A revogação na nova Lei de Licitações
11 de fevereiro de 2022, 8h00
Como se explicam as subjetivas e abruptas revogações de licitações mesmo em processos que demandaram meses de planejamento e justificativas expressas e sólidas?
Existem casos nos quais, após quase um ano de planejamento, de inclusão da demanda com justificativas da necessidade da contratação, pesquisa de soluções do mercado, justificativas de preços e especificações técnicas e tudo mais da fase interna, simplesmente, passa a constar no sistema de pregão, inesperadamente, um simplório aviso de revogação.
Isso logo chama atenção de interessado sensato, que de pronto requer a cópia integral dos autos do processo e, com isso, constata a verdade real e material, de que não há nos autos qualquer estudo técnico ou análise de consultoria jurídica e/ou de área demandante, ou apontamentos de itens específicos a modificar, com justificativas precisas pelas quais a licitação, de modo abrupto, passou a não ser mais necessária.
Essa é a famosa falsa conveniência e oportunidade para revogação de licitação, que ocorre com o deliberado fim de afastar o "licitante inevitável", que está com proposta correta em seus requisitos de aceitabilidade e todos os requisitos de habilitação atendidos, mas determinadas pessoas não querem aquela futura/eventual contratada. E o segundo fim dessa conduta é levar o Judiciário a "não entrar no mérito administrativo" da revogação.
Em certos casos, uma idêntica licitação, nova, mas com mesmo objeto e edital, tem publicação em menos de um mês adiante, confirmando a fraude da revogação anterior.
Mas esses ilícitos deixam rastros e não são inatingíveis como pode parecer.
"Abortar" licitação no seu último estágio em razão de "licitante indesejado" é uma flagrante violação dos princípios da legalidade, da impessoalidade e da igualdade do artigo 37 da Constituição Federal.
Basta que o legitimado, que é a pessoa jurídica ou natural que, mesmo sem ter iniciado o processo, tem direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão (artigo 9º, inciso II, da Lei nº 9.784/99), verifique nos autos do processo o seguinte:
1) A contratação estava inserida em planejamento estratégico e plano anual de contratações?
2) A contratação foi precedida de ampla pesquisa de mercado, análise técnica de soluções do mercado, mapa comparativo de preços, aprovação por áreas como a demandante, a técnica e jurídica, justificativas de demanda e outros instrumentos relacionados?
3) A revogação surgiu, de modo abrupto, com o mesmo tipo exaustivo de trabalho prévio de análise e planejamento que ocorreu quando da fase interna da licitação?
4) Ainda no mesmo contexto, a revogação adveio de processo minimamente similar ou apenas surgiu da recomendação de uma ou duas pessoas em simples e-mails com alegações genéricas e desprovidas de provas e apontamentos precisos de que será realmente necessário mudar para se alegar necessidade de revogação?
5) Constam dos autos as provas de que planejamento estratégico, plano anual de contratações, estudos e pareceres antecederam aquela estranha revogação?
6) Os motivos da revogação estão realmente indicados em pontos que serão modificados em especificações e outros aspectos que tornam impossível aproveitar o edital do certame a ser revogado? e
7) Existem nos autos, por exemplo, documentos comprovando uma efetiva desnecessidade de quantitativos e de itens, produtos ou serviços que estavam sendo licitados?
É importante lembrar que, para possibilitar a essencial fiscalização e o controle, inclusive em auditorias ou produção de provas, com finalidade disciplinar e/ou judicial, o artigo 38, §1º, da Lei nº 9.784/99 (Processo Administrativo Federal) estabelece que: "Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão".
Como adverte o Superior Tribunal de Justiça, não adianta rotular atos com o pretenso escudo de conveniência, oportunidade e interesse público, porque se um ato administrativo, ainda que seja discricionário, recebe um certo motivo específico, então, aquele motivo precisa ser comprovado nos autos, ser verdadeiro em causa e efeito para a revogação, além de aferível.
Note-se, por oportuno, a questão dos motivos determinantes que vinculam os atos:
"…Na forma da jurisprudência desta Corte, a motivação do ato administrativo deve ser explícita, clara e congruente, vinculando o agir do administrador público e conferindo o atributo de validade ao ato. Viciada a motivação, inválido resultará o ato, por força da teoria dos motivos determinantes. Inteligência do artigo 50, § 1º, da Lei nº 9.784/1999" (RMS 59.024/SC, rel. min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, DJe 8/9/2020).
(…)" (STJ – REsp 1907044/GO, relator: ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 10/8/2021, DJe 25/8/2021).
Feitas tais considerações, cabe lembrar que a Lei nº 14.133/2021 estabelece a seguinte disciplina da matéria:
"Artigo 71 — Encerradas as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os recursos administrativos, o processo licitatório será encaminhado à autoridade superior, que poderá:
(…)
II – revogar a licitação por motivo de conveniência e oportunidade;
(…)
§ 2º O motivo determinante para a revogação do processo licitatório deverá ser resultante de fato superveniente devidamente comprovado.
§ 3º Nos casos de anulação e revogação, deverá ser assegurada a prévia manifestação dos interessados.
(…)".
Por essa disciplina legal, não basta alegar, genericamente, conveniência e oportunidade, sendo impositivo que o motivo da revogação seja verdadeiro, seja decorrente de algo superveniente e com razões efetivas que justifiquem o ato de revogação, que não pode ocorrer sem provas nos autos e sem oportunidade de pronunciamento pela parte interessada, sendo essencial que a cópia integral do processo esteja previamente liberada, pois do contrário não serão respeitadas as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, resguardadas, respectivamente, nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal.
O regramento da nova Lei de Licitações sobre essa matéria da revogação, vale lembrar, é o substituto do que constava do artigo 49, caput e parágrafo terceiro, da Lei nº 8.666/83.
E fato é que, embora com algumas diferenças de texto, a matéria permaneceu na nova lei com certas balizas obrigatórias para qualquer revogação.
O que se espera é que não continue a ocorrer o que sempre ocorreu com a lei anterior, que já continha os parâmetros, mas em uma grande quantidade de casos não era respeitada, com as revogações subjetivas e apressadas, que em momento algum tinham coerência de argumentos, especificidade de motivos e nem provas dos motivos dentro dos autos de determinados processos.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!