Diário de Classe

Inconstitucionalidades formais e materiais da PEC 159/2019

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12 de fevereiro de 2022, 10h16

Foi aprovada na CCJC da Câmara a PEC 159/2019, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), que volta a fixar em 70 anos a idade para a aposentadoria compulsória para diversos(as) operadores(as) do Direito, inclusive ministros(as) do Supremo Tribunal Federal (STF). A citada PEC 159/2019 pretende alterar a redação do artigo 40, § 1º, II, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e revogar o artigo 100 do Atos das Disposições Constitucionais.

Os fundamentos trazidos pela autora da PEC 159/2019 foram:

A  Emenda  Constitucional  nº  88,  de  2015,  conhecida  como "PEC  da  Bengala",  introduziu  na  Carta  Política  autorização  para  que  a  idade para  aposentadoria  complementar  pelo  regime  próprio  de  previdência  social fosse  elevada,  por  lei  complementar,  de 70  para 75  anos,  bem  como acrescentou  ao  Ato  das  Disposições  Constitucionais  Transitórias  artigo determinando  que,  enquanto  não  editada  a  referida  lei  complementar,  seria  de 75  anos  a  idade  para  aposentadoria  compulsória  dos  Ministros  do  Supremo Tribunal Federal,  dos  Tribunais Superiores  e  do  Tribunal de  Contas  da  União.

A mencionada elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era. Imperativo, por conseguinte, reverter o equívoco cometido, revogando a EC 88/2015 e o artigo  100 por ela acrescentado ao ADCT. Por se tratar de questão relevante para a prestação jurisdicional, conto com o apoiamento dos nobres pares à apresentação, tramitação e aprovação desta proposição.

Como se sabe, o Poder Constituinte Derivado de reforma (PCDr) serve à modificação do texto constitucional ao longo do tempo havendo limites e condicionamentos conferidos pelo Poder Constituinte Originário.[2] 

O PCDr se divide em duas espécies a "revisão (reforma geral ou global do texto) e as emendas (reformas pontuais do texto)".[3] Nessa linha, as limitações ao PCDr são de quatro ordens: temporais, circunstanciais, formais e materiais.[4] Este artigo se restringe as limitações formais e materiais.

As limitações formais ou procedimentais significam o respeito ao procedimento específico quanto ao modo de apresentação de propostas de alteração da Constituição e de tramitação processual, cuja mudança, via emenda constitucional, se verifica no artigo 60 da CF/88.[5]

A referida PEC 159/2019 viola o artigo 100, § 2º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pois o suposto fundamento da PEC 159/2019 não é claro, uma vez que não há qualquer comprovação teórico-prática da afirmação de que a "mencionada elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era. Imperativo, por conseguinte, reverter o equívoco cometido, revogando a EC 88/2015 e o artigo 100 por ela acrescentado ao ADCT". Desse modo, a PEC 159/2019 é inconstitucional do ponto de vista formal.

As limitações substanciais ou materiais são as que obstam a colocação de matérias na Constituição (limites materiais de ordem inferior[6]) ou impedem a subtração de matérias postas no texto constitucional (limitação material de ordem superior).[7] A limitação material de ordem superior é exemplificada com as cláusulas pétreas inseridas na CF/88, como se infere do artigo 60, § 4º, do vigente texto constitucional pátrio.

Além das limitações materiais explícitas acima, temos as limitações materiais implícitas, aquelas não contidas expressamente no texto do art. 60, § 4º, da CF/88, por exemplo, não se pode: (i) revogar o § 4º do artigo 60 da CF/88; (ii) modificar os titulares e o procedimento do PCDr; (iii) impossibilidade de se revogar os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil alinhavados nos arts. 1º-4º da CF/88.[8]

Ressalte-se que as limitações materiais, implícitas ou explícitas, do PCDr e limitação material permitem a alteração da Constituição nas hipóteses de ampliação e de sofisticação do tema[9][10] e abarcam direitos individuais e sociais.

