Opinião

Recomendação 123 do CNJ: qual é o controle de convencionalidade?

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

13 de fevereiro de 2022, 17h21

Inexiste ceticismo sobre a Recomendação 123 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), datada de 7 de janeiro deste ano, constituir desenvolvimento profícuo e oportuno na nem sempre fácil relação entre o ordenamento brasileiro e o internacional. Nela, juízes e juízas brasileiros são chamados a observar os standards internacionais de proteção e agilizar as reparações das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH). Em suma, o prestigioso órgão do Poder Judiciário roga maior ciência e advertência ao Direito oriundo de São José, Costa Rica, vez que é diretriz estratégica do Poder Judiciário e compromisso de todos os tribunais brasileiros dar concretude aos direitos previstos em tratados, convenções e demais instrumentos internacionais sobre a proteção dos direitos humanos.

Não apenas a reputação internacional do Brasil está em jogo, mas também seu adimplemento a obrigações jurídicas internacionalmente assumidas e — diferentemente do que pensam alguns — passíveis de responsabilização. A iniciativa do CNJ nesse sentido merece todos os louros. Ela objetiva diminuir tensões fomentadas cá e lá quando, eventualmente, valores troppo caros ao ordenamento colidem com a interpretação oferecida pela Corte Interamericana — ou outra corte internacional. Esforça-se em tornar menos agrestes os rincões que separam o ordenamento brasileiro do internacional, chamando um dos principais protagonistas — a juíza ou o juiz — a irrigar sua prática quotidiana com padrões protetivos que se consolidaram num permanente combate pelas garantias de standards mínimos internacionalmente pensados e fortalecidos.

Contudo, nos termos em que formulada, a recomendação faz emergir três questionamentos: a) o que ela realmente está recomendando aos juízes e juízas?; b) qual é o peso da jurisprudência da CtIDH nesse exercício? e c) o que entende o CNJ por "controle de convencionalidade de leis internas"? Este ensaio busca refletir sobre a redação da Recomendação 123 do CNJ, questionando-se o quão alinhada ela se encontra aos posicionamentos mais avançados da Corte Interamericana sobre a questão do dever do juiz brasileiro aplicar o Direito interamericano.

O artigo 1º da recomendação desmembra-se em três sugestões. Primeiro, recomenda aos órgãos do Poder Judiciário "a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil", redação que reforça a máxima pacta sunt servanda. Porém, tal observância é acompanhada da sugestão da "utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos", acrescentando "a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas".

Se o primeiro elemento da redação é translúcido em relação ao dever de cumprimento de obrigações, os dois segundos não são desprovidos de incerteza. O que entende o CNJ por "utilização da jurisprudência"? Em qual caráter deve ser a jurisprudência utilizada? Para fins ilustrativos, de modo a demonstrar que a juíza está ciente da matéria na jurisprudência interamericana, ou com fins autoritativos, oriundo de uma interpretação da obrigação de controle de convencionalidade? São, no fim das contas, as opiniões consultivas e sentenças interamericanas precedentes de igual valor? A jurisprudência interamericana sutilmente pretende sugerir que sim [1].

Recentemente a corte recordou que "as distintas autoridades estatais, incluindo os juízes e órgãos vinculados à administração da justiça, possuem a obrigação de exercer ex officio um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana (…)". Contudo, a corte vai além, pois "as autoridades internas devem levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação do mesmo realizada pela Conte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana" [2]. No passado, a CtIDH não fez distinção entre seus pronunciamentos em sede contenciosa ou consultiva.

O segundo questionamento visa saber a qual controle de convencionalidade o CNJ se refere. Em seus considerandos, a recomendação reiterou que a CtIDH já notou que existe "o dever de controlar a convencionalidade pelo Poder Judiciário", definindo-o como uma obrigação que "cabe aos juízes e juízas aplicar a norma mais benéfica à promoção dos direitos humanos no equilíbrio normativo impactado pela internacionalização cada vez mais crescente e a necessidade de se estabelecer um diálogo entre os juízes". Todavia, o controle de convencionalidade não necessariamente coincidirá com o entendimento da norma "mais benéfica", um conceito que, a depender do caso concreto, é dotado de alguma discricionariedade (para não dizer subjetividade). Contudo, o controle de convencionalidade tout court pressupõe o alinhamento da jurisprudência doméstica à jurisprudência da Corte Interamericana.

