Diário de Classe

Afinal de contas, o que é o pragmatismo (jurídico)?

Autor

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

19 de fevereiro de 2022, 8h00

Alguns conceitos parecem perseguir os juristas. Entre eles, noções sobre o que é uma Constituição e o que são direitos fundamentais. Outros parecem se perder. Luis Alberto Warat foi um jurista que cunhou uma ideia para explicar esse fenômeno: trata-se de uma anemia significativa [1]. Sobre essa mesma ideia, Lenio Streck [2] explica que alguns conceitos são transformados em estereótipos, perdendo seu conteúdo e sofrendo uma espécie de poluição semântica. Da baixa densidade epistêmica que advém dessa anemia e dessa poluição é que alguns conceitos se perdem.

Em face desse problema, muito já se falou sobre o que realmente é o positivismo jurídico por autores como Streck [3], Rafael Tomaz de Oliveira [4] e Gilberto Morbach [5], apenas para citar alguns dos mais destacados. Por outro lado e mais recentemente, Luã Jung empreendeu esforços para demonstrar como os conceitos de verdade não pode(ria)m ser compreendidos levianamente (aqui e aqui, também no Diário de Classe).

Neste texto, propõe-se refletir sobre um outro conceito que parece ter se perdido. Afinal, o que é o pragmatismo (jurídico)?. Quais são seus problemas?

Inicialmente respondendo pela via negativa, antecipa-se que o pragmatismo não deve(ria) ser compreendido tão somente como um álibi teórico. Tampouco como uma ofensa. Já pela via afirmativa e apoiando-se nos trabalhos de Cornelis de Waal [6] e Bruno Torrano [7], esclarece-se que o pragmatismo é um termo inerentemente polissêmico. O termo "pragmatismo" pode designar um temperamento [8] de pessoas que são impelidas a lidar com um problema eminentemente prático como também pode designar um paradigma (filosófico ou jurídico). Sobre essa última designação é que se segue.

Enquanto paradigma filosófico, o pragmatismo é uma escola de pensamento que surgiu nos Estados Unidos ainda no início do século 19. Da reunião de um grupo de pensadores de Cambridge que passou a se reunir para discutir filosofia, nasceu "O Clube Metafísico" e o embrião dessa tradição.

Apesar de outros pensadores terem sido importantes ao projeto teórico inicial (Schiller, Lewis etc.), Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey foram os principais representantes. Para além da polêmica fundacional dessa escola de pensamento (disputada entre Peirce e James), os três autores supramencionados compartilhavam a ideia de que a veracidade de uma hipótese deve ser aferida de acordo com as consequências práticas da sua aplicação. Em termos de epistemologia, "verdadeiro, segundo essa concepção, significa o mesmo que útil, valioso, promotor da vida" [9]

Posto isso, relembra-se que o pragmatismo é uma tradição de pensamento e isso quer dizer que também existem diferenças internas. Peirce concebia o pragmatismo enquanto um critério de significação e defendia que o significado de qualquer conceito nada mais seria do que a soma de todas as consequências práticas possíveis. Diversamente, James via o pragmatismo como uma autêntica teoria da verdade e postulava que as ideias se mostrariam verdadeiras caso nos ajudassem a ter consequências satisfatórias com outras partes da experiência concreta. Dewey, por sua vez, concebia o pragmatismo enquanto um instrumentalismo. Mais recentemente, o neopragmatismo de Richard Rorty também é ilustrativo. Para este último, "a noção de verdade é descolada da noção de representação acurada da realidade (como se a linguagem ou a mente fossem o espelho da natureza) para a noção de comunicação humana exitosa" [10].

De uma leitura que busque similitudes, logo percebe-se a convergência quanto ao papel destacado da(s) consequência(s). No limite, condiciona-se o discurso e quer-se algo em antecipado. Daí porque o que diferencia cada pensador é como as consequências são equacionadas. Daí também porque Posner assevera que "seu âmago é meramente uma tendência em basear ações em fatos e consequências" [11].

