Opinião

As implicações das decisões no controle de constitucionalidade de políticas públicas

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9 de fevereiro de 2022, 12h08

É comum que, durante a discussão de uma lei, sejam feitas afirmações sobre as implicações causais da medida discutida. Por exemplo, na discussão do pacote "anticrime" na Câmara dos Deputados, é possível ler a seguinte declaração: "não dá para ter tolerância com bandido! (…) Lugar de bandido é na cadeia. É preciso que isso fique claro. E o endurecimento da legislação não é só um recado, é algo que a sociedade cobra" [1]. O raciocino que subjaz aqui é o seguinte: quanto maior a pena para o crime, menor a incidência do crime.

Tal raciocínio pertence ao domínio da causalidade [2], isto é, àquele tipo de proposição que liga dois fenômenos segundo uma ligação de causa e consequência (exempli gratia, quando o metal esquenta, se dilata) e que é típica das ciências da natureza (exempli gratia, Física) e das ciências sociais não jurídicas (exempli gratia, Sociologia, inclusive a Sociologia Jurídica [3], Economia). O Direito, por outro lado, liga uma causa com uma consequência não segundo o princípio da causalidade, mas, sim, segundo o princípio da imputação, que liga o delito à sanção, o fato à sua consequência jurídica (e que pode bem ser exemplificado pelo enunciado de que se alguém comete um homicídio, deve ser punido) [4].

No controle de constitucionalidade de políticas públicas, todavia, tal como no processo legislativo, enunciados não jurídicos — isto é, enunciados que não são norteados pelo princípio da imputação, mas, sim, pelo princípio da causalidade — aparecem com frequência. Por exemplo, em uma medida cautelar proferida na ADPF nº 772 o ministro Edson Fachin, que julgava a redução na alíquota de importação para armas de fogo, afirma:

"À iminência da vigência temporal do dispositivo vergastado soma-se a gravidade dos efeitos potencialmente produzidos, nomeadamente quanto ao impacto causado à segurança pública e ao direito à vida dos cidadãos brasileiros. O risco de um aumento dramático da circulação de armas de fogo, motivado pela indução causada por fatores de ordem econômica, parece-me suficiente para que a projeção do decurso da ação justifique o deferimento da medida liminar" [5].

Os enunciados causais que estão presentes no excerto são evidentes: 1) a redução na alíquota importa em um aumento na importação de armas de fogo; 2) o aumento na importação de armas de fogo importa em um aumento na circulação de armas de fogo; 3) o aumento na circulação de armas de fogo é potencialmente danoso à vida e à saúde pública. O enunciado propriamente jurídico, ligado pelo princípio da imputação — e não da causalidade — que leva à concessão da medida cautelar é tão somente o seguinte: há uma norma potencialmente danosa aos direitos à vida/segurança pública, então deve ser concedida medida cautelar para suspensão de seus efeitos.

A participação de enunciados causais em decisões jurídicas, porém, levam a algumas problemáticas. Primeiro, tal como no processo legislativo, no caso em tela foi determinada ligação causal que faz a decisão ser proferida. Explico. Uma norma que endure as penas contra um determinado crime é promulgada sob o pressuposto de que uma determinada ligação causal entre a maior gravidade da pena e a menor incidência do crime. Isto é, que o comportamento individual, causalmente determinado, será alterado por uma nova norma. De forma bastante similar, a decisão acima citada foi proferida sob o pressuposto causal de que mais armas significam mais mortes. Em outras palavras, a decisão só é cognoscível com esse pressuposto. Como a nossa compreensão sobre as ligações causais que determinam o comportamento humano pode mudar ao longo do tempo, é possível que determinada mudança, não das normas, mas, sim, da nossa percepção a respeito das ligações causais do comportamento humano, leve a uma mudança na orientação jurisprudencial de uma corte de controle de constitucionalidade [6]. Como, todavia, um tribunal só age mediante provocação (o que, por seu turno, depende de que sejam atingidas certas condições), pode existir um intervalo de tempo razoável entre a mudança na compreensão das ligações causais e a mudança jurisprudencial.

Segundo. A necessária fixação de determinadas questões de causalidade para a solução de controvérsias de constitucionalidade leva a uma aproximação do processo de controle de constitucionalidade de políticas públicas com o processo legislativo. Isto é, há uma crença bastante disseminada de que o juiz aplica a lei e de que a decisão do juiz já está contida na lei (é o juiz bouche de la loi[7]. Dentro desse pressuposto, o juiz no controle de constitucionalidade aplica a Constituição (aqui entendida como uma lei) para declarar determinada lei inconstitucional, deixando, por conseguinte, de aplicá-la. Consequentemente, dentro dessa narrativa didática — porém esquematizada e indutora de diversos erros —, não há espaço, no controle de constitucionalidade, para a fixação de questões causais, e muito menos para uma discussão causal da realidade — tais elementos são vistos como além da controvérsia jurídica —, ainda que sejam imprescindíveis para a sua solução. A necessária discussão de tais ligações leva a uma incomoda aproximação do processo de controle de constitucionalidade com o processo legislativo, o que pode render para uma decisão, em si irreparável, a pecha incomoda de "ativismo judicial" [8].

