Direito Civil Atual

Falo o que quero: liberdade ou despautério?

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14 de fevereiro de 2022, 8h00

" Presa por quê?
— Por excesso de liberdade"
(Clarice Lispector)

O ser humano é naturalmente livre. Não sem razão que a liberdade se revela como um dos maiores atributos da humanidade, pois sua falta implica ausência de direitos. Daí que "we must not be afraid to be free" [1].

ConJur
Liberdade que se manifesta, entre tantos aspectos, no ato de se expressar. Contudo, tese consagrada nos mais diversos textos internacionais, a exemplo do artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos do Humanos de 1789, o delineamento de suas fronteiras é questão intricada.

Como todo e qualquer direito, a liberdade de expressão não é absoluta, a demandar seu exercício responsável e escrupuloso. Estar ontologicamente "condenado a ser livre" significa que o ser humano "carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser" [2].

Essas balizas, aliás, foram evidenciadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em Schenck v. United States [3]. Consoante metáfora idealizada por Justice Oliver Wendell Holmes Jr., nem mesmo a mais abrangente concepção de liberdade de expressão autorizaria alguém a gritar "fogo" em um teatro lotado e causar pânico no público [4]. Desde então, essa alegoria — "shouting fire in a crowded theater" — tem sido largamente utilizada para admoestar sobre os riscos de uma liberdade irrestrita.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), ao consagrar a liberdade de pensamento e de expressão (artigo 13), adverte que o exercício abusivo desse direito pode acarretar responsabilidades ulteriores para que se assegure: "a) el respeto a los derechos o a la reputación de los demás, o b) la protección de la seguridad nacional, el orden público o la salud o la moral públicas" [5]. No Velho Continente, consta do artigo 10, 2, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades que o exercício desse atributo comporta deveres e responsabilidades, e pode estar sujeito a certas formalidades, condições, restrições ou penalidades prescritas por lei: 1) se necessárias em uma sociedade democrática; 2) no interesse da segurança nacional, integridade territorial ou segurança pública; 3) para a prevenção de desordens ou crimes; 4) para a proteção da saúde ou da moral; 5) para a proteção da reputação ou direitos de terceiros; 6) para evitar a divulgação de informações confidenciais; ou 7) para manter a autoridade e imparcialidade do judiciário [6].

Também no Brasil, para afirmar que não há amparo a discursos de ódio e incitação ao crime de racismo [7], o Supremo Tribunal Federal atestou que a liberdade de expressão é "garantia constitucional que não se tem como absoluta", haja vista a "prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica". Decerto, "o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (artigo 5º, § 2º, primeira parte)" [8].

No âmbito das relações de trabalho, a questão apresenta-se. E as razões para isso são um tanto óbvias. Dentro de uma relação assimétrica de poder, é natural que se conclua estar o empregado limitado no exercício da liberdade de expressão, porque vinculado às diretrizes subordinantes do contrato de emprego. Sob esse prisma, o ato de expressar-se encontra limites na própria pactuação.

Sucede que a quaestio não é tão simples assim. A divisa entre o permissivo e o proibitivo é obnubilada por nuanças particulares e, por isso, sem resultados exatos. Há situações, por exemplo, de relações de trabalho executadas sob condições sanitárias aviltantes ou, então, de práticas abusivas, as quais merecem uma análise mais cuidadosa, a exigir incursão vertical sobre a ponderação entre os deveres de lealdade e sigilo, por parte do empregado, de um lado, e, do outro, do interesse público no conhecimento dos fatos alegados, bem como se a desaprovação pública externada ultrapassa os lindes da liberdade de expressão.

A Corte Europeia de Direitos Humanos tratou de controvérsia desse jaez em Heinisch c. Allemagne, no qual a empregada — enfermeira, cuidadora de idosos — havia sido dispensada por justa causa pelo fato de ter apresentado queixa, perante as autoridades sanitárias, relativa às más condições sanitárias e de trabalho. A casa sofreu inspeção do Serviço Médico das Caixas de Seguro de Saúde — Medizinischer Dienst der Krankenkassen (MDK) [9] , que constatou carência de pessoal, normas aplicadas insatisfatoriamente e qualidade deficitária dos cuidados prestados. O abrigo foi posteriormente reestruturado.