Finalizando essa parte introdutória, cumpre registrar uma advertência: pragmatismo e relativismo não são termos equiparáveis. Como um todo, a tradição em comento não defende que todas as crenças, decisões, descrições e hipóteses equiparam-se em valor. Em sentido contrário, cada qual seria uma ferramenta destinada a lidar com algum problema particular — seja ele verdade, significação, comunicação ou ação.

Talvez não seja irrazoável imaginar que o leitor possa estar se perguntando porque isso importa e qual é o lugar do Direito nessa discussão. Uma resposta pode ser dada a partir do conceito da "Filosofia no Direito", cunhado por Streck e Ernildo Stein em conferência por ambos ministrada no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná no ano de 2003 [12]. Segundo os autores, o Direito tem na Filosofia a sua condição de possibilidade e isso quer dizer que o fenômeno jurídico não é uma matéria bruta. Em realidade, trata-se de uma decorrência da própria reflexão filosófica.

Nesse sentido e sob uma perspectiva legal, o pragmatismo jurídico é uma concepção teórica acerca do Direito que surgiu no século passado e que possui como principal proposta o esforço de aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao problema da interpretação jurídica [13]. Partindo dos excertos de Vicente de Paulo Barretto, tem-se aqui um pensamento que possui características consequencialistas e contextualistas.

"O consequencialismo do pragmatismo manifesta-se no enraizar do direito na prática, no conhecimento tácito nela gerado, e na preocupação com resultados. Já o contextualismo se define pelo julgamento dessas práticas e de seu conhecimento a partir da experiência passada e dos resultados desejáveis que elas produzem em situações problemáticas" [14].

Tratando-se de "uma concepção que atribui às conseqüências práticas das decisões judiciais um peso decisivo na atuação dos juízes" [15], os reflexos do pragmatismo jurídico podem ser percebidos na escola sociológica americana, no empirismo jurídico, no realismo jurídico e no critical legal studies de Richard Posner [16]. Incluindo algumas considerações deste último autor, o pragmatismo jurídico manifesta-se enquanto em realidade jurisdicional quando se "objetiva alcançar a decisão que seja mais razoável, levando em consideração todas as coisas, em que todas coisas incluem tanto consequências específicas ao caso quanto sistêmicas" [17]. Sobre a questão da decidibilidade, Posner assinala que o juiz pragmático decide com base em um juízo de "razoabilidade" voltado às "melhores consequências" e a partir de em um sopesamento não algorítmico entre consequências baseadas na norma jurídica e de consequências específicas ao caso [18].

Antes de seguir para uma problematização do pragmatismo, uma última advertência: pragmatismo jurídico não é o mesmo que pragmatismo filosófico, porque, na realidade, o primeiro não é uma continuidade necessária do segundo. Afinal, "é possível e consistente que um pragmatista filosófico, ao falar sobre aplicação do direito, defenda algum tipo de formalismo normativo" [19]. No limite, o pragmatismo jurídico é uma possível continuação do filosófico, e não uma inevitabilidade.

Finalmente, chega-se aos problemas (que não são poucos). Segue-se discorrendo sobre duas inconformidades do pragmatismo jurídico: 1) democrática; e 2) constitucional.

1) Quanto à primeira questão, convém reprisar o modus operandi da decisão pragmática que, relembrando os dizeres de Posner, realiza-se quando o juiz pragmático exerce um exame pautado pela "razoabilidade" voltado às "melhores consequências" e que se realiza a partir da contingência subjetiva do intérprete. Daí porque o autor sustenta que "juízes diferentes pesam as consequências de maneira diversa, dependendo da formação, temperamento, treinamento, experiência e ideologia" [20].

Do estudo desse modo de funcionamento, Streck evidencia algo que talvez possa passar despercebido: decisões pragmáticas têm na subjetividade do juiz o locus de tensão da legitimidade do Direito [21], bem como deslocam o polo da tensão interpretativa em direção do intérprete. O que Streck indica é que há uma aposta no protagonismo judicial. Ao decidir, o juiz terá de também decidir quais são as consequências desejáveis. Como não existem respostas antes das perguntas e como os interesses que coexistem em uma democracia não são convergentes, tem-se um problema: não se pode pautar decisões a partir de interesses sectários.