É verdade que um dos critérios interpretativos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Artigo 29) é a noção de interpretação pro persona. Mas pressupor que a jurisprudência da corte necessariamente coincida com a norma mais benéfica parece desconsiderar outros valores importantes na adjudicação de uma controvérsia. Nesse sentido, a recomendação do CNJ parece afastar-se do puro alinhamento à CtIDH e coadunar-se com a parte da doutrina que tende a defender que um conflito entre o standard estabelecido pela corte e o ordenamento interno deve ser resolvido com o uso da norma mais protetiva [3].

O terceiro questionamento diz respeito à redação da terceira sugestão "necessidade de controle de convencionalidade das leis internas". Cuida-se de referência geral ao controle de convencionalidade ou de uma limitação do âmbito de ação do juiz brasileiro? Só pode o juiz brasileiro controlar a convencionalidade das leis, ou analogias do controle de constitucionalidade aplicar-se-iam? Estaria o CNJ posicionando-se de forma contrária à própria interpretação da Corte Interamericana que entende que todos os atos e omissões do Estado — e não apenas atos do legislativo — devem passar pelo crivo convencional?

Além desses questionamentos, não há controle de convencionalidade em relação à interpretação constitucional? Em recente voto (ADPF 496), o ministro Barroso conduziu diligentemente controle de convencionalidade e, em paralelo, controle de constitucionalidade. Concluiu pela inexistência de incompatibilidade entre o crime de desacato e a convenção. Mas e no caso de colisão entre as posições (e.g. leis da anistia)? A recomendação não resolve – e certamente não era essa a sua proposta — a situação de conflito entre a Constituição e a Convenção Americana. Mas essa também seria uma diretiva que juristas brasileiros devem ponderar a respeito.

A recomendação soleva problemas para as quais a casuística futura oferecerá resposta. Podem ser esses questionamentos meramente retóricos, mas a Recomendação 123 do CNJ é inovador dado da prática do Estado brasileiro que esclarece parcialmente o posicionamento do Brasil em relação a certas divergências e avanços na jurisprudência da Corte de San José.

Sua implementação (e referência no interior do Poder Judiciário) deve ser monitorada para que se possa mesurar seu impacto na dinâmica entre osordenamentos internacional e brasileiro. Permanece o ensinamento do professor Benedetto Conforti de que são também os juízes a darem vida à prática do Estado e, portanto, capazes de influenciar o Direito Internacional diretamente. Sua lição reforça a importância da Recomendação 123 do CNJ, mas chama à reflexão sobre qual controle de convencionalidade desejamos.

 


[1] Sobre essa questão, ver as reflexões do professor GALINDO, G. R. B.. O valor da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Galindo, George Rodrigo Bandeira; Urueña, René; Torres Pérez, Aida. (Org.). Proteção Multinível dos Direitos Humanos. Manual. 1ed.Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, 2014, v. 1, p. 235-258. Ver também LIMA, L. C.; FELIPPE, L. M.. A expansão da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos através de opiniões consultivas. ANUARIO MEXICANO DE DERECHO INTERNACIONAL, 2021, v. 21, p. 125-166.

[2] Corte IDH. Caso Casa Nina Vs. Perú. 2020. para. 139. Traduzido pelo autor.

[3] Ver, a título de exemplo, RAMOS, André de Carvalho. Control of Conventionality and the Struggle to Achieve a Definitive Interpretation of Human Rights: The Brazilian Experience. Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2016, v. 64, p. 11-32.

Autores

  • é professor de Direito Internacional Público na UFMG, doutor em Direito Internacional pela Università degli Studi di Macerata (com períodos de pesquisa na University of Cambridge e no Max Planck Institute Luxemburg), coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG e diretor da ILA-Brasil.

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