Interesse Público

Por um Direito ainda relevante na vida digital

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

10 de fevereiro de 2022, 8h00

Diria a tribo das redes sociais e do marketing digital que o chamado Direito Digital é o new trend [1]. No plano normativo temos a recém-editada Lei 14.129/2021, identificada como a Lei do Governo Digital [2], e ainda em tramitação o PL 21/2020, já aprovado na Câmara e hoje no Senado, regulando a matéria da inteligência artificial. No universo acadêmico, há igualmente um frisson no trato de temas de Direito Digital, multiplicando-se os cursos, lives, livros, tudo amplificando a matéria que é, sim, de extraordinária relevância. Penso, todavia, que, atendendo a uma inclinação que é quase natural aos profissionais no Direito, o debate tem padecido de uma simplificação que pode ser o recurso intuitivo para incorporar uma nova ordem das coisas que se percebe relevante, mas que é totalmente estranha aos conceitos e padrões de operação típicos do Direito. Este ensaio sublinha isso, para provocar uma reflexão mais ampla que precisa anteceder à ideia de construção de uma resposta do Direito aos desafios propostos pelo ambiente digital.

Spacca
Uma primeira ideia que é preciso debater diz respeito a uma inadaptação inicial do Direito como ordinariamente pensado, para oferecer caminhos de ordenação do convívio em tempos de profunda e acelerada inovação tecnológica. Um valor central do Direito, especialmente este que se busca no festejado Estado democrático, é aquele da segurança jurídica — que num desenho (também ele) simplificador, se traduz no binômio estabilidade + previsibilidade. O Direito se apresentou, até o momento, como facilitador das mudanças no ambiente social — preservando o que se reconhecia como valor das experiências passadas e recepcionando o novo com um desenho de efeitos possíveis. Essa pretensão tem por pressuposto uma velocidade de inovação e mudança que permita esse processo — de absorção do que há de valor no novo e de projeção de como ele se integrará à tradição do já estabelecido. O traço principal, todavia, que caracteriza a mudança associada às inovações tecnológicas, é a velocidade, e, por via de consequência, a instabilidade no cenário onde as relações de toda ordem se desenvolvem. Tem-se aí já uma primeira correção de rumo que se põe a um Direito que se pretenda funcionar como resposta aos desafios do convívio social no século 21 — como gerar estabilidade e previsibilidade num cenário de acelerada mudança, portanto, onde exercícios antecipatórios têm baixo grau de acuidade.

Assumir que o ambiente das relações sociais é de crescente incerteza e mutabilidade, e que isso tende a se agravar no futuro, é um primeiro desafio para um Direito que se pretenda ainda útil. Onde residirá a segurança jurídica num ambiente de câmbio permanente e acelerado?

O segundo desafio — este mais próximo à anunciada simplificação do fenômeno — é aquele de puramente transferir-se para o ecossistema das relações humanas em ambiente digital, ideias força ou categorias jurídicas que foram moldadas para o universo do físico, da interação presencial, das prestações materiais corpóreas. O problema nessa atitude não está na transposição de valores que já foram consolidados pela tradição, ou pela trajetória de evolução humana. O problema está em que esse tipo de proclamação, sem a devida adaptação de como isso se dá no novo universo onde se travam as relações humanas, pode ser um simples exercício retórico de pacificação de corações, com pouca aptidão para efetivamente disciplinar os novos fenômenos que são típicos da vida digitalizada.

Tomemos o exemplo da inteligência artificial e os possíveis riscos existenciais que a ela se têm associado. A resposta mais comum na comunidade jurídica tem sido a reiteração daquilo que se revelou verdadeira conquista civilizatória — a relevância da centralidade da dignidade da pessoa e, portanto, a valorização do humano. Ninguém diverge dessa proclamação, e é essa ideia força que na verdade se tem por trás, quando se discute a substância da ameaça que se possa ter no desenvolvimento de inteligência artificial genérica. Desde Hal 9000, passando por Terminator, até Vikki, todos esses mecanismos de IA se apresentavam como uma ameaça porque não reconheciam o valor intrínseco do humano. Afirmar que a alternativa de prevenção à IA como risco existencial é a centralidade do humano é apresentar como resposta algo que já se continha na pergunta; é incidir numa redundância. O desafio não reside no ainda valor da dignidade da pessoa, mas em como se harmoniza esse valor com os benefícios potenciais da inteligência artificial. Nesse sentido, a simplificação que se limita a reproduzir a resposta já consagrada não contribui para a construção verdadeira do que seja um Direito operativo no ecossistema das relações digitais.

