Opinião

Herança digital: entre a teoria e a prática

Autores

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

  • Mariana Barsaglia Pimentel

    é advogada sócia diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do escritório Medina Guimarães Advogados doutoranda e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

17 de fevereiro de 2022, 7h12

A "herança digital" está entre os temas mais debatidos pela civilística nacional na contemporaneidade, em especial após a pandemia de Covid-19, que afetou a sociedade nas mais diversas esferas e desencadeou um aumento da utilização das plataformas e ferramentas online.

Spacca
O direito, que sofre direta influência das transformações sociais e históricas, apreendeu muitas das questões que guardam relação com a sucessão digital e que, ao fim e ao cabo, trazem em si dois temas que ouvimos falar com frequência nos últimos dois anos: a morte e a internet.

Não obstante a importância da matéria, não há no direito brasileiro previsão legal que verse sobre a transmissibilidade do "ativo digital" após a morte de seu titular ou, ainda, sobre "o tratamento das informações constantes na rede após a morte do usuário"[1].

E a referida transmissão do denominado acervo digital —que é composto por redes sociais, arquivos em nuvem, plataformas de streaming, canais no YouTube, sites, e-mails, etc.[2] — perpassa não só pela mensuração e exploração econômica do conteúdo digital deixado pelo falecido, mas também pelas situações jurídicas existenciais decorrentes da sucessão.

Com efeito, "a privacidade e a intimidade da pessoa devem ser protegidas mesmo após a sua morte". "Pense-se, por exemplo, em mensagens íntimas trocadas entre usuários titular de contas em rede social. Nesse caso, não se está diante de bem que integra a herança que, como tal, é transferida com a morte do de cujus (saisine)[3]."

Recentemente, no âmbito do Juizado Especial Cível da Comarca de Santos (SP), foi concedido ao pai de um jovem falecido o direito de acessar os arquivos salvos na "nuvem" do celular pertencente ao de cujus[4]. Nos termos da sentença, proferida nos autos nº 1020052-31.2021.8.26.0562 de Tutela Antecipada Antecedente e que será publicada em 21/1/2022:

"As circunstâncias que envolvem o caso estão devidamente comprovadas […], restando claro o interesse de seus familiares no acesso aos dados armazenados por ele, notadamente fotos e outros arquivos de valor sentimental, como últimas lembranças que possuem dele. Também se extrai do referido documento que o requerente não deixou filhos, de modo que, na ordem sucessória do artigo 1.829 do Código Civil, seus genitores são seus legítimos herdeiros[5]."       

A decisão, apesar de levar em conta os anseios dos familiares em luto, não se debruçou sobre a vontade (não) manifestada do de cujus e sobre os direitos da personalidade do falecido (em especial sobre a sua privacidade e intimidade), que, via de regra, pertencem ao seu titular e não são transmissíveis aos herdeiros. Além disso, deixou-se de considerar que, dentre as fotos e vídeos constantes na nuvem, é possível que se encontrem arquivos enviados por terceiros ao de cujus com a expectativa de que o acesso seria apenas de quem os recebeu[6].

Neste aspecto, a vontade dos usuários acerca do “destino” do acervo digital pode ser manifestada através de testamento ou codicilo, ou, ainda, perante as próprias plataformas digitais. A Apple, por exemplo, disponibiliza o recurso denominado “legado digital”, através do qual permite designar uma ou mais pessoas para serem “herdeiros digitais” com acesso à conta do iCloud (nuvem) em caso de falecimento do titular. Do mesmo modo, o Facebook permite que seus usuários escolham determinada pessoa para o gerenciamento da conta em caso de morte.

Em que pese as ferramentas disponíveis, são raros os casos daqueles que antecipadamente deliberam sobre a transmissibilidade do seu acervo digital após a sua morte.

A matéria aqui debatida não tem resolução ou resposta simples e comporta discussões que perpassam por temas como: proteção de memória da pessoa falecida, exploração econômica do acervo digital, sucessão de criptomoedas, dentre outros. As questões que se colocam perante os operadores do direito são muitas e demandarão um repensar sobre o direito sucessório e sobre o direito digital como um todo.

[1] LEAL, Lívia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018. p. 184.
[2] WASQUES, Vitória Gabriela; GARCIA, Daiene Kelly. Herança Digital: Um desafio para o Direito Sucessório. Revista de Iniciação Científica e Extensão da Faculdade de Direito de Franca. v.5, n.1, dez. 2020. p. 845-866. p. 846.
[3] MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. 7.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 92.
[4] Notícia disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/pai-obtem-justica-acesso-aos-arquivos-iphone-filho-morto. Acesso em 15.01.2021.
[5] Trecho da sentença proferida nos autos n. 1020052-31.2021.8.26.0562.
[6] Cf. comentado, também, por Joyceane Menezes em sua página do Instagram: https://www.instagram.com/p/CYuFrSyrncC/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em 15.01.2021.

Autores

  • é doutor em direito das relações sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é sócio fundador do Medina Guimarães Advogados, professor titular no curso de direito da Universidade Paranaense (Unipar) e professor associado no curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

  • é sócia-diretora de Direito da Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório no escritório Medina Guimarães Advogados, doutoranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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