Opinião

A motivação das decisões penais e o artigo 315, 2º, IV, do CPP

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16 de fevereiro de 2022, 15h26

Situação comum e que nos chama a atenção é o singular entendimento dos tribunais naquilo que tange ao dever do julgador em enfrentar todos os argumentos de fato e de direito apresentados pelas partes e que possam a vir a modificar a sua conclusão, conforme textualmente prevê o artigo 315, inciso IV, do Código de Processo Penal. Comportando-se estranhamente e agindo como se as leis fossem "palpites" ou "conselhos" do legislador, em geral estes saem pela tangente, usam como "válvula de escape" a condicionante prevista no inciso IV e blindam a falta de análise sob o argumento de que a alegação ou o fato trazido pela parte não teria "relevância" para o resultado da decisão, que este seria o mesmo com ou sem a consideração, a análise do julgador, da questão posta pela parte.

Isso quando não partem para a desconsideração total e alegam que "não cabe ao Tribunal responder a questionário das partes" [1].

A nosso ver, trata-se de grave equívoco, seja sob o aspecto da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5°, XXXV), seja sob o aspecto do dever/direito do contraditório, visto como direito de influência das partes no convencimento do julgador na construção do decisum.

Inicialmente sob a ótica da inafastabilidade do controle jurisdicional, a amplitude de tal conceito inclui o dever do juiz de não se negar a prestar a completa tutela estatal "que não pode deixar de considerar as alegações e provas produzidas pelas partes" [2]. Todas elas.

Teresa Arruda Alvim, com clareza, afirma:

"Pensamos que a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional ficaria seriamente comprometida se o autor tivesse o direito de submeter sua pretensão (= afirmação de direito) ao Judiciário, e uma série de razões em função das quais afirma ter este direito, e a este direito não correspondesse o dever do Judiciário no sentido de examinar todas elas.
Por outro lado, também a garantia de defesa ficaria esvaziada se o juiz não tivesse o dever de levar em conata todas as alegações do réu, concretamente manifestadas. De pouco ou nada valeria garantir à parte o direito de defesa, se se consentisse ao juiz o poder de não levar em conta as alegações das partes" [3].

E o Supremo Tribunal Federal alberga claramente tal entendimento, sob este viés:

"JUDICIARIO  ACESSO  ALCANCE. A garantia constitucional alusiva ao acesso ao Judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o Estado-juiz entendimento explicito sobre as matérias de defesa veiculadas pelas partes. Nisto esta a essência da norma inserta no inciso XXXV do artigo 5. da Carta da Republica" [4].

Já sob o ângulo do contraditório, as razões para que o julgador tenha o dever de enfrentar, analisar, as provas e as alegações angariadas e deduzidas pelas partes são ainda de maior clareza. Trata-se do dever de consideração pelo julgador. Afinal, qual seria o sentido de se facultar às partes sua participação na atividade probatória, na apresentação de suas razões, se no crucial momento da decisão o juiz, simplesmente, as ignorasse? Dar voz, mas não ter ouvidos? O direito à prova, ínsito à ampla defesa e ao direito à apresentação das razões, inclui o direito ao exame, a valoração na decisão judicial, tanto das provas quanto dessas razões.

Há, em decorrência do contraditório, um dever de debate entre julgador e as partes a respeito de todo o material recolhido ao longo do feito, um dever de se construir dialogicamente a decisão judicial com base nas provas e nos argumentos trazidos pelas partes. Em isso não ocorrendo, tanto a ampla defesa quanto o contraditório serão apenas palavras ao vento, garantias ocas, sem qualquer efetividade.

Para que isso se efetive, deverá o julgador considerar, analisar, enfrentar todas as provas e questões levantadas, apontando expressamente as razões, o porquê, em decorrência de qual prova ou argumento procede ou deixa de proceder as teses arguidas pelas partes. Deve o julgador justificar por que considerou mais "relevante" tal prova ou alegação e desconsiderou outras. Não basta, por exemplo, condenar Pedro afirmando que este roubou. Faz-se imprescindível que essa afirmação esteja calcada em elemento probatório dentro dos autos e este seja nominado, identificado pelo julgador em sua decisão. Razões e provas não consideradas, não analisadas, resultam em causa não julgada, verdadeiramente.  

