Opinião

Quem deve regular a liberdade de expressão? A sociedade ou o Estado?

Autor

  • Marcus Pinto Aguiar

    é mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE) advogado doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UnB/Flacso Brasil professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Direito da Ufersa e membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)

12 de fevereiro de 2022, 6h33

Os conflitos de opinião são mais do que comuns no seio de uma sociedade plural e no contexto de uma temporalidade que fomenta a livre manifestação de ideias, pressuposto essencial de uma ambiência democrática, na qual as liberdades de expressão podem ser consideradas relevantes exteriorizações da personalidade de cada ser humano.

Além disso, a importância da liberdade de expressão pode ser atribuída também aos benefícios que tem trazido à sociedade como um todo, sendo um desses sua aplicação como meio de busca da verdade. 

Aqui, parte-se do princípio que não há uma verdade única, absoluta, e que todos se esforçam em construí-la por meio dos diferentes discursos que se põem uns diante dos outros, cabendo refutação e acolhimento, segundo Sankievicz.

De acordo com a opção política que é feita na condução do Estado, este poderá se portar como um ator que observa as múltiplas expressões de manifestações que se exteriorizam livremente no convívio diário entre os membros da sociedade, interferindo apenas a partir do momento em que sejam ultrapassados os limites estabelecidos pelos valores acolhidos e determinados pelas pessoas, que geralmente implica na ofensa à liberdade de outros. Nesse contexto, a sociedade se autodetermina e o Estado é mínimo, no que se refere à ingerência na liberdade de expressão.

Esse modelo atribui às próprias pessoas a responsabilidade direta por seus atos, isto é, dá-lhes direitos e liberdades, mas também deveres e obrigações, situando a responsabilidade como elo entre as diversas expressões, de forma que, numa situação ideal, todos podem se manifestar, mas devem procurar não violar a dignidade do outro, nem seus direitos, entendendo claramente que nenhum direito pode ser tomado como absoluto.

Entre as manifestações exacerbadas da liberdade de expressão, apenas como exemplo, e que muitas polêmicas têm causado na atualidade, encontra-se o denominado "discurso do ódio" (hate speech), enquanto manifestação ofensiva à dignidade humana, impedindo não apenas o exercício de direitos do ofendido, mas também atingindo e entorpecendo sua autoestima e sua liberdade de participação na esfera pública.

Entretanto, as discussões maiores giram em torno da legitimidade ou não da intervenção do Estado para coibir a liberdade de expressão do comunicador do discurso, desde que ele não ultrapasse o limite da incitação à violência.

Nesse aspecto, o sistema norte-americano privilegia a liberdade de expressão, coibindo o discurso do ódio quando ele pode implicar numa conduta ilegal, desde que o perigo seja "claro e iminente", e não baseado em suposições sem consistência. Por outro lado, esse modelo reforça a liberdade da parte ofendida para se manifestar por meio do "debate aberto e livre", de acordo com Meyer-Pflug.

Uma questão relevante que se põe neste momento é: quem deve agir para reprimir essas condutas ofensivas ao indivíduo e à coletividade? É dever do Estado ou a ele não cabe intervir, de forma que a própria sociedade restabeleça a harmonia por meio de relações dialéticas e dialógicas?

O debate acerca da liberdade de expressão nos Estados Unidos da América tem sido paradigmático em face da valorização que o Estado e a sociedade norte-americanos têm dado ao mesmo, de modo a se verificar a concorrência primária de duas abordagens em relação à liberdade de expressão.

Uma primeira corrente, de cunho liberal, entende a intervenção do Estado no "mercado de ideias" como prejudicial à livre manifestação de opiniões, pois este tende a privilegiar as opções que mais lhe interessem politicamente, restringindo, assim, o espaço de desenvolvimento.

Já a outra corrente defende a intervenção estatal, acreditando que a regulação promove a inserção social e é capaz de fomentar a democracia neste ambiente plural contemporâneo, conforme nos mostra Sarmento.

Nos EUA há uma forte tendência de privilegiar a liberdade de expressão no sentido da mínima intervenção do Estado, de forma a permitir que todos possam livremente expressar seus pensamentos, opiniões e ideias, entendendo que a própria sociedade tem a capacidade e legitimidade de rechaçar os discursos que lhes são nocivos.

Todavia, mesmo apoiados nessa tese liberal, há também hoje preocupações na objetivação das decisões de sua Corte Suprema de modo a evitar os perigos do extremismo e fundamentalismo de ideias que se apresentam na sociedade.

Quer o fundamento da liberdade de expressão seja a promoção do desenvolvimento individual, ou a busca da verdade, ou o fortalecimento democrático, as posições liberais e as intervencionistas em relação a essa liberdade trazem questões de difícil enfrentamento, que precisam ser resolvidas de forma colaborativa entre o Estado e a sociedade, de modo que as pessoas se sintam comprometidas e responsáveis pelos valores que elas mesmas escolhem para pautar sua existência comunitária.

A regulação do Estado pode também ser positiva ao permitir à inclusão de qualquer expressão individual, especialmente as vozes que não têm poder econômico suficiente para se fazer ouvir, fato que geralmente ocorre quando o "mercado de ideias" se autorregula, na maior parte das vezes com intenções economicistas, sem atentar verdadeiramente para a plural e livre expressão de pensamentos, própria de uma sociedade democrática.

A valorização do debate nos Estados Unidos sobre a liberdade de expressão é tal que o governo, por meio de sua Corte Suprema, divulga os temas relacionados ao conhecimento do free speech (liberdade de expressão), de modo a manter ativa a participação da sociedade no debate sobre a matéria (EUA).

Com base no princípio da fundamental importância da proteção à liberdade de expressão, conforme disposto na First Amendment, a Corte Suprema norte-americana a tem considerado uma "liberdade preferencial", à qual usualmente se atribui um peso superior na ponderação com outros direitos.

As considerações aqui apresentadas sugerem a necessidade de um diálogo mais amplo e a colaboração entre sociedade e Estado para que as questões relativas à liberdade de expressão não sejam ressaltadas apenas quando surgem conflitos judicializados, nem manifestações sociais de cunho moralizantes, posições muitas vezes extremadas que despertam um apelo midiático estéril, contribuindo apenas para exacerbar polarizações e desagregação social.

 

Referências bibliográficas
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América. Cornell University Law School, Legal Information Institute. Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/constitution/first_amendment>. Acesso em: 07.fev.2022.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). United States Courts. What does free speech means? Disponível em: <http://www.uscourts.gov/educational-resources/get-involved/constitution-activities/first-amendment/free-speech.aspx>. Acesso em: 07.fev.2022.

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.148.

SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão e pluralismo: perspectivas de regulação. Saraiva: São Paulo, 2011, p.26.

SARMENTO, Daniel. Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional do Estado. Revista Diálogo Jurídico, n º. 16, maio / junho / julho / agosto de 2007. Salvador: Revista Diálogo Jurídico, 2007, p.5.

Autores

  • é advogado, mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACO Brasil, professor da Faculdade Alencarina de Sobral (FAL) e do Mestrado em Direito da UFERSA e membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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