualificação de crimes, fica o ônus de explicar o porquê de o debate sobre a descriminalização do comércio de maconha, hoje crime inafiançável e insuscetível de anistia (CF, 5º, XLIII), passível de extradição (CF, 5º, LI), reprimido como política de segurança pública (CF, 144, §1º, II) e cujo proveito econômico pode ser confiscado (CF, 243, parágrafo único), ser aceito sem perplexidade.

Censurar ideias ruins somente por serem execráveis é criar o "crime de opinião", o que pode ser nefasto. De acordo com Mill, "o mal peculiar de calar a expressão de uma ideia é assaltar tanto a posteridade quanto a geração existente; os que discordam da opinião e ainda mais os que a sustentam. Se a opinião estiver certa, eles ficam privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade: se errada, eles perdem […] a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzida por sua colisão com o erro" [6].

 Como reputamos factível conversar sobre o desacerto da convicção do podcaster, façamo-lo. Ele tem como ponto de partida um pressuposto equivocado que, por seu potencial deletério, pode redundar num ponto de chegada catastrófico. Falta-lhe capacidade de estabelecer uma relação mediata de causa e consequência, bem como entendimento sobre a trajetória de ascensão ao poder dos regimes autoritários. Eles não se materializam do nada, senão pela tolerância e institucionalização de condutas tresloucadas, como leciona Arendt [7].

Outorgar aos nazistas a possibilidade de legalização de suas associações político-partidárias, levá-los minimamente a sério e submetê-los ao debate político é cogitar a possibilidade de eles estarem certos e também de persuadi-los pela razão, o que é um despautério. Não há relação viável com eles, pois "sabedoria e bondade aos vis parecem vis. A imundície adora-se a si própria" [8].

O nazismo é uma ideologia totalitária baseada na concepção de supremacia racial, que descreve a raça ariana como pura e superior. De matriz eugênica, prega o extermínio não apenas do povo judeu, mas de todos os "diferentes" (negros, ciganos, homossexuais, deficientes etc.), considerados "povos estrangeiros" (Fremdvölkische). E é ingênuo conceber um partido político senão para executar o seu estatuto e tentar fazer prevalecer a sua visão de mundo. Não há, pois, liberdade de expressão para negar o direito à vida de outrem.

A prevalecer a visão de Monark, caso algum dia o "Partido Nazista Brasileiro" chegasse ao poder, o primeiro passo talvez fosse a obliteração de seu podcast, já que o nazismo é avesso à democracia. O segundo poderia ser a eliminação do próprio Monark, já que ele não atende aos critérios nazistas que lhe autorizariam sobreviver. Ademais, o contribuinte patrocinaria "recursos do Fundo Partidário" e "acesso gratuito ao rádio e à televisão" (Lei nº 9.096/1995, 7º, §2º) a uma facção que propaga a discriminação e/ou a morte dos demais. Por isso a proposta deve ser rechaçada no ninho, como o "ovo da serpente" a que se refere Shakespeare [9]. É preciso aprender com a metáfora de Costa: "tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada" [10].

O repúdio aos discursos de ódio constitui uma das formas mais eficazes de defesa da liberdade de expressão, por mais contraditório que possa parecer. Popper denominou esse fenômeno "paradoxo da tolerância", e explicou que a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância, pois, se estendermos ilimitadamente a tolerância, mesmo aos intolerantes, e não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, então os intolerantes promoverão a destruição dos tolerantes e, com eles, a da tolerância. Em arremate, diz ele que "we should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant. We should claim that any movement preaching intolerance places itself outside the law" [11]. Não foi por acaso que a Alemanha criminalizou o nazismo (Strafgesetzbuch – StGB, §86).

Por isso é tão perniciosa a proposta de chancelar a legalidade de uma agremiação política que reivindique a superioridade de um povo e o aniquilamento ou a discriminação dos demais. A liberdade é natural [12]. Nós "não só nascemos com ela, mas também com a paixão para defendê-la" [13], asseriu Boétie, mas isso não implica a legitimação de defesas apologéticas de crimes. Não se adequa ao nosso modelo de sociedade justa e solidária (CF, 3º, I), que enfatiza a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo (CF, 4º, II e VIII), a legalização de um partido nazista.

As atrocidades cometidas durante o Holocausto devem ser lembradas como admoestação para que jamais se repitam, porém colocadas na latrina da vergonha histórica. Nazismo apequena-nos e diminui-nos como seres humanos. Retira das profundezas do esgoto o nosso lado mais vil e abjeto. Tem em seu âmago a sombra da crueldade, da erradicação e do genocídio, o que deve causar repulsa, pois a “a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti[14].                   

 


[1] No original: "I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it" (TALLENTYRE, S. G. The Friends of Voltaire. Londres: Smith, Elder & Co., 1906, p. 199)

[2] WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 209.

[3] ORWELL, George. A liberdade de imprensa. In: A Revolução dos Bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 139.

[4] SCHWARTSMAN, Hélio. O que podemos proibir? In: Folha de São Paulo, 10 fez.2022.

[5] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 42.

[6] MILL, John Stuart. On Liberty. New Haven: Princeton University Press, 2003, p. 87.

[7] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[8] SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. Trad. de Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 100.

[9] Idem. Júlio César. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 46.

[10] COSTA, Eduardo Alves da. No Caminho com Maiakóvski [poesia reunida]. São Paulo: Geração editorial, 1ª ed., 2003, p. 47.

[11] POPPER, Karl R. The Open Society and Its Enemies: The Spell of Plato. Princeton: Princeton University Press, 1971, p. 543.

[12] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes, 1943.

[13] LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 41.

[14] DONNE, John. In: HEMINGWAY, Ernest. Por quem os sinos dobram. Rio de Janeiro, Betrand Brasil, 2021, p. 6.

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