Opinião

Controle e vigilância dos corpos: monitoração eletrônica em regime aberto

Autores

  • José Flávio Ferrari Roehrig

    é pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS pós-graduando em Execução Penal pelo CEI professor de Direito de Execução Penal e assessor de juiz do TJ-PR.

  • Flávia Ávila Penido

    é mestra em Direito Processual pela PUC Minas pesquisadora no Centro de Pesquisa e Extensão em Execução Penal (Cepex) professora de Execução Penal em cursos de pós-graduação e advogada criminalista.

15 de fevereiro de 2022, 13h46

É curiosa a história por detrás do monitoramento eletrônico utilizado com a intenção de localizar pessoas criminalizadas. Rodrigo Roig [1] nos conta que, embora os irmãos Robert Schwitzgebel e Ralf Schwitzgebel tenham começado a conceber este tipo de mecanismo por volta de 1960, foi o magistrado Jack Love quem providenciou a construção do equipamento junto a um engenheiro eletrônico nos idos de 1977, com utilização a partir de 1983. Ele se inspirou nos quadrinhos do Homem Aranha, que logrou ser localizado pelo inimigo graças a um dispositivo atrelado em seu punho.

No Brasil o mecanismo tecnológico demorou a chegar. Uma das primeiras tentativas surgiu em 2007, com o Projeto de Lei 175/2007, que previa, mediante alteração da redação do artigo 115 da LEP, a possibilidade de implementação da monitoração eletrônica como condição do regime aberto.

Anos mais tarde a Lei 12.258/10 alterou a Lei de Execução Penal (LEP) para dispor as possibilidades de monitoração eletrônica dos apenados, com posterior regulamentação pelo Decreto Presidencial 7.627/11.

A alteração foi vista com reservas por aqueles que entendem que o equipamento pode ser vexatório e promover a repulsa do indivíduo no meio social em razão da sua rotulação como criminoso. Fator, pois, de dessocialização.

Isso porque, conforme lição de Goes Junior [2], a tornozeleira eletrônica é um objeto que reproduz uma marca visível no usuário, um rótulo que impediria o exercício pleno da cidadania sobretudo por seu principal referencial: a ocupação profissional. Em usuários de tornozeleira, apenas 23% conquistaram vagas formais de emprego segundo o Infopen 2018. 41% trabalhavam na informalidade e 36% estariam sem ocupação: retrato da estigmatização do egresso reforçada pelo mecanismo aparente.

Afirma-se também a inconstitucionalidade da medida por limitação à intimidade, liberdade e dignidade humana seja quando o equipamento é exposto, seja quando seus passos são fiscalizados diuturnamente desde a prática de atividades rotineiras. Isto é, "o que o legislador acabou por introduzir foi um novo mecanismo no arsenal punitivo, capaz de alongar os braços do cárcere (…), o apenado passa a levar em seus braços ou pernas uma corrente moderna, para que todos vejam" [3].

A violação à vida privada e à intimidade se intensificam quando voltamos o olhar às "inovações" tecnológicas ao redor do mundo. A Nova Zelândia publicou um edital de compras de smartwatches e detectores de álcool e drogas vestíveis para depois de 2022. Os smartwatches teriam, além da conhecida conexão GPS das tornozeleiras eletrônicas, sistema de comunicação, em que, a todo tempo os fiscais poderiam contatar com a pessoa sujeita ao sistema de justiça criminal. Esse mecanismo viabiliza até mesmo escutas ambientais, e poderia ser associado a outros mecanismos detectores de drogas e álcool [4].

Por outro lado, a utilização da monitoração eletrônica pode ser encarada como fomento ao desencarceramento, sendo uma via para que os apenados possam deixar as unidades prisionais superlotadas (uma das medidas propostas na SV56 [5]), ampliando a oportunidade da reintegração social, porém com manutenção da vigilância. Esse foi o ponto de vista encampado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP): ponderando o aprisionamento e a liberdade vigiada, a saída com monitoração eletrônica seria uma via menor rigor penal.

Em síntese o dilema apresentado na tese de Alceu Corrêa Junior [6]: desencarceramento ou ampliação da intervenção penal? A controvérsia se instala quando, apesar de ser mecanismo que promove medidas liberatórias, a vigilância eletrônica tem como efeito a ampliação da rede de controle estatal sobre as pessoas através da intervenção penal.

Isso pode ser constatado nas hipóteses em que o apenado poderia estar em liberdade sem vigilância, porque que nesses casos não serve ao desencarceramento, mas somente expande a rede de controle, sobrepondo medidas, recrudescendo o cumprimento da pena e aumentando o risco de violação das condições.

Exemplo disso é a utilização do equipamento em hipótese não prevista em lei, aumentando a censura ao indivíduo em situação em que caberia a liberdade sem vigilância: o regime aberto.

A LEP faz referência expressa da monitoração eletrônica nas hipóteses de gozo da saída temporária em regime semiaberto e prisão domiciliar (artigo 146-B, II e IV, da LEP). Recordando que a alteração proposta pelo PL 175/2007 no artigo 115 da LEP não foi acolhida, e outro projeto e propostas tomaram seu lugar.

Portanto, a lei não faz menção à possibilidade de uso de monitoração eletrônica (tornozeleira) como condição do cumprimento da pena em regime aberto. E, como será exposto a diante, não se trata de lacuna, mas ato consciente e deliberado do legislador.

