Opinião

Apenas os clubes endividados devem adotar o formato de SAF?

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9 de fevereiro de 2022, 10h46

O modelo de sociedade anônima do futebol, a SAF, aprovada no Congresso no fim de 2021, já vem sendo idealizado por muitos como a única solução para os endividados clubes brasileiros.

De fato, alguns clubes com sérios problemas financeiros, como Botafogo e Cruzeiro, já o estão adotando.

Mas será que somente clubes endividados devem adotar o formato de Sociedade Anônima do Futebol (SAF)? Sobre esse questionamento é que se propõe a discorrer a seguir.

Primeiramente, convém ressaltar que o sistema jurídico nacional prevê expressamente três formas de organização da atividade do futebol: o clube "tradicional", constituído sob a forma de associação; o clube-empresa, concebido pela Lei Zico [1] e reformulado por outras leis que se seguiram; e a SAF, prevista pela Lei 14.193/2021. Esses três institutos convivem, apesar de se sujeitarem a regimes jurídicos diferentes.

Nesse cenário, atualmente no Brasi, ninguém é obrigado a seguir o formato SAF, diferentemente do que aconteceu na Espanha [2].

Trata-se de uma alternativa, de uma escolha, que pode se dar de quatro maneiras diferentes: 1) ou precisa da transformação do clube ou pessoa jurídica original em sociedade anônima do Futebol  [3]; 2) ou da cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebolística [4]; 3) ou da iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento [5]; e 4) ou mesmo do drop down, que é quando o clube ou a pessoa jurídica natural transfere ativos a uma companhia [6], uma SAF.

Apesar de ser uma opção, já é certo que a Lei 14.193/2021 representa o início de um "ciclo virtuoso" para o futebol, ao prever novas possibilidades para os clubes refinanciarem seus débitos (por meio de recuperação judicial ou extrajudicial) e renegociarem suas dívidas (através de um concurso de credores) [7], além de trazer um tratamento tributário próprio [8].

Em razão disso, e pelo componente da novidade é que a constituição da SAF, vem sendo apontada como passo fundamental para uma "nova era", de transformação necessária dos clubes e de retorno do futebol brasileiro aos dias de glórias no cenário esportivo mundial.

Todavia, é preciso reconhecer que essa reestruturação das dívidas dos clubes brasileiros exige muito mais que uma nova "roupagem" jurídica.

Na verdade, exige todo o desenvolvimento de uma sistemática capaz de permitir a captação de recursos e, ao mesmo tempo, a reestruturação interna dos clubes, a partir da adoção de regras de governança, controle e transparência.

Não há dúvida de que há uma crise sistêmica no futebol nacional que precisa ser resolvida, uma vez que os 20 maiores clubes do Brasil somam uma dívida bilionária de mais de R$ 10 bilhões [9].

Contudo, a SAF não pode ser vista como um fim em si mesma; é um meio, um caminho, capaz de inspirar maior confiança e credibilidade do mercado, equilibrar as contas, melhor preservar os aspectos culturais e sociais da atividade do futebol, e (por que não?) permitir melhores resultados nos campeonatos.

Nesse cenário, nota-se que muitos instrumentos da lei vão além da questão financeira e são também vantajosos para os clubes não endividados.

A adoção do formato SAF pode permitir, por exemplo, aumentar o grau de responsabilidade dos dirigentes, assim entendidos os membros do conselho de administração e da diretoria.

Sobre esse ponto, a Lei 14.193/2021 prevê, em seu artigo 8º, a responsabilidade pessoal dos administradores da sociedade anônima do futebol pela falta de transparência no que toca a alguns documentos. São eles: o estatuto social e as atas das assembleias gerais; a composição e a biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria; e o relatório da administração sobre os negócios sociais, incluído o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, e os principais fatos administrativos [10]

Segundo a lei, essas informações deverão ser atualizadas mensalmente e mantidas por dez anos [11]. Sobre esse assunto, aponta o professor Rodrigo R. Monteiro de Castro que essa "solução reforça o princípio da publicidade, que serve não apenas para tomada de decisões imediatas, como para que, no futuro, seja possível, por via de fácil e generalizado acesso, reconstruir matrizes de responsabilidade e imputá-la corretamente" [12].

Assim, todos os administradores da SAF deverão zelar pela correta publicação dos atos, o que não é exigido atualmente em relação às associações. Ao contrário, nos clubes tradicionais (associações), há um secular descompromisso com a transparência.

A título de exemplo: os clubes muitas vezes revelam o que ganham com a venda de um jogador, mas raramente divulgam o que fazem com os milhares de reais adquiridos, o que garante um terreno fértil para a irresponsabilidade gerencial ou para a gestão temerária.

Além disso, no caso de gestão temerária, mesmo com as inovações legislativas dos últimos anos (como a Lei do Profut [13], por exemplo), dificilmente há a punição dos dirigentes dos clubes tradicionais [14], pois o reconhecimento da gestão temerária depende da eficácia de mecanismos internos de controle da associação, que se sujeitam a pressões políticas [15].