Quatro são as premissas para analisar os "fundamentos" da PEC 159/2019, lastrando-se em três premissas:

1 – "a teoria do Poder Constituinte tem uma razão de ser: Precisa justificar e legitimar a origem do poder político, fora dos contextos eclesiásticos ou aristocráticos dos modelos tradicionais".[11]

2 – "Sabemos hoje que uma Constituição não é constitucional se não for democrática; que a democracia só é democrática se observar os limites constitucionais e que o Estado só pode ser centro da esfera pública se não for privatizado pela administração, ou seja, se e quando efetivamente atua em defesa do interesse de todos, na observância da Constituição (que só assim pode lhe fornecer legitimidade), e não na defesa dos interesses de determinado grupo".[12]

 3 – "O tempo da Constituição é o tempo da sua aplicação — o qual articula passado, presente e futuro. Entretanto, mudanças constitucionais frequentes podem abalar a força normativa da constituição (sobretudo se tratarem de temas sensíveis). Logo, é necessário equilibrar a necessidade de adaptações da constituição à realidade, bem como sua proteção".[13]

A falta de clareza na fundamentação da PEC 159/2019 evidencia que a "motivação principal a possibilidade de indicação política de ministros do STF por parte do chefe do Poder Executivo". "Não queremos esmiuçar as contingências políticas que estão na base do debate público e nem as repercussões da eventual aprovação da PEC. O que importa, sob a perspectiva da teoria do direito, é indagar: a Constituição importa? Se sim, o seu texto pode/deve ser alterado de acordo com a vontade política do dia?"[14]

Mais perguntas de Lenio e de Luã:

Emendas ao fundamento normativo da República, quanto mais a respeito do Poder Judiciário, não necessitam de qualquer prognose?

No caso em tela, o que significa afirmar que a carreira da magistratura é "estagnada"? Quais são as consequências estruturais positivas para o desenho institucional do serviço público que a alteração proposta implicará?

Reflitamos: uma PEC é algo tão importante que exige quórum especial. Muda o contrato social, do qual a Constituição é a explicitação item por item.

Reflitamos: uma PEC é algo tão importante que exige quórum especial. Muda o contrato social, do qual a Constituição é a explicitação item por item.

Nós juristas estamos acostumados a ouvir comentários de jornalistas, economistas e políticos acerca dos excessos do Judiciário no que tange à interpretação das leis e da Constituição.

De há muito escrevemos sobre a distinção entre judicialização e ativismo, entre decidir por princípio ou simplesmente fazer política etc. Preocupamo-nos, assim, no mais das vezes, com o aprimoramento da racionalidade interpretativa e decisória.

O caso da PEC da Bengala, todavia, coloca-nos diante da outra face da moeda: afinal, o Poder Legislativo não possui qualquer responsabilidade em termos de justificação de suas escolhas? [15]

Não se está a dizer que a fundamentação dos projetos de emenda à Constituição ou os projetos de lei devem cumprir o dever de fundamentação obrigatório ao Poder Judiciário, inferido do artigo 93, IX, da CF/88 e dos artigos 489 e 926 do Código de Processo Civil (CPC).

Além disso, seja o Poder Legislativo também deve observar os princípios (núcleo de materialidade da Constituição, instituidor das regras e de aplicação deontológica[16]) que regem o Direito brasileiro, até porque uma "Constituição constitui uma comunidade de princípios; uma comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como iguais em suas diferenças e livres no igual respeito e consideração que devotam a si próprias como titulares destas diferenças".[17]

O que se pretende é que o Poder Legislativo, no exercício das suas funções, leve a legislação a sério, isto é, que encaminhe propostas de alteração legislativa constitucional e infraconstitucional que se importem a Constituição (texto e contexto) e que possibilitem o debate na esfera pública de forma, minimamente racional. Racional entendido como a possibilidade de se compreender as razões fundadas em dados comprovados da realidade que se quer alterar, mormente via emenda constitucional.

Em outras palavras, com Lenio e Luã, pedir a "racionalização da elaboração de textos legais, todavia, não é contraditória com a ideia de uma jurisdição pautada por princípios", [18] como defende Waldron a dignidade da legislação.[19]

Novamente com razão Lenio e Luã: "o Direito e a Constituição importam, e se a sua aplicação pelos tribunais exige discursos de fundamentação e critérios universalizáveis, a sua inovação e alteração pelo Congresso também o exige".[20]

A composição do STF e dos demais órgãos e carreiras atingidas com a PEC 159/2019 não pode estar sujeita à volatilidade da vontade de quem está no com mandato parlamentar no Congresso Nacional, o que fragiliza "a independência e estabilidade necessárias ao cumprimento das funções do Poder Judiciário atribuídas pelo texto constitucional". "E, assim, enfraquecemos a nossa democracia."[21]

Desse modo e de maneira evidente, a PEC 159/2019 ofende não só o dever de fundamentação que uma PEC deve ter, por ausência de critérios universalizáveis e que respeitem princípios constitucionais em sua fundamentação, o que viola a democracia (CF, artigos 1º, caput e § único), bem como vulnera a separação de poderes (CF/88, artigo 2º).