Em que pese a não aceitabilidade de juízos pessoais/autoritários se sobreponham ao pacto intersubjetivo chamado Constituição, percebe-se que a tradição de pensamento em comento possui um problema que advém de seu próprio funcionamento. A democracia não é uma fórmula matemática.

2) Sobre a segunda questão e sobre a conformidade constitucional, cumpre outra vez mais reprisar quais seriam os limites decisionais de uma jurisdição pragmática. Posner argumenta que que o horizonte de possibilidade das decisões pragmáticas encontraria-se condicionado por restrições de ordem material, psicológica, institucional e de consciência (tendo em vista que, em tese, o magistrado pragmático se veria constrangido por seus pares e impossibilitado de sopesar todas as consequências) [22].

Em vista disso, nota-se que a tomada de decisão pragmática está imbuída de um inerente subjetivismo, posto que relacionada à consciência. Contudo isso não é tudo: Posner vai além do subjetivismo quando também sustenta que o juiz poderia desconsiderar a lei para alcançar algum objetivo prático imediato [23]. Não levando o próprio ordenamento jurídico a sério, o pragmatismo jurídico busca possibilitar uma teoria da decisão sem limites (decido conforme minha consciência?) como também viabiliza a erosão da normatividade constitucional (como se alguma consequência desejada pelo juiz fosse maior do que a Constituição).

No limite, o desprezo pelo pela normatividade realiza-se a partir do solipsismo decorrente da negação do minimum semantic [24] do texto constitucional. Nega-se o texto. Vale a consciência que decide as consequências. Eis o problema.

Com razão, Dworkin sustentava que o pragmatismo jurídico é uma concepção persuasiva. Afinal, estimula os juízes a decidirem e a agirem segundo seus próprios pontos de vista [25]. Talvez um canto das sereias que insiste em ecoar na "jurisprudência" (vide a Suspensão em Liminar nº 1.395) e em parte da análise econômica do Direito.

 


[1] WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. p. 69-74

[2] STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2019. p. 111

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito

[4] ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução ao Direito: Teoria, Filosofia e Sociologia do Direito. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020

[5] MORBACH, Gilberto. Entre Positivismo e Interpretativismo: a terceira via de Waldron. 2ª ed. São Paulo: JusPODIVM, 2021

[6] WAAL, Cornelis de. Sobre pragmatismo. 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007

[7] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito: e a urgência de um "pós-pós-positivismo" no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 19-21

[8] Diferentemente de Torrano, Posner utiliza-se de outra nomenclatura. No contexto da obra do autor, o termo "pragmatismo cotidiano" é utilizado

[9] HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF, 2012. p. 40

[10] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito: e a urgência de um "pós-pós-positivismo" no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 32

[11] POSNER, Richard Allen. Direito, Pragmatismo e Democracia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 2

[12] STRECK, Lenio Luiz (Coord.). A discricionariedade nos sistemas jurídicos contemporâneos. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2019. p. 43

[13] BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia do direito. 1ª ed. São Leopoldo: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 656 e seguintes

[14] Idem

[15] SARMENTO, Daniel. Filosofia e teoria constitucional contemporânea. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 173

[16] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 343-347

[17] POSNER, Richard Allen. Direito, Pragmatismo e Democracia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 10

[18] Idem, p. 50

[19] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito: e a urgência de um "pós-pós-positivismo" no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 19-21

[20] POSNER, Richard Allen. Direito, Pragmatismo e Democracia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 33

[21] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 343-347

[22] POSNER, Richard Allen. Direito, Pragmatismo e Democracia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 73

[23] Idem. p. 63

[24] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – o senso incomum ?. 1ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 87

[25] DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 186-188

Autores

  • é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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