Direito do Agronegócio

PIS/Cofins: direito ao crédito dos royalties na produção de sementes

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

18 de fevereiro de 2022, 8h00

Entre as atividades relacionadas ao agronegócio temos a cadeia de produção de sementes [1].

Spacca
Segundo disposto no artigo 2º da Lei nº 10.711/2003, semente seria o "material de reprodução vegetal de qualquer gênero, espécie ou cultivar, proveniente de reprodução sexuada ou assexuada, que tenha finalidade específica de semeadura".

A produção de sementes e sua comercialização pelos produtores ("sementeiros") se dá por um "processo de propagação" ou multiplicação, o qual, na maioria das vezes, dependo do uso de certa "tecnologia" [2], cuja remuneração ao detentor decorre do pagamento de royalties.

A questão que se pretende enfrentar diz respeito à possibilidade de as pessoas jurídicas sementeiras optantes pelo regime não cumulativo de PIS e Cofins obterem crédito por força de referidos pagamentos.

Em nossa visão, entendemos que há evidente direito ao crédito conforme as seguintes ponderações.

Nosso ponto de partida é o artigo 195, §12, que consagra a não cumulatividade para tais contribuições, nos seguintes termos: "A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas" [3].

As contribuições para PIS e Cofins, diante do disposto no artigo 195, §12, da Constituição Federal [4]: 1) estão submetidas à sistemática da não-cumulatividade; 2) a supremacia material e formal impõe ao legislador infraconstitucional a observância dos critérios informadores da não cumulatividade a fim de que se impeça operações com incidência cumulativa dos tributos (neutralidade fiscal); 3) possui a não cumulatividade, nessa hipótese, um perfil próprio, relacionado ao aspecto material, ou seja, o faturamento/receita, de maneira que não seria adequada a adoção — exclusiva — de critérios pertinentes ao IPI e ICMS, também não-cumulativos, para se estruturar e interpretar a legislação relacionada às tais contribuições; 4) portanto, a não cumulatividade será em função da receita; 5) a não cumulatividade estabelecida no texto constitucional não é benefício fiscal, mas direito subjetivo constitucional do contribuinte de não sofrer, no ciclo da atividade econômica, uma tributação cumulativa; 6) a Constituição permitiu ao legislador a definição dos setores e respectivos critérios para ingresso no regime não cumulativo [5], não autorizando, todavia, dentro do mesmo regime jurídico, restrições e distinções em desconformidade com referido instituto e demais princípios e regras constitucionais, como a isonomia, capacidade contributiva.

Desse modo, quando da análise das Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003, o artigo 195, §12, do texto constitucional, ao consagrar expressamente a não cumulatividade, deve servir necessariamente como vetor interpretativo de maior relevância para a interpretação constitucionalmente adequada de tais contribuições e respectivos créditos, sem embargo a margem de liberdade atribuída ao legislador para estabelecer os contornos jurídicos desta sistemática.

Nesse sentido, se a partir do texto constitucional (artigo 195, I, "b") o legislador opta por tributar a receita de modo mais amplo possível, em contrapartida, ao estabelecer a não cumulatividade e a respectiva concessão de créditos, não poderá adotar medida de peso diversa quanto à amplitude destes, tendo em vista o postulado de coerência interna, igualdade, razoabilidade, inclusive, moralidade legislativa. Se a tributação e a não cumulatividade são em função da receita, o critério há de ser o mesmo para as duas faces dessas contribuições (tributação vs crédito — não cumulatividade) [6].

Diante de tais ponderações inicias, que são premissas interpretativas e vinculantes, por serem fixadas pelo texto constitucional, encontramos a previsão legal de crédito para tal regime no tocante aos insumos, de conformidade com o artigo 3º, II, das Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003, ao dispor que dão tal direito, as aquisições de pessoas jurídicas, quanto aos "bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes (…)".