Mesmo assim, no âmbito doméstico, os tribunais alemães chancelaram a justa causa, ao fundamento de que teria havido quebra do dever de lealdade.

Instada a manifestar-se, a Corte Europeia entendeu que: 1) a particular vulnerabilidade dos pacientes idosos e a necessidade de evitar abusos revelavam o interesse público nas informações; 2) a empregada havia advertido repetidamente seu empregador sobre os problemas antes de apresentar a sua queixa; 3) as questões denunciadas tinham base factual, comprovada, inclusive, pelo Medizinischer Dienst der Krankenkassen (MDK); 4) a trabalhadora agira de boa-fé; 5) suas alegações não constituíam um ataque pessoal gratuito a seu empregador; 6) malgrado as alegações feitas pela trabalhadora tenham prejudicado a reputação da empresa, o interesse público em revelar as deficiências no cuidado dos idosos superava a proteção da reputação e dos interesses da empresa; e 7) a empregada foi submetida à pena mais severa prevista pela legislação trabalhista, que poderia repercutir negativamente em sua carreira e ter um forte efeito de dissuasão noutros trabalhadores, que se veriam desencorajados a fazer denúncias em favor de pacientes vulneráveis que não poderiam fazer valer seus direitos.

Desse modo, entendeu-se que a dispensa fora desproporcional e que os tribunais germânicos não conseguiram encontrar um equilíbrio justo entre a necessidade de proteger ao mesmo tempo a reputação e a liberdade de expressão dos protagonistas da relação de emprego, razão pela qual o empregador foi condenado a pagar, em favor da empregada, uma multa no valor de dez mil euros a título de reparação do dano extrapatrimonial [10].

Em Portugal, o Tribunal da Relação do Porto definiu que o trabalhador não quebrava o dever de lealdade ao empregador se denunciasse fatos que configurassem violação de obrigações legais concernentes às condições de higiene e salubridade do local de trabalho. Todavia, se o fizesse, assumiria o ônus de provar a veracidade das suas afirmações, pena de configurar-se violação ao dever de lealdade e lesão à honra e à boa fama do empregador [11].

O breve apanhado do cenário mundial permite fixar a complexidade do tema. A valoração da conduta delatora do empregado dependerá das circunstâncias do caso concreto, que devem ser avaliadas em cotejo com as garantias constitucionalmente consagradas, sem perder de mira o substrato ético da liberdade de expressão. Ao empregado, como abaliza a doutrina italiana, é outorgado uma espécie de "direito de crítica" [12], mas cujo exercício — como sói acontecer com todo e qualquer direito — é limitado por outros axiomas caros ao Estado democrático de Direito.

Há de se avaliar, além de outros critérios, a proporcionalidade da medida; a existência de dados sensíveis, os quais estão protegidos pela LGPD; a gravidade do descumprimento contratual e em que medida o exercício da liberdade de expressão servirá como anteparo de mudanças. A doutrina, nesse sentido, recomenda "alguma prudência na matéria, evitando, por um lado, uma importação de modelos legais que pressupõem um mundo cultural diverso e, por outro, reservando-se a tutela do denunciante a situações graves, em que esteja em jogo um interesse público predominante que não deva ser sacrificado em nome da estabilidade contratual e do bom ambiente laboral" [13].

 


[1] SHEFELMAN, Harold S.; COLLINS, Ronald K. L. We must not be afraid to be free – stories of free expression in America. USA: Oxford University Press, 2011. A expressão que deu título à obra consiste em excerto da decisão de Justice Black em Tinker v. Des Moines Independent Community School District (393 U.S. 503 (1969)).

[2] SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes, 1943.

[3] 249 U.S. 47 (1919)

[4] De acordo com as suas palavras: "The most stringent protection of free speech would not protect a man in falsely shouting fire in a theatre and causing a panic. … The question in every case is whether the words used are used in such circumstances and are of such a nature as to create a clear and present danger that they will bring about the substantive evils that Congress has a right to prevent. It is a question of proximity and degree" (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Schenck v. United States, 249 U.S. 47 (1919)).