De acordo com Barbosa Moreira, o dever de fundamentar, motivar uma decisão judicial não é cumprido por genéricas afirmações como "a prova produzida pelo autor não convence" ou de que "as alegações do réu não ficaram comprovadas". Para esse grande luminar é preciso bem mais. Afirma o mesmo que: "(…) Com isso o juiz de maneira alguma se desincumbiu do dever de motivar: 'ele tem que explicar porque não lhe pareceu convincente a prova produzida pelo autor’ ou ‘se as provas produzidas pelo réu não o convenceram que ele exponha os motivos pelos quais não ficou convencido'" [5]. O Supremo já deixou claro que "a decisão judicial não é um ato autoritário, um ato que nasce do arbítrio do julgador, daí a necessidade de sua apropriada fundamentação" [6].

Quanto a considerar as provas e razões das partes, a doutrina mais abalizada:

"Como observado, a estrutura dialética do processo não pode deixar de refletir no julgamento, na medida em que as atividades dos participantes do contraditório só tem significado se forem efetivamente consideradas na decisão. Daí a correspondente exigência de que a motivação possua um caráter dialógico, capaz de dar conta da real consideração de todos os dados trazidos à discussão da causa pelas partes. O não-atendimento desse imperativo constitui vicio de particular gravidade, pois o silêncio do discurso justificativo quanto às provas e alegações das partes revela não só a falta de uma adequada cognição, mas sobretudo a violação de um princípio natural do processo" [7].

"O juiz, obviamente, não é obrigado a acolher os argumentos das partes, nem considerar atendíveis os meios de provas por elas produzidas. Poderá refutar os argumentos ou considerar as provas invocadas insuficientes para convencê-lo. Jamais, porém, poderá ignorar o argumento da parte ou deixar de valorar a prova por ela produzida, sob pena de nulidade absoluta do processo" [8].

"Na motivação o juiz deve demonstrar que levou em consideração, e em que medida interferiu em sua convicção, o material forjado no alto forno do contraditório entra as partes – alegações, somadas às provas produzidas nos autos do processo. (…) A não ser assim, sentido prático algum haveria em assegurar às partes o direito de ação e defesa se ao juiz fosse aberta a possibilidade de ignorar solenemente o material fático-jurídico emergente da atividade processual das partes" [9].

E, ainda, a jurisprudência:

"E M E N T A: HABEAS CORPUS  ACÓRDÃOS PROFERIDOS EM SEDE DE APELAÇÃO E DE EMBARGOS DECLARATÓRIOS  IMPUTAÇÃO DE ROUBO DUPLAMENTE QUALIFICADO  DECISÕES QUE NÃO ANALISARAM OS ARGUMENTOS SUSCITADOS PELA DEFESA DO RÉU  EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE MOTIVAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS  INOBSERVÂNCIA  NULIDADE DO ACÓRDÃO – PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUI PRESSUPOSTO DE LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS.  A fundamentação dos atos decisórios qualifica-se como pressuposto constitucional de validade e eficácia das decisões emanadas do Poder Judiciário. A inobservância do dever imposto pelo artigo 93, IX, da Carta Política, precisamente por traduzir grave transgressão de natureza constitucional, afeta a legitimidade jurídica do ato decisório e gera, de maneira irremissível, a consequente nulidade do pronunciamento judicial. Precedentes. A DECISÃO JUDICIAL DEVE ANALISAR TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA DEFESA DO RÉU. — Reveste-se de nulidade o ato decisório, que, descumprindo o mandamento constitucional que impõe a qualquer juiz ou Tribunal o dever de motivar a sentença ou o acórdão, deixa de examinar, com sensível prejuízo para o réu, fundamento relevante em que se apoia a defesa técnica do acusado [10].
Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berucksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que ele envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwagungspflicht) (Cf. DURIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DURIGi. Grundgesetz-Kommentar. Artigo 103, vol. IV, no 97).
É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões" (Decisão da Corte Constitucional  BVerfGE 11, 218 (218); Cf. DURIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DURIG. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, no 97) [11].