Não podemos afirmar, em decorrência desses dois pontos, que toda discussão de constitucionalidade de políticas públicas levará, necessariamente, a discussões causais; bem como não podemos afirmar, também, que somente na discussão de políticas públicas e do controle de constitucionalidade dessas políticas surgirá uma controvérsia sobre ligações causais. Por outro lado, a presença desses elementos no controle de constitucionalidade de políticas públicas — presença inegável e inextirpável, diga-se de passagem — é relevadora de que não podemos simplesmente negar a presença de necessárias discussões causais na práxis forense. Mais do que isso, a aproximação entre o processo de controle de constitucionalidade e o processo legislativo mostra que talvez a compreensão disseminada a respeito do papel de uma corte como "guardiã" da Constituição esteja profundamente equivocada. Não é um fato sem importância que dois dos maiores juristas do século 20, Kelsen e Schmitt, reconheçam uma função política do controle de constitucionalidade e, mais do que isso, uma função legislativa [9]. E, mais importante, não é um fato sem importância que, malgrado tais conclusões (de quase um século atrás!), continuemos a aceitar sem reservas ou questionamentos a ideia de que o tribunal que controla a constitucionalidade é um simples tribunal como os outros e o critiquemos com base nessa — profundamente equivocada — ideia. "Qual a natureza do controle de constitucionalidade?" e "em que termos e até que ponto o ativismo do tribunal constitucional existe?" são duas questões que precisam, urgentemente, ser mais bem exploradas do que são atualmente pela comunidade forense brasileira.

 


[1] CÂMARA DOS DEPUTADOS. 1ª Sessão Legislativa Ordinária, da 56ª Legislatura, 400ª Sessão (Sessão Deliberativa Extraordinária). Disponível em: <https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/html/59026>. Acesso em: 6 fev. 2022. Os exemplos usados neste texto foram todos retirados do campo da segurança pública, mas não se discute, em nenhum momento, o mérito deles.

[2] É verdade que, quando Hans Kelsen enunciou a distinção entre causalidade e imputação, ele deixou claro que estava tratando de uma distinção entre ciências, mas podemos razoavelmente supor que a afirmação do Deputado, citada acima, se pretende científica. Vide: Causalidade e imputação, in: O que é justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 323–333.

[3] Há um único postulado da sociologia jurídica, bastante criticado dentro da disciplina, que pode ser implicado dentro do domínio da imputação — e  não da causalidade —, que é aquele que argumenta que uma determinada prática social, socialmente legítima, deve ser direito. Sobre isso, ver OLIVEIRA, Luciano, Direito, Sociologia Jurídica, Sociologismo: notas de uma discussão, in: Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica, Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 55–73. Sobre a relação da dogmática do Direito com a sociologia do Direito, ver KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 114–120.

[4] KELSEN, Teoria pura do direito, cap. 3; KELSEN, Causalidade e imputação.

[5] STF; ADPF 772-DF, relator ministro Edson Fachin, decisão monocrática, julgado em 14/12/2020.

[6] Evidente, porém, que se se trata de declarar uma lei inconstitucional, então a nova lei deverá ser editada e, se o caso, posteriormente julgada constitucional para que se concretize a mudança de entendimento.

[7] Isto é verdade, mas não há como negar a existência um elemento decisório livre, não vinculado, no controle de constitucionalidade. Vide: KELSEN, Hans, Quem deve ser o guardião da Constituição?, in: Jurisdição constitucional, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 257–264; SCHMITT, Carl, O guardião da constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 55–60, 67–69.

[8] Para que fique claro: não é a aproximação o problema, mas sim a realidade vs. crença disseminada e ensinada sobre como as coisas são (mas que não é verdadeira).

[9] KELSEN, Hans, A jurisdição constitucional, in: Jurisdição constitucional, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 123–126, 150–155, 171–172; KELSEN, Quem deve ser o guardião da Constituição?, p. 257–266; KELSEN, Hans, O controle judicial da constitucionalidade (Um estudo comparado das constituições austríaca e americana), in: Jurisdição constitucional, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 302–207, 316–319; SCHMITT, Carl, Constitutional Theory, Durhan, London: Duke University Press, 2008, p. 158–164; SCHMITT, O guardião da constituição, p. 19–102.

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