Outro tema em que a transposição das velhas fórmulas se revela uma não resposta é o da explicabilidade dos algoritmos. Repetindo aquilo que decorre hoje do sistema constitucional, que tem em conta a decisão humana e materializada em razões que orientaram seu percurso intelectual, afirma-se que as operações algorítmicas devem ser na sua íntegra explicáveis. Também aqui tem-se a repetição de um componente do Direito que é festejado pelo que ele representa de contenção do poder — decisões devem ser motivadas para que sejam assim controláveis. Mas o que representa essa proclamação, que se repete em tom triunfalista, de que algoritmos devem ser explicáveis? A quem se explica? O que se explica? Essa explicação, em sede de aprendizado profundo, é efetivamente possível do ponto de vista estritamente técnico?

Também aqui não se está a investir contra a valia de transparência no que toca às operações que se venham a desenvolver com o uso de mecanismos de IA — o que se está a dizer é que a mera transposição de categorias que se consolidaram no universo do físico, da interação peer to peer, não será capaz de oferecer resposta aos problemas que o ambiente digital propõe. É preciso pensar na relevância da atividade em desenvolvimento, vis a vis o grau de transparência nos seus critérios determinantes. Explicabilidade pode não ser um valor absoluto — tudo depende do tipo de decisão de que se esteja a cogitar. É preciso não se dar por satisfeito com a simples repetição das velhas fórmulas, mas refletir nas modulações que um ambiente novo de deliberação propõe.

Terceira simplificação que se tem identificado com frequência é a reafirmação de que os algoritmos não podem ser enviesados. Isso nunca esteve em dúvida. Mas lançar a origem dos equívocos de decisões formuladas ou fundadas em IA no enviesamento de algoritmos é ignorar que a escolha algorítmica não se formula o vazio, mas decorre frequentemente de dados que podem ser eles também enviesados. O problema é muito mais complexo do que se tem na simplificação que reconhece no algoritmo ou no seu desenvolvedor, um vilão a ser combatido.

Uma possível explicação para essa tendência à simplificação no campo do chamado Direito Digital, como resposta especializada às inovações decorrentes das novas tecnologias, é o ainda enclausuramento cognitivo do Direito, que resiste à abertura real aos aportes de outras áreas do conhecimento [3]. Manter essa postura em tempos de vida digitalizada, de metaverso, de NFTs, é condenar o direito à irrelevância — e, com isso, abdicar de muitas conquistas civilizatórias que o Estado de Direito traduz.

Em recente diálogo sobre as adaptações exigidas pela aceleração das mudanças em todo o mundo, Jonathan Haidt & Yuval Noah Harari [4] enunciavam como palavras essenciais; síntese do que seja relevante para os próximos anos, a conjugação entre dados e pessoas. Dados, como a matéria-prima da geração de valor em conhecimento; pessoas, como o vetor de variabilidade permanente, como o fator a desestabilizar a predição dos dados. Ambas as áreas de conhecimento são menos afeitas ao profissional do Direito.

No que toca aos dados, tem-se a velha dicotomia entre os techie e aqueles de Humanas. No campo das pessoas, tem-se o paradoxo de que o Direito, quando reivindicou a si o papel de forjar as relações humanas, culminou por se distanciar do estudo do que determina o comportamento humano. A coerção sempre foi ferramenta mais familiar ao Direito, e esta não é orientada à compreensão dos padrões comportamentais — ao contrário, é o instrumento da força.

Um Direito efetivamente relevante na vida digital vai exigir romper a clausura da autorreferência, e enfrentar o desafio de renunciar a modelos categoriais já sedimentados. É certo que a experiência e a tradição serão ainda relevantes como inspiração e aprendizado — mas a integração cognitiva e a abertura à experimentação de novos modelos será a chave de sucesso. Inovação não pode ser um fenômeno regulado pelo Direito se ela também não irradiar efeitos no próprio Direito.

 


[1] A consulta a essa hashtag no Instagram em 7 de fevereiro, apontava para "Direito Digital", 202 mil publicações — sem contar outras hashtags derivadas, como #direitodigitalecompliance, #direitodigitalnapratica, #direitodigitalbrasileiro.

[2] Nesse tema, aliás, já me aventurei, na companhia do professor Fabricio Motta, coordenando a obra "Governo digital e a Busca por Inovação na Administração Pública: A Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021", publicada pela Editora Fórum; o texto de nossa contribuição direta na obra se chama "Governo digital: mapeando possíveis bloqueios institucionais à sua implantação".

[3] Explorando o encantamento que o Direito tem consigo mesmo, consulte trabalho anterior denominado "O Direito-Narciso: Nova ameaça à jusfundamentalidade dos direitos", disponível em https://www.academia.edu/53122992/O_Direito_narciso_nova_amea%C3%A7a_%C3%A0_jusfundamentalidade_dos_direitos

[4] Jonathan Haidt & Yuval Noah Harari: Adapting to Change in an Accelerating World, disponível em https://youtu.be/wlmtuKCWG7s.

Autores

  • é professora da Universidade Estácio de Sá, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, professora do programa de pós-graduação em Direito da Unesa-RJ, procuradora do Município do Rio de Janeiro e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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