[5] Dizem o texto do caput e item 1 do citado dispositivo: "Artículo 13. Libertad de Pensamiento y de Expresión. 1. Toda persona tiene derecho a la libertad de pensamiento y de expresión. Este derecho comprende la libertad de buscar, recibir y difundir informaciones e ideas de toda índole, sin consideración de fronteras, ya sea oralmente, por escrito o en forma impresa o artística, o por cualquier otro procedimiento de su elección. 2. El ejercicio del derecho previsto en el inciso precedente no puede estar sujeto a previa censura sino a responsabilidades ulteriores, las que deben estar expresamente fijadas por la ley y ser necesarias para asegurar: a) el respeto a los derechos o a la reputación de los demás, o b) la protección de la seguridad nacional, el orden público o la salud o la moral públicas". (COSTA RICA. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Pacto de San Jose).

[6] No original: "ARTICLE 10 Liberté d’expression […] 2. L’exercice de ces libertés comportant des devoirs et des responsabilités peut être soumis à certaines formalités, conditions, restrictions ou sanctions prévues par la loi, qui constituent des mesures nécessaires, dans une société démocratique, à la sécurité nationale, à l’intégrité territoriale ou à la sûreté publique, à la défense de l’ordre et à la prévention du crime, à la protection de la santé ou de la morale, à la protection de la réputation ou des droits d’autrui, pour empêcher la divulgation d’informations confidentielles ou pour garantir l’autorité et l’impartialité du pouvoir judiciaire". (ITÁLIA. Convention de sauvegarde des droits de l’homme et des libertés fondamentales Rome, 4.XI.1950)

[7] É o mesmo que diz o item 5 do artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, verbis: "5. Estará prohibida por la ley toda propaganda en favor de la guerra y toda apología del odio nacional, racial o religioso que constituyan incitaciones a la violencia o cualquier otra acción ilegal similar contra cualquier persona o grupo de personas, por ningún motivo, inclusive los de raza, color, religión, idioma u origen nacional". Idem.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.424, rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.

[9] Tratava-se do de avaliação médica e de enfermagem para seguro obrigatório de saúde e enfermagem. Desde 1º de julho de 2021, os MDK foram organizados em nível estadual e operam sob o nome de "Serviço Médico" (Medizinischer Dienst).

[10] "Il s’ensuit que le licenciement sans préavis de la requérante était disproportionné et que les tribunaux internes n’ont pas ménagé un juste équilibre entre la nécessité de protéger la réputation de l’employeur de l’intéressée et celle de protéger la liberté d’expression de la requérante". (FRANÇA. Cour européenne des droits de l’homme. Heinisch c. Allemagne — 28274/08. Arrêt 21/7/2011 [Section V])

[11] "VIOLAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE HIGIENE E SALUBRIDADE DENÚNCIA DEVER DE LEALDADE SUSPENSÃO DO DESPEDIMENTO Sumário I- O trabalhador não está impedido, nem isso viola o dever de lealdade para com o empregador, de denunciar situações que consubstanciem violação, por parte do deste, de obrigações legais que sobre ele impendam, designadamente em matéria de condições de higiene e salubridade do local de trabalho. II- Porém, efetuada tal denúncia, competirá ao trabalhador a prova da veracidade dos factos denunciados, sob pena de, não a fazendo, violar os deveres de lealdade, de respeito e de defesa do bom nome da sua entidade empregadora. III- Não constitui probabilidade séria de inexistência de justa causa suscetível de determinar a suspensão do despedimento o comportamento do trabalhador que efetua, perante autoridade que julga competente, denuncia de irregularidades (no caso, e no essencial, falta de higiene do local de trabalho) cometida pelo empregador e que determina, inclusivamente, uma ação inspetiva, se da matéria de facto dada como indiciariamente demonstrada não resulta a veracidade dos factos denunciados" (PORTUGAL. Tribunal da Relação do Porto. Apelação nº 346/11.2TTVRL.P2 — 4ª Sec. Data — 8/10/2012 Paula Leal de Carvalho Maria José Costa Pinto António José Ramos).

[12] PAPA, VERONICA. Il diritto di critica del rappresentante dei lavoratori per la sicurezza: una lettura costituzionalmente orientata, In: Rivista italiana di diritto del lavoro, 2010,v. 29, f. 4, pp. 806-813.

[13] GOMES, Júlio Manuel Vieira. Um direito de aleta cívico do trabalhador subordinado? (ou a proteção laboral do whistleblower). In: Revista de Direito e Estudos Sociais, Almedina, Ano LV, 2014, pp. 127-160, p. 159-160.

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