Inconstitucionalidades formais e materiais da PEC 159/2019
12 de fevereiro de 2022, 10h16
Os fundamentos trazidos pela autora da PEC 159/2019 foram:
A mencionada elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era. Imperativo, por conseguinte, reverter o equívoco cometido, revogando a EC 88/2015 e o artigo 100 por ela acrescentado ao ADCT. Por se tratar de questão relevante para a prestação jurisdicional, conto com o apoiamento dos nobres pares à apresentação, tramitação e aprovação desta proposição.
Como se sabe, o Poder Constituinte Derivado de reforma (PCDr) serve à modificação do texto constitucional ao longo do tempo havendo limites e condicionamentos conferidos pelo Poder Constituinte Originário.[2]
O PCDr se divide em duas espécies a "revisão (reforma geral ou global do texto) e as emendas (reformas pontuais do texto)".[3] Nessa linha, as limitações ao PCDr são de quatro ordens: temporais, circunstanciais, formais e materiais.[4] Este artigo se restringe as limitações formais e materiais.
As limitações formais ou procedimentais significam o respeito ao procedimento específico quanto ao modo de apresentação de propostas de alteração da Constituição e de tramitação processual, cuja mudança, via emenda constitucional, se verifica no artigo 60 da CF/88.[5]
A referida PEC 159/2019 viola o artigo 100, § 2º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pois o suposto fundamento da PEC 159/2019 não é claro, uma vez que não há qualquer comprovação teórico-prática da afirmação de que a "mencionada elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era. Imperativo, por conseguinte, reverter o equívoco cometido, revogando a EC 88/2015 e o artigo 100 por ela acrescentado ao ADCT". Desse modo, a PEC 159/2019 é inconstitucional do ponto de vista formal.
As limitações substanciais ou materiais são as que obstam a colocação de matérias na Constituição (limites materiais de ordem inferior[6]) ou impedem a subtração de matérias postas no texto constitucional (limitação material de ordem superior).[7] A limitação material de ordem superior é exemplificada com as cláusulas pétreas inseridas na CF/88, como se infere do artigo 60, § 4º, do vigente texto constitucional pátrio.
Além das limitações materiais explícitas acima, temos as limitações materiais implícitas, aquelas não contidas expressamente no texto do art. 60, § 4º, da CF/88, por exemplo, não se pode: (i) revogar o § 4º do artigo 60 da CF/88; (ii) modificar os titulares e o procedimento do PCDr; (iii) impossibilidade de se revogar os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil alinhavados nos arts. 1º-4º da CF/88.[8]
Ressalte-se que as limitações materiais, implícitas ou explícitas, do PCDr e limitação material permitem a alteração da Constituição nas hipóteses de ampliação e de sofisticação do tema[9]–[10] e abarcam direitos individuais e sociais.
Quatro são as premissas para analisar os "fundamentos" da PEC 159/2019, lastrando-se em três premissas:
1 – "a teoria do Poder Constituinte tem uma razão de ser: Precisa justificar e legitimar a origem do poder político, fora dos contextos eclesiásticos ou aristocráticos dos modelos tradicionais".[11]
2 – "Sabemos hoje que uma Constituição não é constitucional se não for democrática; que a democracia só é democrática se observar os limites constitucionais e que o Estado só pode ser centro da esfera pública se não for privatizado pela administração, ou seja, se e quando efetivamente atua em defesa do interesse de todos, na observância da Constituição (que só assim pode lhe fornecer legitimidade), e não na defesa dos interesses de determinado grupo".[12]
3 – "O tempo da Constituição é o tempo da sua aplicação — o qual articula passado, presente e futuro. Entretanto, mudanças constitucionais frequentes podem abalar a força normativa da constituição (sobretudo se tratarem de temas sensíveis). Logo, é necessário equilibrar a necessidade de adaptações da constituição à realidade, bem como sua proteção".[13]
A falta de clareza na fundamentação da PEC 159/2019 evidencia que a "motivação principal a possibilidade de indicação política de ministros do STF por parte do chefe do Poder Executivo". "Não queremos esmiuçar as contingências políticas que estão na base do debate público e nem as repercussões da eventual aprovação da PEC. O que importa, sob a perspectiva da teoria do direito, é indagar: a Constituição importa? Se sim, o seu texto pode/deve ser alterado de acordo com a vontade política do dia?"[14]
Mais perguntas de Lenio e de Luã:
Emendas ao fundamento normativo da República, quanto mais a respeito do Poder Judiciário, não necessitam de qualquer prognose?