Tem-se, assim, que bens e serviços, quando empregados para se prestar serviços, fabricar, produzir e destinar à venda, permitirão a geração de créditos dedutíveis a fim de garantir a não cumulatividade que tem como premissa a neutralidade [7].

Bem por isso, entendemos que a noção de insumo para fins de PIS e Cofins é abrangente (ampla), excluindo-se a aplicação de critérios vinculados ao IPI e também IRPJ, comportando as despesas, custos e dispêndios que contribuam de forma direta ou indireta para o exercício da atividade econômica visando à obtenção de receita, salvo expressa previsão legal em sentido contrário.

Sendo assim, bens e serviços "adquiridos" com incidência de tais tributos, os quais contribuem para que se concretize o exercício da atividade de determinada pessoa jurídica, a fim de que esta obtenha receita, há de ser considerado insumo e, por conseguinte, gerará crédito para abatimento dentro da sistemática não cumulativa.

Desse modo, levando em consideração tais ponderações, voltamos à situação concreta, qual seja, a propagação ou multiplicação de sementes pelos sementeiros e a utilização sem seu processo produtivo de tecnologia de terceiros, cujo pagamento se dá por meio de royalties.

Ora, a partir de um contrato de licenciamento, as pessoas jurídicas detentoras de tais cultivares registrados no Mapa [8] autorizam, mediante remuneração, a utilização dessa tecnologia a fim de se faça a produção de determinada qualidade de semente.

Essa remuneração por este licenciamento se dá pelo pagamento de royalties.

Trata-se, portanto, de um bem, todavia, de natureza imaterial ou incorpórea [9], o que não seria impeditivo ao crédito como insumo, diante da permissão legal prevista na lei para bens, sem qualquer distinção.

Até porque podemos reconhecer aos royalties e outros direitos imateriais de conteúdo patrimonial a noção de bem móvel, nos termos do artigo 83 do Código Civil [10].

Com isso, o ponto principal para o acolhimento do crédito e a caracterização como insumo de tais despesas a título de royalties diz respeito à sua importância para a atividade realizada pela pessoa jurídica, uma vez que esta, a fim de produzir determinada qualidade de semente, forçosamente, deve obter a autorização das pessoas jurídicas detentoras de tal tecnologia.

Na linha do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, nos parece evidente que o pagamento de royalties tem toda conexão com o requisito da essencialidade, eis que, sem tais conhecimentos, o contribuinte (sementeiros) não produziria sementes da forma como pretendia, apesar de tal bem não integrar materialmente o produto final destinado à venda.

Há de se convir, portanto, que se trata de bem pago à pessoa jurídica domiciliada no Brasil e contribuinte de PIS e Cofins, cuja essencialidade está voltando ao processo produtivo, mais especificamente, à multiplicação de sementes.

Nesse sentido há decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), inclusive da Câmara Superior:

"CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL (COFINS) Período de apuração: 01/07/2008 a 31/10/2008 COFINS. CONTRIBUIÇÃO NÃO-CUMULATIVA. CONCEITO DE INSUMOS. Com o advento da NOTA SEI PGFN MF 63/18, restou clarificado o conceito de insumos, para fins de constituição de crédito das contribuições não cumulativas, definido pelo STJ ao apreciar o REsp 1.221.170, em sede de repetitivo — qual seja, de que insumos seriam todos os bens e serviços que possam ser direta ou indiretamente empregados e cuja subtração resulte na impossibilidade ou inutilidade da mesma prestação do serviço ou da produção. Ou seja, itens cuja subtração ou obste a atividade da empresa ou acarrete substancial perda da qualidade do produto ou do serviço daí resultantes" [11].

Em tais condições, diante do fato de que o pagamento de royalties é realizado com o objetivo de viabilizar a produção de sementes, atividade fim das sementeiras, não há dúvida quanto à viabilidade do crédito na medida que se aplica adequadamente a não cumulatividade estabelecida no texto constitucional (artigo 195, §12, CF), bem como a noção de insumo prevista no artigo 3º, II, das Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003.