Apesar disso, o STJ possui incontáveis julgados que autorizam essa condição além dos limites legais, por entender "não se afigura(r) mais penosa do que aquela que o paciente vivenciaria no cumprimento da pena em regime aberto" [7]. A crise de legalidade na execução penal já há muitos anos anunciada persiste ao se perceber as ofensivas do Poder Judiciário contra a taxatividade da norma [8].

Cuida-se de ato ativista. O Poder Judiciário legisla quando taxativamente o legislador afastou a possibilidade de condicionar o regime aberto ao uso de monitoração eletrônica.

Não falamos somente a respeito dos artigos antes mencionados, mas sobretudo em função do Veto 310/2010.

O presidente da República vetou os incisos I, III e V e o parágrafo único, que previam exatamente a possibilidade de impor o uso de monitoramento eletrônico aos que cumprem pena em regime aberto (I), pena restritiva de direitos (III) e livramento condicional ou sursis penal (V).

Foram as seguintes razões do veto: "A adoção do monitoramento eletrônico no regime aberto, nas penas restritivas de direito, no livramento condicional e na suspensão condicional da pena contraria a sistemática de cumprimento de pena prevista no ordenamento jurídico brasileiro e, com isso, a necessária individualização, proporcionalidade e suficiência da execução penal. Ademais, o projeto aumenta os custos com a execução penal sem auxiliar no reajuste da população dos presídios, uma vez que não retira do cárcere quem lá não deveria estar e não impede o ingresso de quem não deva ser preso".

Isto é, o veto afastou a possibilidade do uso de monitoramento eletrônico em regime aberto por inúmeras razões que foram posteriormente submetidas novamente ao Congresso Nacional.

Afinal, o veto guarda sua adequada e constitucional forma de revisão, consoante disposto no artigo 66, §4º da CF/88. A jurisprudência, portanto, ofende a constituição ao dispor de maneira diversa.

Não bastasse, o CNJ editou a Resolução 412/2021 que dispões sobre as hipóteses de imposição da monitoração eletrônica, e nenhuma delas diz respeito ao cumprimento da pena em regime aberto.

Assim, a decisão jurisdicional que impõe monitoração eletrônica a apenados que cumprem pena em regime aberto afigura-se como afrontosa às características de um modelo processual adequado ao Estado democrático de Direito. Isso porque a atividade jurisdicional não pode confundir-se com uma atuação preponderantemente política, de forma a substituir a atividade política exercida pelo Legislativo.

Em se tratando de um Estado democrático de Direito há de se garantir que o Estado esteja sujeito a um regime de direito que, ao mesmo tempo, torna possível e limita o exercício de suas funções essenciais, dentre elas a jurisdição. Significa dizer que regime do Estado de Direito implica essencialmente a imposição de regras limitativas impostas pelo Estado a si mesmo visando o interesse do povo. Assim, o Estado de Direito é aquele que formula prescrições relativas ao exercício de suas funções de forma a estabelecer mecanismos para preservar e defender os cidadãos das arbitrariedades das autoridades estatais. Portanto, se estabelece no interesse e para a salvaguarda dos indivíduos, assegurando a proteção de seus direitos [9].

Ao contrário do que prescreve o ideal de um Estado de Direito, o que se observa é que, no afã de dar respostas rápidas à população, que reverbera por mais rigor punitivo, o Judiciário olvida inclusive da resolução do CNJ a que fizemos referência, ignora a atuação legislativa e o veto do Executivo para impor a sua vontade soberana.

A sanha pelo controle permanente e onipresente do criminoso o transforma em sujeito etiquetado, para que não se deixe esquecer que a prisão é maior do que a privação da liberdade, alcançando a realidade extramuros.

Não descuidamos de que o apenado em regime aberto se mantém em cumprimento de pena, porém a imposição de mecanismo que imprima mais rigor punitivo ao alvedrio do que impõe a lei se apresenta como ato ativista em prejuízo do condenado.

 


[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 5. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 353-354.

[2] GOES JUNIOR, João Maria de. A monitoração eletrônica de pessoas envolvidas em processos criminais: a tornozeleira eletrônica, o estigma social do usuário e o crescimento de sua aplicabilidade no estado do Paraná e no munícipio de Ponta Grossa. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas – Área de Concentração: Cidadania e Políticas Públicas), Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa, 2021. 100 f.

[3] VALOIS, Luis Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. p. 149-150.

[5] "A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS."

[6] CORRÊA JUNIOR, Alceu. Monitoramento eletrônico de penas e alternativas penais. 2012. Tese (Doutorado em Direito Penal) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. doi:10.11606/T.2.2012.tde-20062013-132709.

[7] Por todos: AgRg no HC 691963/RS.

[8] SCHMIDT, Andrei Zenkner. A crise de legalidade na execução penal. In: CARVALHO, Salo de. Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 41.

[9] CARRÉ DE MALBERG, R. Teoría general del Estado. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1948. Versión española de José Lión Depetre. p. 450-451.

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  • é pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS, pós-graduando em Execução Penal pelo CEI, professor de Execução Penal e assessor de juiz do TJ-PR.

  • é mestra em Direito Processual pela PUC Minas, pesquisadora no Centro de Pesquisa e Extensão em Execução Penal (Cepex), professora de Execução Penal em cursos de pós-graduação e advogada criminalista.

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