No caso em tela, o que significa afirmar que a carreira da magistratura é "estagnada"? Quais são as consequências estruturais positivas para o desenho institucional do serviço público que a alteração proposta implicará?
Reflitamos: uma PEC é algo tão importante que exige quórum especial. Muda o contrato social, do qual a Constituição é a explicitação item por item.
Reflitamos: uma PEC é algo tão importante que exige quórum especial. Muda o contrato social, do qual a Constituição é a explicitação item por item.
Nós juristas estamos acostumados a ouvir comentários de jornalistas, economistas e políticos acerca dos excessos do Judiciário no que tange à interpretação das leis e da Constituição.
De há muito escrevemos sobre a distinção entre judicialização e ativismo, entre decidir por princípio ou simplesmente fazer política etc. Preocupamo-nos, assim, no mais das vezes, com o aprimoramento da racionalidade interpretativa e decisória.
O caso da PEC da Bengala, todavia, coloca-nos diante da outra face da moeda: afinal, o Poder Legislativo não possui qualquer responsabilidade em termos de justificação de suas escolhas? [15]
Não se está a dizer que a fundamentação dos projetos de emenda à Constituição ou os projetos de lei devem cumprir o dever de fundamentação obrigatório ao Poder Judiciário, inferido do artigo 93, IX, da CF/88 e dos artigos 489 e 926 do Código de Processo Civil (CPC).
Além disso, seja o Poder Legislativo também deve observar os princípios (núcleo de materialidade da Constituição, instituidor das regras e de aplicação deontológica[16]) que regem o Direito brasileiro, até porque uma "Constituição constitui uma comunidade de princípios; uma comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como iguais em suas diferenças e livres no igual respeito e consideração que devotam a si próprias como titulares destas diferenças".[17]
O que se pretende é que o Poder Legislativo, no exercício das suas funções, leve a legislação a sério, isto é, que encaminhe propostas de alteração legislativa constitucional e infraconstitucional que se importem a Constituição (texto e contexto) e que possibilitem o debate na esfera pública de forma, minimamente racional. Racional entendido como a possibilidade de se compreender as razões fundadas em dados comprovados da realidade que se quer alterar, mormente via emenda constitucional.
Em outras palavras, com Lenio e Luã, pedir a "racionalização da elaboração de textos legais, todavia, não é contraditória com a ideia de uma jurisdição pautada por princípios", [18] como defende Waldron a dignidade da legislação.[19]
Novamente com razão Lenio e Luã: "o Direito e a Constituição importam, e se a sua aplicação pelos tribunais exige discursos de fundamentação e critérios universalizáveis, a sua inovação e alteração pelo Congresso também o exige".[20]
A composição do STF e dos demais órgãos e carreiras atingidas com a PEC 159/2019 não pode estar sujeita à volatilidade da vontade de quem está no com mandato parlamentar no Congresso Nacional, o que fragiliza "a independência e estabilidade necessárias ao cumprimento das funções do Poder Judiciário atribuídas pelo texto constitucional". "E, assim, enfraquecemos a nossa democracia."[21]
Desse modo e de maneira evidente, a PEC 159/2019 ofende não só o dever de fundamentação que uma PEC deve ter, por ausência de critérios universalizáveis e que respeitem princípios constitucionais em sua fundamentação, o que viola a democracia (CF, artigos 1º, caput e § único), bem como vulnera a separação de poderes (CF/88, artigo 2º).