 


[1] "Produção: o processo de propagação de sementes ou mudas" (art. 2º, XXXI, da Lei nº 10.711/2003).

[2] Esta tecnologia no caso de sementes tem relação com o cultivar, ou seja, "a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas, por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos" (artigo 2º, da Lei nº 10.711/2003).

[3] A noção de não-cumulatividade e sua extensão para o PIS e Cofins aguarda análise pelo Supremo Tribunal Federal em repercussão geral: "RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. ART. 195, § 12, CF/88. PIS. COFINS. ARTIGO 3º, NOTADAMENTE INCISO II E §§ 1º E 2º, DAS LEIS Nºs 10.833/2003, 10.637/2002. ARTIGO 31, § 3º, DA LEI Nº 10.865/2004. RELEVÂNCIA DA MATÉRIA E TRANSCENDÊNCIA DE INTERESSES. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA" (STF, ARE 790.928/PE-RG, rel. min. Luiz Fux, j. 15/8/2014). Convém esclarecer que este paradigma foi substituído pelo RE 841.979/PE, onde será julgado o mérito da repercussão geral.

[4] A respeito da não-cumulatividade para o PIS e a Cofins: CALCINI, Fábio Pallaretti. PIS e Cofins. Algumas ponderações acerca da não-cumulatividade. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, maio, 2010, v. 176. p 41-64.

[5] "AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. PIS E COFINS. EQUIPARAÇÃO DE REGIMES. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. IMPOSSIBILIDADE. Nos termos da orientação firmada nesta Corte, cabe à parteagravante impugnar todos os fundamentos da decisão agravada, o que não ocorreu no presente recurso. A previsão de estabelecimento de diferentes regimes tributários pela Lei nº 10.637/2002, de modo a limitar deduções da base de cálculo do PIS e da Cofins a determinado grupo de empresas, não implica ofensa ao princípio da isonomia. Não cabe ao judiciário imiscuir-se no mérito das decisões políticas adotadas pelo legislador e pela Administração tributária. Agravo regimental a que se nega provimento." (STF, AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 837.957/RS, rel. min. Roberto Barroso, 1T, j. 9/4/2014).

[6] CALCINI, Fábio Pallaretti. PIS e Cofins. Algumas ponderações acerca da não cumulatividade. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, v. 176. p. 62.; CALCINI, Fábio Pallaretti Calcini. PIS/Cofins, não cumulatividade e insumo. Aspectos constitucionais e legais. Grandes questões atuais do direito tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 2015. P. 30-59. 19 v.

[7] MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

[8] Registro Nacional de Cultivares. "Artigo 8º. O RNC é registro único que tem a finalidade de habilitar previamente cultivares para a produção, o beneficiamento e a comercialização de sementes e de mudas no Brasil." (Decreto nº 10.856/2020).

[9] – "A divisão vem dos romanos (res corporales e res incorporales). Apesar de ter suscitado dúvidas na sua compreensão é interessante conservá-la, mormente porque o regime da circulação da riqueza alarga atualmente a órbita onde gravitam os direitos sobre direitos. Reserve-se a denominação coisa para os objetos materiais, mas não se esqueça de que, ao lado dos corpos, há bens que, embora incorpóreos, constituem objeto de relações jurídicas" (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 211-212.). Segundo Washington de Barros Monteiro, incorpóreos são bens que, "embora de existência abstrata ou ideal, são reconhecidos pela ordem jurídica, tendo valor econômico (incorporales, quae tangi non possunt)" (Curso de Direito Civil. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 146. 1º v.).

[10] "Artigo 83 – Consideram-se móveis para os efeitos legais: (…) III – os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações".

[11] Carf, CSRF, Ac. 9303-008.742, j. 13/06/2019. Neste sentido: Carf, CSRF, Ac. 9303-010.248, j. 11/3/2020.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!