A democracia é atacada por não permitir a compreensão, via cotejo da "fundamentação" trazida na PEC 159/2019 com a realidade que ela pretende mudar, por absoluta falta de dados empíricos sobre o que se afirma na citada PEC. O texto da PEC 159/2019 interdita a possibilidade de debate na esfera pública das razões pelas quais a Constituição deva ser alterada para retomar a idade de 70 anos para a aposentadoria compulsória de membros do Ministério Público, das Defensorias Públicas, dos Tribunais e Conselhos de Contas.

A separação de poderes é atacada pelos seguintes fundamentos:

1 – A PEC 159/2019 ataca a função jurisdicional não se enquadra como regime jurídico administrativo, com os(as) magistrados(as) sendo órgão do Poder Judiciário (CF/88., art. 92) e que devem se submeter à regulação funcional e previdenciária posta na Constituição e na legislação.[22]

2 – Isso porque restringe o exercício do Poder Jurisdicional ao findar a jurisdição de juízes (as) pelo limite de idade. [23]

3 – No que tange ao STF, o Ministro Ricardo Lewandowski e a Ministra Rosa Weber, que têm hoje 73 anos, se aposentariam compulsoriamente, abrindo vaga para a nomeação de dois novos ministros(as) pelo atual Presidente da República em pleno ano eleitoral no qual ele deve concorrer à reeleição. Como não se sabe quando estas indicações e nomeações ocorreram, vide a demora na indicação, na sabatina pelo Senado e a nomeação do Ministro André Mendonça, o STF poderá ficar desfalcado de dois membros, o que prejudica a prestação jurisdicional. [24]

Ante o exposto, a PEC 159/2019 fere limitações formais e limitações materiais, a ensejar a sua inconstitucionalidade da PEC 159/2019.


[2] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 13.ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 145.

[3] Idem.

[4] Ibidem.

[5] Idem.

[6] CANOTILHO, J.J Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1030.

[7] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 146.

[8] CHUEIRI, Vera Karam de; MOREIRA, Egon Bockmann; CÂMARA, Heloisa Fernandes; GODOY, Miguel Gualano de. Fundamentos de direito constitucional: novos horizontes brasileiros. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 185.

[9] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 150.

[10] Sobre os questionamentos acerca da possibilidade de existência de limitações materiais veja FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional., p. 152-160.

[11] STRECK, Lênio. E o juiz mineiro "azdakiou" ou "Eis aí o sintoma da crise". Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-nov-01/senso-incomum-juiz-mineiro-azdakiou-ou-eis-ai-sintoma-crise Acesso em 09fev2022.

[12] CARVALHO NETTO, Menelick. Prefácio A “Poder Constituinte e patriotismo constitucional, de Marcelo Cattoni. A urgente revisão da teoria do poder constituinte: da impossibilidade da democracia possível. In: CARVALHO NETTO, Menelick. Teoria da constituição e direito constitucional: escritos selecionados. Belo Horizonte: Conhecimento, 2021, p. 205-214, p. 208.

[13] CHUEIRI, Vera Karam de; MOREIRA, Egon Bockmann; CÂMARA, Heloisa Fernandes; GODOY, Miguel Gualano de. Fundamentos de direito constitucional: novos horizontes brasileiros, p. 181.

[14] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA A febre legislativa das PECs, Propostas Especiais de Charlatanismo. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pec-da-bengala-febre-legislativa-propostas-especiais-charlatanismo-26112021 Acesso em 10fev2022.

[15] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.

[16] STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 266-271.

[17] CARVALHO NETTO, Menelick. Prefácio, p. 209.

[18] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.

[19] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 20.

[20] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.

[21] STRECK, Lenio; JUNG, Luã. REVOGAÇÃO DA PEC DA BENGALA.

[22] ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019: um risco à função jurisdicional. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/355770/pec-159-2019-um-risco-a-funcao-jurisdicional Acesso em 10fev2022.

[23] ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019.

[24] Nesse sentido: ALBUQUERQUE, Dennys. PEC 159/2019.

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