A democracia é atacada por não permitir a compreensão, via cotejo da "fundamentação" trazida na PEC 159/2019 com a realidade que ela pretende mudar, por absoluta falta de dados empíricos sobre o que se afirma na citada PEC. O texto da PEC 159/2019 interdita a possibilidade de debate na esfera pública das razões pelas quais a Constituição deva ser alterada para retomar a idade de 70 anos para a aposentadoria compulsória de membros do Ministério Público, das Defensorias Públicas, dos Tribunais e Conselhos de Contas.
A separação de poderes é atacada pelos seguintes fundamentos:
1 – A PEC 159/2019 ataca a função jurisdicional não se enquadra como regime jurídico administrativo, com os(as) magistrados(as) sendo órgão do Poder Judiciário (CF/88., art. 92) e que devem se submeter à regulação funcional e previdenciária posta na Constituição e na legislação.[22]
2 – Isso porque restringe o exercício do Poder Jurisdicional ao findar a jurisdição de juízes (as) pelo limite de idade. [23]
3 – No que tange ao STF, o Ministro Ricardo Lewandowski e a Ministra Rosa Weber, que têm hoje 73 anos, se aposentariam compulsoriamente, abrindo vaga para a nomeação de dois novos ministros(as) pelo atual Presidente da República em pleno ano eleitoral no qual ele deve concorrer à reeleição. Como não se sabe quando estas indicações e nomeações ocorreram, vide a demora na indicação, na sabatina pelo Senado e a nomeação do Ministro André Mendonça, o STF poderá ficar desfalcado de dois membros, o que prejudica a prestação jurisdicional. [24]
Ante o exposto, a PEC 159/2019 fere limitações formais e limitações materiais, a ensejar a sua inconstitucionalidade da PEC 159/2019.
[2] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 13.ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 145.
[3] Idem.
[4] Ibidem.
[5] Idem.
[6] CANOTILHO, J.J Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1030.
[7] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 146.
[8] CHUEIRI, Vera Karam de; MOREIRA, Egon Bockmann; CÂMARA, Heloisa Fernandes; GODOY, Miguel Gualano de. Fundamentos de direito constitucional: novos horizontes brasileiros. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 185.
[9] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 150.
[10] Sobre os questionamentos acerca da possibilidade de existência de limitações materiais veja FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 152-160.
[11] STRECK, Lênio. E o juiz mineiro "azdakiou" ou "Eis aí o sintoma da crise". Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-nov-01/senso-incomum-juiz-mineiro-azdakiou-ou-eis-ai-sintoma-crise Acesso em 09fev2022.
[12] CARVALHO NETTO, Menelick. Prefácio A “Poder Constituinte e patriotismo constitucional, de Marcelo Cattoni. A urgente revisão da teoria do poder constituinte: da impossibilidade da democracia possível. In: CARVALHO NETTO, Menelick. Teoria da constituição e direito constitucional: escritos selecionados. Belo Horizonte: Conhecimento, 2021, p. 205-214, p. 208.
[13] CHUEIRI, Vera Karam de; MOREIRA, Egon Bockmann; CÂMARA, Heloisa Fernandes; GODOY, Miguel Gualano de. Fundamentos de direito constitucional: novos horizontes brasileiros, p. 181.
[14] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA A febre legislativa das PECs, Propostas Especiais de Charlatanismo. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pec-da-bengala-febre-legislativa-propostas-especiais-charlatanismo-26112021 Acesso em 10fev2022.
[15] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.
[16] STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 266-271.
[17] CARVALHO NETTO, Menelick. Prefácio, p. 209.
[18] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.
[19] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 20.
[20] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.
[21] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.
[22] ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019: um risco à função jurisdicional. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/355770/pec-159-2019-um-risco-a-funcao-jurisdicional Acesso em 10fev2022.
[23] ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019.
[24] Nesse sentido: ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019.
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