Ademais, também ficam à mercê de questões políticas todos os projetos de longo prazo da associação. Isso porque, a cada três ou quatro anos, é realizada uma eleição, podendo-se alterar consideravelmente o planejamento, não havendo, assim, qualquer garantia de continuidade de projetos.

A SAF, todavia, consegue impedir que processos políticos de troca de comando alterem o seu planejamento (financeiro ou desportivo), garantindo, assim, maior confiabilidade na gestão.

Essa confiança, somada às normas de governança, controle e transparência, traduzem maior credibilidade da empresa no mercado, a contribuir, por exemplo, com o baixo custo de financiamento da atividade do futebol pelo surgimento de investimentos externos (inclusive internacionais) e de empréstimos a juros menores nas instituições financeiras.

Diante do exposto, com a SAF é abandonado uma sistemática que, a pretexto de buscar resultados em campo, sempre respaldou o endividamento irresponsável, fazendo-se dívidas que seriam (ou não seriam) adimplidas pelos sucessores.

Esse novo modelo permite ainda que o próprio torcedor tenha previsibilidade e possa exercer fiscalidade. Muito diferente do modelo associativo, em que não se tem acesso às informações ou às tomadas de decisões, apesar de o torcedor, de forma indireta, as financiar, a partir da compra de produtos licenciados ou mesmo participando dos programas de sócio torcedor.

Juntamente com o aumento da confiabilidade, há ainda outros mecanismos de financiamento da SAF, como a emissão de títulos mobiliários e da debênture-fut [16]. Trata-se de uma debênture especial, exclusiva, uma vez que nenhuma outra sociedade está autorizada a emiti-la.

Assim, nota-se que a Lei da SAF traz, além das vantagens direcionadas aos clubes endividados, grandes atrativos para os clubes com saúde financeira.

Talvez a sua maior contribuição seja justamente os dispositivos que colaboram para a profissionalização da gestão do futebol, inaugurando um pensamento do futebol brasileiro como um setor econômico e que deve ser promovido de forma democrática, diferentemente do que acontece com os clubes associativos.

A SAF não é, portanto, a solução de todos os problemas e das crises da atividade futebolística nacional, trazendo apenas um caminho. Em outras palavras, é uma alternativa para todos os clubes do Brasil, não uma solução.

A vantagem desse modelo vai depender, principalmente, da incorporação de suas noções fundamentais, quais sejam, de responsabilidade, de controle, de governança e de transparência, bem como do real aproveitamento de todos os seus institutos.

 


[1] Lei nº 8.672/93.

[2] Segundo Rodrigo Matos, "(…) o governo espanhol decidiu-se por um plano radical de transformação dos clubes-associativos em empresas. Alguns dos pontos: 1) Todos os clubes eram obrigados a virar empresa 2) Uma comissão do governo de transformação determinaria o valor do aporte mínimo para formação do capital da empresa, considerando os gastos médios e as dívidas 3) sócios têm prioridade na compra das ações 4) capital teria de ser aportado uma parte à vista e outra em parcelas 5) Eram obrigatórios conselhos de administração na nova gestão. Depois, foi determinada uma exceção para a obrigação de virar empresa para clubes que tivessem o património líquido positivo, no caso, isso se aplicada a Barcelona e e Real Madrid" (https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2020/01/26/como-clube-empresa-na-espanha-serve-de-licao-ao-brasil-sobre-desequilibrio.htm)

[3] Artigo 2º, I da Lei da SAF.

[4] Artigo 2º, II da Lei da SAF.

[5] Artigo 2º, III da Lei da SAF.

[6] Artigo 3º, da Lei da SAF.

[7] Artigo 13, da Lei da SAF.

[8] Artigo 31 e 32, ambos da Lei da SAF.

[10] Artigo 8º, incisos II, III e IV da Lei da SAF.

[11] Artigo 7º, e artigo 8º, §1º da Lei da SAF.

[12] DE CASTRO, RODRIGO R. MONTEIRO. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021; São Paulo: Quartier Latin, 2021, pag. 134.

[13] Lei 13.155, de 04 de agosto de 2015.

[14] Sobre este ponto, ver também "comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021". (DE CASTRO, RODRIGO R. MONTEIRO. São Paulo: Quartier Latin, 2021, pag. 160).

[15] Apesar de o artigo 25 definir o que caracteriza uma gestão temerária, o artigo 26 da Lei 13.155 prevê que "os dirigentes que praticarem atos de gestão irregular ou temerária poderão ser responsabilizados por meio de mecanismos de controle social internos da entidade, sem prejuízo da adoção das providências necessárias à apuração das eventuais responsabilidades civil e penal". Para a referida ação civil, é necessária a aprovação dos associados, em assembleia geral (artigo 27. Compete à entidade desportiva profissional, mediante prévia deliberação da assembleia geral, adotar medida judicial cabível contra os dirigentes para ressarcimento dos prejuízos causados ao seu patrimônio).

[16] Artigo 26 da Lei da SAF.

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