A nosso ver, quando o legislador brasileiro, "de forma cumulada", aponta as palavras "fundamentação" e "motivação", claro está que o que se quer é que as decisões judiciais, notadamente aquelas que interferem na liberdade, se apresentem da melhor forma que for possível, que estas sejam construídas com a "totalidade" dos elementos postos ao julgador para o seu decidir. Sem tangenciamentos, escamoteamentos ou "válvulas de escape".

"Ah, mas dá trabalho", dirão alguns. De fato, decidir fundamentando nos termos exigidos pela lei dá muito trabalho. Contudo, com todo o respeito, decidir sobre vidas e liberdades humanas tem de dar trabalho. Um agente estatal sentenciar alguém por cinco, dez anos a serem cumpridos nas declaradamente inconstitucionais prisões brasileiras, obviamente é algo que deve dar trabalho, pois isso não é pouco! Não é pouco.

Trata-se da vida de alguém. E se fosse a sua?

A legislação regente sobre a matéria, toda ela instituída não apenas no interesse exclusivo das partes, mas também no interesse público, deixa claro que ato emanado por agente do Estado em desrespeito à forma exigida pela lei  artigo 315, §2°, IV, do CPP — padece de vício de nulidade, nos termos do artigo 564, V, do CPP. Direito não é nem nunca foi cada um fazer e entender o que quer sobre este, como insistentemente tem dito o professor Lenio Streck: "O Direito só é possível com critérios. Ou ele não é Direito. Ele não pode ser o que cada um pensa que ele é" [12].

Se o objetivo primaz do decidido pelo julgador é chegar a um resultado final tecnicamente justo e adequado, nasce imediatamente daí a firme necessidade de que às partes sejam demonstradas nas decisões judiciais, com clareza, todos os fatos, todas as provas, todas as razões que fizeram o julgador chegar até aquele determinado resultado e não outro. Isso, repetimos, sem tangenciamentos, escamoteamentos, "válvulas de escape" ou recalcitrâncias com a aplicação do artigo 315, 2°, IV, do CPP.

A grande Teresa Arruda Alvim afirmou, recentíssimamente: "Fundamentar em desconformidade com o artigo 489, §1º e seus incisos é igual a não fundamentar" [13].

Assim, afirmo em analogia e considerando o que o processo penal tutela: fundamentar em desconformidade com o artigo 315 do CPP também é igual a não fundamentar, competindo às instâncias superiores a aplicação do artigo 564, V, do CPP e da CF/88 (artigo 93, IX) por nulidade absoluta.

 


[1] STJ. EDcl no RHC 83.753/SP, ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca. EDcl no HC 371.739/PR, relator ministra Maria Thereza de Assis Moura.

[2] GOMES CANOTILHO, J. J. [et al]. Comentários a Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, ano 2013, pág. 359.

[3] ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do processo e da sentença, Ed. RT, 11ª Ed., 2022, pág. 382.

[4] RE 172084, ministro relator MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 29/11/1994, DJ 03-03-1995.

[5] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O que deve e o que não deve figurar na Sentença. In Temas de Direito Processual, 8ª série, Ed. Saraiva, ano 2004, pág. 121.

[6] STF. Recurso Extraordinário n° 540.995, relator ministro MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 19/02/2008.

[7] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A Motivação das decisões penais, Ed. RT, São Paulo, 2013, pág. 154.

[8] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 9ª Ed., RT, ano 2021, pág. 647/648.

[9] CONTE, Francesco. Sobre a motivação da sentença no processo civil  Estado Constitucional Democrático de Direito  Discurso justificativo — Legitimação do exercício da jurisdição, Ed. Gramma, ano 2016, pág. 750/751.

[10] STF. HC 74073, ministro relator CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 20/05/1997.

[11] STF. MS 25.787/DF. Ministro relator GILMAR FERREIRA MENDES, Informativo 449.

[12] STRECK. Lenio Luiz. E se todos os juízes dissessem "ignore a doutrina, 99% é lixo"?. Revista Consultor Jurídico, aos 13 de janeiro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-13/senso-incomum-todos-juizes-dissessem-ignore-doutrina-99-lixo. Acesso em: 13/01/2022.

[13] ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do processo e da sentença, Ed. RT, 11ª Ed., 2022, pág. 383.

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